17 de junho de 2024

A filha de seringueiros que foi a 1ª governadora de um Estado no Brasil: conheça Iolanda Fleming

Ex-governadora Iolanda Fleming fala de sua trajetória do seringal ao Palácio Rio Branco

Rio Branco, Acre, abril de 1964 – A bucólica Rio Branco, então capital do mais novo Estado da Federação, criado em junho de 1962, com apenas sete municípios e suas cidades de ruas de terra batida, estava em ebulição. As notícias sobre a deposição do presidente João Goulart e da implantação de um novo regime no país, o militar, apesar das dificuldades de comunicação num Estado onde ainda não havia televisão, os jornais e revistas só circulavam com atraso de até alguns meses, porque trazidos de navio e aviões que também costumavam atrasar suas viagens com destino ao novo Estado, começavam a chegar via rádio.

As notícias davam conta que os aliados do presidente anterior e, portanto adversários, do regime militar que havia assaltado a República após o golpe de 31 de março ou 1º de abril daquele ano, seriam todos cassados e presos – exceto se aderissem ao novo regime

Iolanda Fleming com o ex-governador do Acre, Nabor Junior e o então presidente do Banacre, Osmir LIma/Foto: Arquivo PessoalNão seria este o caso do governador do Acre naquele período. José Augusto de Araújo, um jovem professor com 32 anos, que havia sido eleito nas primeiras eleições do novo Estado, era filiado ao  PTB e aliado de João Goulart, o presidente deposto. Logo os partidários do novo regime, interessados na queda do governador, passaram a acusá-lo de comunista e de vir fazendo um governo que alfabetizava seringueiros através de um método de um professor também comunista, um certo Paulo Freire, e estava até propondo fazer uma reforma agrária, para que seringueiros passassem a ser legítimos proprietários das terras que ocupavam desde o deblacle dos seringais. Coisas de comunistas mesmo!

Essas notícias também agitavam o Exército no Acre, representado pelo comando do 4º Batalhão  de Fronteira (4º Bef), cujo comandante era o capitão Edgar Pedreira de Cerqueira, então com apenas 25 anos de idade, recém-saído da Academia Militar das Agulhas Negras (Amam), no Rio de Janeiro, na qual ingressara ao 15 anos e saíra dez anos depois, no posto de Capitão. Seu primeiro posto de comando foi o do 4º Bef, ao qual teria assumido muito mais como castigo do que como prêmio, já que, ainda na Amam, o militar demonstrara afeição exagerada por bebidas alcóolicas, coisa impensável para um militar que pretendia fazer carreira no Exército até o posto mais elevado, o de general. Como o Acre era, além e isolado, meio fora de mão, nada mais prudente para o Exército manter bem longe um sujeito que tinha tudo para se tornar um problema do que um oficial exemplar. 

Os assuntos que faziam fervilhar a República agora sob uma ditadura e que começavam a chegar ao Acre eram compartilhados pelo capitão Edgar Cerqueira entre seus oficiais, entre eles Geraldo Reis Fleming, tenente no posto de médico veterinário do quartel, também com a mesma idade de seu comandante.

Nascido em Minas Gerais, numa tradicional família mineira de origem irlandesa, Geraldo Reis Fleming, cujo sobrenome era associado a Alexander Fleming, biólogo, botânico, médico, microbiólogo e farmacologista britânico e autor de diversos trabalhos sobre bacteriologia, imunologia e quimioterapia, que notabilizou-se como o descobridor do antibiótico penicilina e isso e lhe valeu o Prêmio Nobel de 1945.  

Na época, a recém-casada professora Iolanda acompanhava o marido em suas atividades e também em reuniões sociais nas quais era discutida a deposição de José Augusto de Araújo, um assunto que incomodava os ouvidos sensíveis de professora com pendores democráticos.

Parente ou não do cientista famoso, o mineirinho de origem irlandesa Geraldo Reis Fleming graduou-se veterinário pela Universidade Federal Fluminense e ainda no Rio de Janeiro fez o curso de oficial médico veterinário do Exército com pós-graduação na Argentina e no Uruguai. Chegou ao Acre, junto com outros militares, para ajudar na demarcação das fronteiras do ex-território federal que estava sendo transformado em Estado. 

