Seis confusões que fazemos ao falar de reinfecção, novas cepas e vacinas

Variantes do Sars-CoV 2 surgindo, o aumento estratosférico de casos, a mudança de perfil dos doentes, pessoas reinfectadas aqui e acolá, o receio de que as vacinas não funcionem tão bem contra novíssimas cepas e o noticiário sobre supostos efeitos colaterais dos imunizantes — tudo isso aperta os nós da cabeça.

Noutro dia, me mandaram uma dúvida: por que as mutações do novo coronavírus escapariam do sistema imunológico de quem já pegou a covid-19, mas não escapariam da vacina? Busco entender mais esse nozinho.

A gente escuta que é para ficar em casa — e é mesmo! — pois o bicho está pegando, com hospitais em colapso e um vírus que, mais do que nunca, parece passar de uma pessoa para outra sem a menor cerimônia.

Mas a gente também lê, sentindo uma gota de alívio, que determinada vacina funcionou bem contra as novas variantes.

Daí talvez a pergunta: ora, o que a vacina faz que eu, que já tive a doença, não tenho?!

Entreguei essas caraminholas ao imunologista Luiz Vicente Rizzo, diretor superintendente do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, em São Paulo.

Em um primeiro instante nem reconheci o médico do outro lado da linha. Cansaço, suponho. Mas o timbre reaviva quando começa a falar de ciência.

E só a voz da ciência é capaz de desfazer tanta confusão, uma por uma.

Quando pegamos a doença versus quando tomamos a vacina

“Muitos dos casos de reinfecção que aparecem agora são de pessoas que tiveram a covid nos primeiros meses da pandemia”, começa esclarecendo Rizzo.

“E não dá para dizer se o que está acontecendo é causado por uma nova cepa ou se o sistema imune já perdeu a memória da infecção original depois de todo esse tempo.”

Tem esta: os coronavírus, em geral, não criam uma lembrança duradoura no sistema imunológico.

E este coronavírus da vez, diga-se de passagem, tem lá as suas manhas para cair no esquecimento após alguns meses. Por essa razão, quem teve a infecção no passado corre o risco de reviver a experiência.

E por isso, também, provavelmente todo mundo deverá voltar à fila da vacinação de tempos em tempos para receber reforços.

Até porque a resposta imune vacinal tende a ser menos prolongada do que aquela gerada quando você pega uma doença propriamente dita.

Em tese… “Com as vacinas que usam novas tecnologias, talvez isso deixe de ser verdade”, lembra Rizzo.

Por que a memória imunológica do Sars-CoV 2 não é lá essas coisas?

Nossa resposta imune contra qualquer infecção é montada em etapas. Na primária, as defesas são apresentadas ao agente infeccioso.

Diante dele — pra valer ou na vacina —, criam uma certa quantidade de anticorpos e de células com uma eficiência “x” para dar um jeito na situação.

Em um novo contato com o mesmíssimo agente infeccioso, porém, o sistema imunológico desenvolve a chamada resposta secundária, fruto da memória daquela experiência primária.

“O número de células de defesa cresce muito mais rápido, elas chegam mais depressa e produzem uma quantidade maior de anticorpos”, descreve Rizzo.

O resultado é tão espetacular e tão a jato que nem dá tempo de o sujeito perceber que foi infectado.

Só que há um detalhe: “O Sars-CoV 2 tem a habilidade para subverter o que chamamos de apresentação de antígeno”, diz o médico.

Grosseiramente, ele não é apresentado direito naquela etapa de reconhecimento. Por isso, ao ser reinfectado, o organismo pode viver o seu dia da marmota, repetindo a etapa da resposta primária. E ela não é das melhores para evitar a doença, que então dá um bis.

As reinfecções teriam a ver com as novas cepas?

O causador da covid-19 está fazendo o que todo vírus faz — mudando para se tornar mais eficiente. Como compara Rizzo:

“Cada pessoa infectada é um bilhete que ele ganha para fazer uma mutação.” Logo, quanto mais gente contrair o novo coronavírus, manifestando sintomas ou não, mais cepas fatalmente surgirão.

Por outro lado — atenção —, não dá para sair espalhando que essas novas cepas, de tão diferentes ou turbinadas, causariam a doença em quem, um dia, se infectou com a cepa original.

Faltam estudos para a gente entender a biologia do vírus e como ele evolui. “Ainda não tivemos tempo de investigar tão bem o Sars-CoV 2 porque priorizamos pesquisar tratamentos e salvar vidas”, afirma Rizzo.

Segundo o cientista, por enquanto só podemos falar que essas cepas, em especial a de Manaus, parecem se transmitir com maior facilidade — não é preciso uma carga viral tão grande para passar de uma pessoa para outra — e que elas vêm provocando a hospitalização de pacientes mais jovens. Ponto.