No Acre, o militar e médico veterinário conhece a então professora Iolanda Ferreira Lima, filha da professora Nazira Anute e do seringueiro e seringalista Horácio Ferreira Lima, ele natural do Nordeste do Brasil, do Ceará, e ela originária de uma família de pai libanês, colonizadores do Acre nas margens do Rio Purus, onde hoje se localiza o município de Manoel Urbano anteriormente chamado de seringal e em seguida Vila Castelo. Os Ferreira Lima e os Anuches, como originalmente se chamavam os originários da família libanesa, chegaram por ali muito anos de Manuel Urbano da Encarnação, o prático de embarcação e aventureiro da então província do  Amazonas, que dá nome ao município mas que jamais teria subido as barrancas da vilazinha que viraria cidade com o seu nome. E não subiu o barranco por uma razão prosaica: medo dos habitantes originários daquelas terras, que não eram lá muito amistosos com recém-chegados e aventureiros e que matavam aqueles pelos quais não tinham afeição ou amizades, Mas isso é já outra história.

Antes das intrigas políticas que derrubariam o governador José Augusto de Araújo, o tenente veterinário Geraldo Fleming e Iolanda Ferreira Lima, a professorinha que era a mais velha de 10 filhas do casal Horário e Nazira Anute, que já morava em Rio Branco, apaixonaram-se. Foi amor à primeira vista. Casaram-se naquele período em que o militar ajudava seus companheiros de farda na demarcação das fronteiras do futuro Estado, ficando acampado na mata por vários dias. Na época, a recém-casada professora Iolanda acompanhava o marido em suas atividades e também em reuniões sociais nas quais era discutida a deposição de José Augusto de Araújo, um assunto que incomodava os ouvidos sensíveis de professora com pendores democráticos.

Numa dessas conversas, o capitão Edgar Pedreira de Cerqueira sugere que Geraldo Fleming se candidate ao posto de govenador, após a queda do governador constitucional, já que ele estava há mais tempo no Acre e havia inclusive sido eleito deputado estadual constituinte em 1962. Seria natural que, em sendo militar e político já com mandato, ele reivindicasse o governo estadual. Geraldo Fleming recusou a oferta.

Quando alguém quis saber o motivo, ele foi enfático:

– Se eu derrubar o governador e tomar o lugar dele, minha mulher me deixa. Ela já me disse isso.

E não se tocou mais no assunto. Edgar Pedreira então forçou a renúncia de José Augusto, inclusive com o voto de Geraldo Fleming como um dos favoráveis à deposição do governador, que foi afastado do cargo por maioria dos nove votos dos deputados estaduais da Assembleia Legislativa. O então deputado estadual Nabor Júnior não compareceu à sessão alegando dores estomacais. Fleming foi compensado sendo indicado como secretário de Agricultura e de Justiça do novo governo.  

Iolanda em foto desta semana, do ContilNet, em plena forma/Foto: ContilNet

A firme oposição daquela professora contra o convite golpista a seu marido revelou naqueles anos de chumbo, um pouco da personalidade da política que se tornaria a primeira mulher a governar um Estado da Federação, no período de 1986 a 1987, durante 14 meses, e que entrou para a história como uma das mulheres de maior poder de mando no Brasil de sua época, com força política só comparada ao da Princesa Isabel, quando foi regente do Império do Brasil, ocasião em que aboliu o regime escravagista brasileiro, em 1888. Sem coroa mas com caneta na mão e autoridade de comandante em chefe da Polícia Militar na condição de governadora, lá estava outra mulher, no coração da Amazônia brasileira, com poder semelhante ao da princesa portuguesa. Mas isso é também outra história.   

É sobre um pouco de sua história, pessoal e política, que fala a ex-governador Iolanda Lima Fleming na entrevista a seguir:

Depois de mais de 30 anos que a senhora deixou de ser governadora do Estado, a senhora nunca mais voltou ao Palácio Rio Branco? 

Iolanda Fleming – Voltei só para o velório do governador Joaquim Macedo, em setembro de 2006, quase 30 anos depois de ter saído dali. Só fui para uma homenagem porque o seu Joaquim, que passou o governo para nós, do MDB, era nosso adversário, mas era educado, gentil mesmo com os adversários e achei por bem homenageá-lo, indo à sua despedida.

Parece que a senhora também adotou a mesma postura em relação à Assembleia Legislativa, onde foi deputada. Parece que a senhora só voltou ali, depois de ser deputada, no velório de seu marido Graldo Fleming, e este ano, na posse dos novos deputados, 27 anos depois do velório do deputado Geraldo Fleming. Por que isso? Esses prédios lhe trazem más lembranças?

Iolanda Fleming – É. Não sai com boas lembranças daqueles locais não, principalmente ali na Assembleia. Ali, mesmo como deputada, fui ameaçada de ser enquadrada na Lei de Segurança Nacional, por ter me posicionado a favor dos seringueiros numa época de enfrentamento entre fazendeiros e seringueiros e, num discurso, deixei claro que eu estava ao lado dos seringueiros, numa época em que ninguém sabia quem era Chico Mendes. Eu e meu marido sabíamos porque ele, com o João Simão Sabiá, ex-vereador em Xapuri, vivia na nossa casa. Um fazendeiro queria comprar as terras de um seringueiro, de nome João Mendonça. O seringueiro disse que não vendia e o fazendeiro insistia e o seringueiro acabou passando a sofrer pressões. Chegaram até a tocar fogo no paiol da casa dele, onde a família guardava o arroz e o que colhia no roçado. O cara ficou sem nada, com  um filho recém-nascido. Fiquei ao lado do homem e assim que tinha que ser porque os trabalhadores não tinham ninguém que os defendesse. Eu conheci o Chico Mendes ainda rapaizinho.

A primeira governadora do Brasil em entrevista com o jornalista Tião Maia/Foto: ContilNet

Ele foi inclusive vereador por seu partido, o MDB, lá em Xauri, eleito nas eleições de 1978. Foi nesse tempo?

Iolanda Fleming – Não, foi bem antes. quando o Fleming, como tenente, trabalhava na comissão de reconhecimento de fronteiras. A gente ia de lancha até Xapuri e de lá par Brasiléia. Quando nós chegamos em Xapuri, quem nos recebeu foi o Chico Mendes. Acabamos indo dormir na casa dele, ainda aquela casa típica de seringueiro, e a gente dormindo naquelas redes do Exército. Passamos a noite conversando e desde então o Chico Mendes nunca mais largou a gente.

A senhora conheceu o Fleming em que ano?

Iolanda Fleming – No finalzinho da década de 50 e início dos anos 60. Casamos em 1963, depois que ele foi eleito deputado estadual. Mas passamos quatro anos namorando para poder casar.

E por que o casamento demorou tanto?

Iolanda Fleming – Porque eu não queria casar. 

E por que?

Iolanda Fleming – Porque em casa nós éramos dez irmãs mulheres e eu era a mais velha e achava que eu tinha que ajudar minha mãe em tudo, inclusive no sustento da casa. Minha mãe era professora, que aprendeu em Sena Madureira, como interna do Instituto Santa Juliana, por onde eu também passei. Segui os passos da minha mãe e também me tornei professora. Dei aulas no Colégio Acreano, inclusive para muita gente que hoje está no poder, é autoridade ou que tomou outros caminhos. Fui professora, por exemplo, do Carlão, o ex-jogador de vôlei da Seleção Brasileira. Conheci o Fleming quando era professora.

Quando nós chegamos em Xapuri, quem nos recebeu foi o Chico Mendes. Acabamos indo dormir na casa dele, ainda aquela casa típica de seringueiro, e a gente dormindo naquelas redes do Exército. Passamos a noite conversando e desde então o Chico Mendes nunca mais largou a gente.

Quer dizer que, na casa das 11 mulheres, com a senhora, suas irmãs e sua mãe, só havia o seu pai de homem? A senhora não teve um irmão homem?;

Iolanda Fleming – Só tivemos um, mas ele morreu com 11 anos de idade, de barriga d’agua, lá mesmo na Vila Castelo.

A senhora nasceu lá também?

Iolanda Fleming – Sim. Nasci lá. Meu pai, Horácio Ferreira Lima, também nasceu lá em Vila Castelo. Meus avós eram do Nordeste. Meu avô materno era do Líbano. Ao chegar aqui, ele aportuguesou o nome para Abdon Almeida Anuche, depois Anute. A minha família estava ali em Vila Castelo muito antes de Manuel Urbano da Encarnação.

Quer dizer então que Manuel Urbano da Encarnação, que dá nome ao município, não esteve na Vila cujo município seria batizado com o nome dele? Quando ele chegou a passar na região sua família já estava lá?