As novas cepas causariam quadros graves em crianças?!
“Criança é outra história”, esclarece Rizzo. “Desde o início da pandemia, a estimativa é de uma criança doente para cada 30 mil casos de covid-19. E isso, até agora, aparentemente não mudou.” Portanto, se antes a gente sabia de um caso nas alas pediátricas dos hospitais e hoje a gente sabe de três é porque triplicou a quantidade de adultos internados também.

As vacinas protegeriam contra as novas variantes?
De novo, não dá para dizer nem que protegem, nem que não protegem. Aliás, no Brasil é que não dá mesmo para saber, pela baixíssima porcentagem de pessoas imunizadas.

“Para obter essa resposta com maior segurança”, ensina Rizzo, “seria necessário observar um grande número de pessoas vacinadas com todas as doses indicadas e compará-las a indivíduos não vacinados, para daí ver qual grupo seria mais infectado pelas novas cepas”.

E, entre nós, só teremos condições de fazer comparações assim quando tivermos de 20% a 30% da população imunizada.

Foi o que aconteceu no Reino Unido. Lá, eles constataram que a vacina de Oxford era eficaz contra a variante britânica, comum em suas bandas, e seguiram em frente com ela. “Mas havia um número enorme de indivíduos que tinham recebido essa vacina”, lembra Rizzo.

O mesmo imunizante, por sua vez, foi barrado na África do Sul, pela suspeita de que não funcionaria contra a variante de lá. Mas, no caso, Rizzo palpita: “Pode ter sido uma conclusão precipitada.”

Os dados em que a decisão foi baseada eram indiretos. Ninguém comparou o que acontecia com gente vacinada e com gente não vacinada.

“Eles colheram o plasma de quem recebeu essa vacina, fizeram uma cultura de células e observaram que, ao menos in vitro, elas não produziram anticorpos capazes de neutralizar a variante sul-africana. É um dado importante, mas ele não é determinante”, explica Rizzo.

Ora, você pode ter poucos anticorpos para a covid-19, mas ter uma imunidade celular pra lá de eficiente. Vai saber! Daí que ficará com uma impressão negativa à toa.

Até porque, parênteses, medir a imunidade celular é algo caro e complicado, que ninguém faz de rotina, nem usa em pesquisas envolvendo um grande número de pessoas.

“E a recíproca também é verdadeira. A gente vê pessoas com anticorpos e que se acham protegidas, mas que são reinfectadas porque não desenvolveram a tal da imunidade celular”, completa Rizzo.

“E olha que o sistema imune tem muito mais variáveis do que essas!”

Na prática, até mesmo quando os laboratórios afirmam que essa ou aquela vacina se mostra capaz de nos defender contra a variante de Manaus, por exemplo, por enquanto isso não é muito mais do que uma estimativa. Ninguém está mentindo. Mas uma boa estimativa é só um bom começo.

A resposta certeira está na vida real, quando você toma a vacina. E nem pense em abrir mão dessa picada, desapontado com a incerteza.

Sem a gente se vacinar, no mínimo o vírus original continuará circulando, infectando muitas pessoas e, com isso, criando mais e mais variantes.

A vacina causa trombose?
No meio de tantas interrogações, uma certeza existe: todos os imunizantes aprovados para a covid-19 são seguros.

Nos países escandinavos, o uso da vacina de Oxford foi interrompido em função de alguns casos de trombose, isto é, de coágulos bloqueando a circulação do sangue.

“Esses trombos podem ter surgido por fatores que não teriam nada a ver com a vacina”, comenta Rizzo.

“Mas vale pensar que a formação de coágulos é uma das características da própria covid-19. Talvez essas pessoas tenham se infectado antes da segunda dose ou do prazo necessário depois dela para o organismo montar uma proteção. E, se pegaram a covid-19 nesse meio-tempo, justamente por terem uma imunidade ‘incompleta’, não apresentaram sintomas tão claros. Quem sabe, nem fizeram teste para saber da doença.”

Nessa hipótese, os trombos seriam provocados pela própria covid e não pela vacina criada para combatê-la.

“De qualquer modo, se eu der aspirina para 4 milhões de pessoas, terei um número bem mais alto de efeitos colaterais”, garante Rizzo.

“E ninguém pararia de tomar o remédio só porque uma senhora ficou com as gengivas sangrando na Groenlândia.”

O que todos nós precisamos compreender é que a ciência é assim. Dá um passo. Observa. Volta. Nunca traz respostas imediatas.

E nós, que temos nela a melhor companheira nessa travessia, não deveríamos ficar tão sobressaltados em suas mãos.

 

 

(Imagem: iStock)

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