Iolanda Fleming – Sim, já estava e fazia muito tempo. O Manuel Urbano, assim como todos os outros, só passava por ali atrás de alguma coisa, de terras, borracha, pele de animal. Eram todos aventureiros. O que sei dizer é que ele nem aportou lá no porto da cidade. E sabe por que? Porque ele encostou três seringais antes de chegar em Manoel Urbano, deixou o marco dele lá mas não foi ao local onde iria ser  cidade. Lá havia na época uns negros, misturados com caboclos, que eram matadores de gente e famosos. Se eles não gostassem do visitante, matavam mesmo. Quando fui governadora, eu não tinha conhecimento nem a leitura que tive depois. Se eu tivesse, não teriam tomado as terras da minha família e nem talvez tivesse este nome de Manuel Urbano, porque, pelo que sei agora, ele passou por ali em 1819. Nessa época, o seringal foi transformado em Vila, a Vila Castelo, com gente suficiente para chegar a essa condição. Quem foi o primeiro intendente da vila foi o avô desse cantor famoso, o Sérgio Souto. Meu avô, Jacinto Ferreira Lima, chegou primeiro que todo mundo nas terras do que é hoje Manoel Urbano. Meu avô contava na família que, naqueles tempos, quem subia ali era atrás de enriquecer. Por isso, matavam, estupravam mulheres, matavam crianças, faziam o horror. Por isso, quem já estava ali não desejava a presença de desconhecidos. E os aventureiros andavam por ali porque, até a década de 1940, Castelo era o maior produtor de borracha no Acre. Os chamados Arigós chegavam ali com a roupa do corpo e os que sobreviviam, que não morriam de impaludismo e outras febres, saíam ricos. Antes de embarcarem rumo ao Acre, eles ficavam em Manaus, onde eram treinados para serem seringueiros.

O Manuel Urbano, assim como todos os outros, só passava por ali atrás de alguma coisa, de terras, borracha, pele de animal. Eram todos aventureiros. O que sei dizer é que ele nem aportou lá no porto da cidade.

Como foi sua adolescência naquelas matas? Quais as lembranças que a senhora tem? 

Iolanda Fleming – Lembro que a única coisa que chegava lá de mercadoria para nós era só o sal e o querosene para as lamparinas. Tudo era produzido na terra. Dali saía o melhor cacau, a melhor cana-de-açúcar, o melhor amendoim. Era uma vida onde todo mundo era analfabeto, mas a vida era farta. Costumo dizer que, quem diz que seringueiro é burro, ele sim é que é burro. Aquela gente lá no Seringal, mesmo sem saber ler e escrever, sabia, por exemplo, tocar instrumento. Meu pai aprendeu a tocar clarinete, violão e outros instrumentos que não sei o nome. Tocava e cantava. Minha mãe também foi autodidata. Foi a primeira professora do Alto Purus. De lá de Manuel Urbano até Santa Rosa, ela que alfabetizou a grande maioria das pessoas que aprendeu a ler e a escrever naquela região. 

E como foi possível, naquela época, sua mãe poder sair para aprender alguma coisa e lecionar?

Iolanda Fleming – Por isso eu puxei tanto para minha mãe. Como ela, eu também queria crescer. Sei que um dia minha mãe chegou para o meu avô e disse que queria ir para Sena Madureira porque lá havia um doutor, creio que era o Epaminondas Jácome, que ensinava às pessoas. Ele concordou. Mandou minha mãe e minha tia Radir. Minha mãe logo foi alfabetizada, aprendeu a costurar e a fazer um monte de coisa. Quando minha mãe foi se apresentar para dar aula em Rio Branco, a diretora do colégio disse: mas a senhora vai se matricular gravida da sétima filha, com sete meses de gestante, a senhora não vai poder acompanhar. Minha mãe pediu uma chance. E conseguiu. Antes, minha mãe ficou em Sena e logo que aprendeu a ler e a escrever, o que ela fazia muito bem, foi chamada para vir dar aula em Rio Branco. Ela começou a lecionar aqui, na Escola Maria Angélica de Castro, mas um dia, teve um problema de saúde muito sério e precisava fazer uma cirurgia e aqui não tinha recursos técnicos para fazer. Aí mandaram ela para o Rio de  Janeiro. Quando ela voltou, ainda fragilizada pela cirurgia e com dificuldades para lecionar, o pai dessa escritora famosa, a Glória Perez (Miguel Ferrante), que era juiz, disse: eu vou aposentar a senhora porque o que a senhora fez pelo Brasil, nos seringais, o Brasil lhe deve muito. Aí ela pegou a tropa dela e foi embora para o Rio de Janeiro.

Iolanda com autoridades da época em desfile cívico/Foto: Arquivo da família

E a senhora, claro, foi junto?

Iolanda Fleming – Fui, mas não gostei. O Acre ainda era território. Eu devia ter por aí uns 18 anos. Aí eu voltei logo, e voltei sozinha para o Acre. Eu tinha o sonho de ser aeromoça internacional ou atriz de novela. Era meu sonho. O representante no território aqui era muito conservador e quando falei desses sonhos meus para ele, ele disse: Mas Iolanda, você quer ser atriz e isso não é profissão. A vida de atriz não é o que a senhora pensa. Na verdade, eu gostava muito da Dercy Gonçalves. 

Ela disse, em várias entrevistas, que não gostaria de ter casado e que só se casou por necessidade. É por isso que a senhora disse que não queria casar? A senhora se identificava com ela nisso?

Iolanda Fleming – Não, eu não queria casar porque achava que isso era muita responsabilidade e que iria me tirar de perto das minhas irmãs e da minha mãe. Minha mãe era uma mulher muito sofrida. Depois de tudo, ela ainda teve tuberculose..

Eu tinha o sonho de ser aeromoça internacional ou atriz de novela. Era meu sonho. O representante no território aqui era muito conservador e quando falei desses sonhos meus para ele, ele disse: Mas Iolanda, você quer ser atriz e isso não é profissão.

Mas ela viveu muito, não foi? Morreu com quantos anos? 

Iolanda Fleming – Ela morreu com 85 anos. Está fazendo dez anos que ela morreu. Ela está sepultada logo ali na entrada do Cemitério São João Batista. Mandei fazer um jazigo com quatro gavetas, para o Fleming, para mim e para os filhos. Mas morreu o  Fleming, o Marciliano (Reis Fleming, irmão de Geraldo Fleming), minha mãe e a Sandra (irmã mais nova, falecida vítima de câncer, em maio de 2015).

A senhora quer ir para lá também? 

Iolanda Fleming – Sim, quero não; eu vou! Minha família toda já sabe disso.

É verdade que a senhora não quer ser velada no Palácio Rio Branco, na Assembleia ou em outra sede de poder? Por que? Alguma mágoa?

Iolanda Fleming – Não é mágoa. Só não vejo méritos em eu ser velada na sede de qualquer poder.

Mas a senhora tem alguma mágoa da política?

Iolanda Fleming – Da política em si não. Talvez de algumas pessoas, mas da política não. Acho que sempre gostei de política. Inclusive quando eu assumi (o governo do Acre), a imprensa sulista me perguntou onde eu me situava ideologicamente, se de esquerda, direita ou de centro.

Não é mágoa. Só não vejo méritos em eu ser velada na sede de qualquer poder

O que a senhora respondeu?

Iolanda Fleming – Eu disse: eu sou pelo partido que trabalha pelos pobres, pelo ser humano. Minha origem é essa. Eu acho então que sou centro-esquerda.

A ex-governadora foi entrevistada em sua residência, em Rio Branco/Foto: ContilNet

Quem lhe incutiu essas ideias?

Iolanda Fleming – Eu sempre li muito sobre capitalismo, comunismo, socialismo. Agora mesmo ainda leio sobre isso. Conheci alguns comunistas.

Quem a senhora conheceu de comunista?

Iolanda Fleming – Geraldo Mesquita (governador do Acre de 1975 a 1979).

Mas como é que alguém, sendo comunista, pode virar governador de Estado em plena ditadura militar?

Iolanda Fleming – Mas rapaz… essa conversa chegou num ponto em que não quero falar. Do socialismo que eu conheci, havia o do Brizola (Leonel Brizola, ex- governador do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul), do Tancredo Neves. Mas vejo hoje que estamos caminhando no Brasil para uma guerra civil entre a esquerda e esse Bolsonarismo. Se não houver um equilíbrio, se não surgir um pacificador, sei não… Creio que tem que haver pacificação porque o socialismo que eu conheci é bem diferente desses incendiários, desses malucos. O socialismo não é nada disso não.

Mas vejo hoje que estamos caminhando no Brasil para uma guerra civil entre a esquerda e esse Bolsonarismo. Se não houver um equilíbrio, se não surgir um pacificador, sei não…

A senhora foi vereadora de Rio Branco não foi?

Iolanda Fleming –Sim, eu tive dois mandatos de vereadora, até 1978, quando me elegi deputada estadual. Fui a vereadora mais votada na época. Eu era professora e alfabetizava crianças. As crianças pediam aos pais, até brigavam com os pais, para que eles votassem em meu nome. Em algumas casas, por onde eu passava, em rua de gente que eu nem conhecia, e havia uma placa lá “Iolanda Vereadora”. Eu fui professora em todas as escolas de Rio Branco. Quando me aposentei eu já estava no Colégio acreano, dando aula de OSPB (Organização Social e Política Brasileira). Era a OSPB da ditadura. Fui professora dos filhos de muitos governadores, de gente que hoje é autoridade e de gente famosa, como o Carlão, aquele que foi campeão mundial pela Seleção Brasileira de Vôlei. Eu dizia aos meus alunos que era para respeitar a autoridade constituída mas não lhe permitissem colocar viseira.

A senhora dizia isso em plena ditadura e com um marido militar em casa?

Iolanda Fleming – Dizia e não tinha medo. Eu fui professora do Cerqueira (Edgar Pedreira de Cerqueira, que derrubaria o governador José Augusto de Araújo) e do filho dele, um menino de menos de dez anos, eu acho. Dava aula particular ao filho dele porque ele dizia que não iria misturar o filho dele com os meninos piolhentos do Acre. Era um bêbado, que só vivia na cachaça. Ele era amigo do meu marido e eu ouvia as conversas dele sobre os movimentos no país com o novo regime. Conversas para derrubar o governador. Um dia o Cerqueira disse para o Fleming se candidatar a governador, para derrubar o Zé Augusto. O Cerqueira disse: eu vim para essa porra, mas não vim para ficar aqui não. Te candidata Fleming!  O Fleming deu um pulo e disse: “se eu fizer isso, rapaz, a primeira coisa que vai acontecer é que eu vou perder minha mulher. Se eu fizer isso, ela me deixa. Eu não quero saber disso não. Aí o Cerqueira disse: “pois eu vou”. E, no dia seguinte, meteu o pé na porta da Assembleia e obrigou os deputados a votarem a renúncia do governador Zé Augusto. E todo mundo votou. Eu soube depois que teve gente que, diante das metralhadoras e baionetas, deputados, até mijou nas calças.

Dizia e não tinha medo. Eu fui professora do Cerqueira  e do filho dele, um menino de menos de dez anos, eu acho. Dava aula particular ao filho dele porque ele dizia que não iria misturar o filho dele com os meninos piolhentos do Acre.

Iolanda participando de soledidade com autoridades do anos 80/Foto: Arquivo da família

De que morreu o deputado Geraldo Fleming?

Iolanda Fleming – Para ser honesta, eu devo dizer que foi de bebida. Ele teve cirrose hepática e, quando acontece isso, o fígado endurece e depois vai derretendo aos poucos. Mas ele teve importância fundamental na minha vida política, embora a gente discordasse em alguns pontos (Fleming morreu em 1990, sem mandato, após ser derrotado na tentativa de ser reeleito deputado federal). .

A ideia de a senhora vir a ser candidata a vice na chapa do então candidato a governador Nabor Júnior, depois de ser eleita deputada e ter chance de uma reeleição tranquila, de quem foi? Quem poderia ser apontado como responsável pela ideia de fazer a senhora candidata a vice-governadora? Foi do Nabor Júnior?

Iolanda Fleming – Não, do Nabor não. Ele ouvia e ficava calado. A ideia foi dos convencionais do MDB, como o Sabiá, de Xapuri, de quem já falei aqui, do Cariolano Ferraz, de Feijó, gente de todos os lugares do Acre escreviam ofícios sugerindo meu nome. Diziam que, como o Nabor era do Juruá (Tarauacá), eu tinha que ser a vice por ser de Rio Branco, do Purus e contemplar todo o Alto Acre. Mas em Cruzeiro do Sul, havia  quem não quisesse meu nome.

Quem? A senhora pode dizer?  

Iolanda Fleming – Posso, sim. Isso é público. Quem era contra era o então deputado federal Aluísio Bezerra e o pessoal dele, o Padre Pacífico (Manuel Pacífico, ex-deputado estadual), o Pascoal (Torres Muniz, ex-militante do MDB e do PCdoB, o Murãoznho (Nilson Mourão, ex-presidente do PT e ex-deputado federal), que era muito forte no MDB.

Iolanda Fleming foi uma das mulheres mais poderosas do Brasil/Foto: Arquivo da Família

E por que eles não queriam? 

Iolanda Fleming – Porque, diziam, eu era mulher. Mas, no fundo, acho que eles eles queriam indicar alguém de lá do lado deles. Me boicotaram como puderam, mas os convencionais foram mais fortes. Depois de pelo menos dois dias com duas noites de reunião, no raiar do dia, toca o telefone e era dona Laudi Melo (esposa do então deputado estadual Raimundo Melo, pais do futuro governador Flaviano Melo). Ela disse: minha filha, pode se candidatar. Você será escolhida a vice-governadora.

A senhora não tem então do que se queixar do Nabor Júnior?

Iolanda Fleming – Eu digo até que ele me preparou para ser governadora, par suceder a ele. Na verdade, como vice, acho que tive mais tempo dentro do Palácio do que o governador, que, naquela época, tinha que viajar muito, ir muito a Brasília em busca de recursos. Eu ia também muito a ministérios e aqui no Estado o governador também me botava para receber ministros e ir a órgãos como Sudam, Suframa.

O Nabor me preparou para ser governadora, par suceder a ele. Na verdade, como vice, acho que tive mais tempo dentro do Palácio do que o governador, que, naquela época, tinha que viajar muito, ir muito a Brasília em busca de recursos.

A senhora foi de fato uma vice-governadora poderosa e assim acabou assumindo o governo naqueles 360 dias que de fato fizeram história, depois que o Nabor renunciou para concorrer e ser eleito ao Senado. A senhora, como governadora, coordenou as eleições dentro do seu partido e elegeu o governador Flaviano Melo, em 1986. Chegou a fazer parte do governo dele como secretária de Transporte, mas acabou saindo. O que conteceu?

Iolanda Fleming – O Flaviano Melo começou a mostrar-se na preparação para as eleições. Ele não queria o Osmir Lima (então presidente do Banco do Estado do Acre, depois eleito deputado federal) como vice. Vetou mesmo e acabou sendo escolhido o então deputado Édson Cadaxo, também lá do Juruá. O candidato a govenador natural deveria ser o Ruy Lino (então deputado federal), mas ele acabou caindo na besteira de dizer que estava com câncer e que não teria muito tempo de vida (de fato, ele morreu em junho de 1987, aos 62 anos de idade).. Os aliados do Flaviano se aproveitaram disso e cresceram dentro do partido.

Muito bem. Com o Flaviano Melo eleito governador, a senhora, ex-governadora, compõe o  governo como secretária de Transportes. Por que a snehora deixou o governo e já em 1988, era candidata a vice-prefeita do senhor Jorge Kalume, pelo PDS, que era um adversário histórico do MDB, com quem a senhora e o Nabor  Júnior haviam disputado inclusive o governo do Estado em 1982?     

Iolanda Fleming – Sai da Secretaria porque o governador Flaviano Melo trouxe na época um diretor para  Deracre e todos os recursos que eu deveria administrar, foram repassados para aquela autarquia. Como secretária de Transporte, eu virei uma espécie de Rainha da Inglaterra. Não mandava em nada. Ao ponto de um dia, eu soube depois, porque me contaram, eu pedi uma audiência ao governador para tratar dos problemas de umas pessoas que estavam ilhadas por causa da enchente do rio Acre, que estava começando, e ele mandou dizer assim: “Eu não recebo essa puta não”. A Toinha então primeira-dama, veio a mim, tentou me acalmar. Mas, já havia surgido aquele negócio da Flávio Nogueira, e mais esse episódio, aí eu concluí que dali eu não poderia esperar muita coisa e decidi sair. Estava começando então as articulações para o lançamento da candidatura do Jorge Kalume à Prefeitura de Rio Branco, pelo PDS. Como o pessoal soube que eu havia sído brigada com o Flaviano, me convidou para o PDS para ajudar o Kalume. Aí eu soube que o Flavano Melo mais uma vez disse: a Iolanda não tem voto não. Quem tem voto ali é o Fleming (Geraldo). Ai eu liguei para alguém do PDS e disse: traga a ficha de filiação que eu assino. Assim sai do MDB e fui ser a vice do Kalume.

Sai da Secretaria porque o governador Flaviano Melo trouxe na época um diretor para  Deracre e todos os recursos que eu deveria administrar, foram repassados para aquela autarquia. Como secretária de Transporte, eu virei uma espécie de Rainha da Inglaterra.

Na Prefeitura, mais uma vez a senhora foi uma vice-prefeita forte não foi? Foi a senhora que, no exercício do cargo de prefeita, decretou inclusive intervenção no sistema de transporte coletivo de ônibus da cidade. Conte como foi aquilo?

Iolanda Fleming – O prefeito Jorge Kalume, já um homem de idade e também doente, me disse uma vez que, no exercício do cargo, iria evitar ter raivas, ter problemas para não prejudicar suas úlceras. Então, quando havia um problema mais grave, ele me mandava resolver. Foi assim com o transporte público. Decidi pela intervenção no sistema e cheguei até ser ameaçada de morte por um diretor da empresa, que não convém citar o nome, acho que ainda estão vivos por aí O homem veio na minha casa com uma mala de dinheiro e me ofereceu além de um carro para eu não mexer no sistema. Mas eu ouvia as reclamações da população, dos estudantes, de todo mundo e decidi agir. Como eles se mostrara irredutíveis, sempre querendo aumento na tarifa e com uma prestação de serviço sempre ruim, decidi intervir e fui ameaçada de morte. O pessoal do serviço reservado de segurança foi quem cuidou de mim e da minha família.

Outro momento polêmico da sua história como política foi quando, como governadora, a senhora mandou a Polícia Militar ocupar a localidade de Extrema, na divisa com Rondônia. A senhora achava que a Extrema de fato pertencia ao Acre? 

Iolanda Fleming – Achava não; eu acho! A Extrema é território do Acre! Por direito é nossa, desde as demarcações das fronteiras que estabeleceram o rio Abunã como limite. Perdemos aquilo lá porque houve rolo e eu soube que correu uma grana muito grande para o Acre perder o território. Coisa de milhões de reais. O Govero do Estado não mandou sequer um representante defender o Acre na audiência no Supremo Tribunal Federal (STF).

Do tempo em que a senhora foi govenadora, do que a senhora se arrepende no Governo?

Iolanda Fleming – Não me arrependo de nada não. Só lamento que o tempo foi curto. Gostaria de ter feito mais escolas, mais saúde, mais facilidades nos transportes. Mas consegui fazer, por exemplo, o asfalto para Senador Guiomard. De vez em quando têm que consertar pela ação do tempo, mas a base do trabalho foi do meu governo e está lá até hoje, como um serviço de qualidade. O asfalto de Rio Branco a Porto Acre, fui eu que comecei e entrei com asfalto na sede do município. Deixei o Teatro Plácido de Castro para ser inaugurado pelo meu sucessor e eles demoraram para entregar a obra porque já naquela época não tinham interesse por teatro. Eu queria um teatro não por vaidade, mas porque conheço o valor e o potencial do setor cultural para o desenvolvimento de uma população. Penso que se houvesse mais prática teatral e artística, nossos jovens não estavam tanto no crime, nas facções. Quando se vai ao teatro, ou vai se dá gargalhadas ou se sai dali pensando, fazendo reflexões. A cultura é fundamental na vida de um povo.

Extrema é território do Acre! Por direito é nossa, desde as demarcações das fronteiras que estabeleceram o rio Abunã como limite. Perdemos aquilo lá porque houve rolo e eu soube que correu uma grana muito grande para o Acre perder o território.

Nessa eleição municipal, a senhora vai de que? Bocalom ou Marcus Alexandre, os candidatos que lideram a disputa?

Iolanda Fleming – Eu não tenho mais idade para votar. Nas eleições municipais passadas, não votei no Bocalom, mas agora torço por ele. Ele é um homem esforçado e não se ver escândalos na governança dele.

Iolanda evento do governo nos anos 80/Foto: Arquivo de família

Quem vivia no Acre naqueles tempos, lembra que a senhora, como governadora, de um dia para outro, deixou de assinar nos decretos oficiais o sobrenome Fleming e passou a assinar Lima. O que aconteceu?

Iolanda Fleming – Eu já estava divorciada do Fleming, não era amais mulher dele e não tinha porque assinar. Nós passamos mais de dez anos com separação de corpos, dentro de casa. Ai não deu mais, Pedi o divórcio, mesmo estando no governo.

Eu não tenho mais idade para votar. Nas eleições municipais passadas, não votei no Bocalom, mas agora torço por ele. Ele é um homem esforçado e não se ver escândalos na governança dele.

O ex-deputado Geraldo Fleming lhe batia? 

Iolanda Fleming – Não, jamais. Essa conversa surgiu quando eu criei a 1ª delegacia de proteção à mulher no Acre. As feministas queriam indicar a delegada e eu disse que não poderia ser uma pessoa sem formação policial. Aí disseram que o Fleming me batia, mas isso nunca foi verdade. Nos separamos mas, para mim, ai de quem dissesse que ela era feio. Nossa separação foi só pela questão da doença dele, da bebida.

O Yarzon era meu segurança, um piloto de avião, um ser determinado, bom até de tiro, que me oferecia muita segurança. Foi um guarda-costas, um verdadeiro cuidadoso comigo.

E nesses dez anos de separada, a senhora namorava? Me lembro que, durante seu Governo, apareceram bem uns dois dizendo que eram seus namorados. Um deles era o então deputado Pedro Yarzon. Vocês namoraram mesmo?

Iolanda Fleming –  Nada… O Yarzon era meu segurança, um piloto de avião, um ser determinado, bom até de tiro, que me oferecia muita segurança. Foi um guarda-costas, um verdadeiro cuidadoso comigo. Era um homem prestativo, muito ativo no trabalho. Ele pilotava um avião do Banacre, que era cedido ao Governo. Ele era tão dedicado que dormia dentro do avião para não permitir sabotagens. É um rapaz de boa família. Só irmãos são oito. Uma família trabalhadora, honesta, dedicada, que adotou o Acre. Alguns fizeram faculdades, outros seguiram várias profissões. Ele casou, tem uma família em Cruzeiro do Sul e me disseram que está bem. Mas chega de falar da minha vida.

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