25 de abril de 2024

Menos Hashtag, mais brincadeira do mamão

Confesso. Diverti-me ao ver aquela negra com quase o dobro do meu tamanho e peso mostrar a palma da mão estendida e dizer, sorrindo ‘dou-lhe uma mãozada’.

Todos riram na sala de aula.

Dava uma palestra, a convite de uma professora, sobre minha experiência de convivência com os índios do Acre. O objetivo era mais tentar trazer um pouco da cosmovisão indígena a respeito do uso medicinal, e sagrado, das plantas da floresta.

Mas, lá pela tantas, uma aluna mais afoita acabou entrando no bendito assunto de gênero, perguntando sobre como se davam estas relações na aldeia.

Comecei a expor, meu ponto de vista, bastante limitado, uma vez que minha experiência se restringe a apenas a alguns povos indígenas, e estas relações variam bastante.

A palestra rapidamente mudou de tom, e, em uma sala de aula de absoluta maioria feminina, acabei me tornando o alvo de dezenas de perguntas, questionamentos e argumentações, claramente pontuados de alguma revolta atávica contra o masculino.

Mas ali, os mesmos questionamentos que nas redes sociais me causariam náuseas, ganharam uma dinâmica diferente, de aprendizado e trocas mútuas, e de repente, era eu que estava aprendendo, e (espero que isso não seja ‘pecado’) me divertindo muito com isso.

O insight que me veio no momento, foi a realmente a questão dos corpos. A presença física das mulheres com suas questões mudou completamente a percepção daquilo que é dito.

Lembrei-me das chamadas ‘brincadeiras’ que acontecem nos festivais indígenas daqui do Acre.

Diria que boa parte delas carrega consigo um pouco ‘revanchismo’ das mulheres em relação aos homens.

Agora os homens são os queixadas e elas, as caçadoras. Só para que possam abatê-los, arrastá-los pelo terreiro, tirar-lhes os couros, e com especial dedicação, simular a retirada dos testículos, não sem que isso traga alguma dor real ao processo completo de evisceração simbólica das vítimas homens-queixadas.

Imagino que mais tarde se siga o processo completo de antropofagização dos corpos, mas creio que esta parte da celebração ocorra em âmbito privado.

Uma das brincadeiras mais típicas dos povos indígenas da região é a chamada ‘brincadeira do mamão’, que possui variantes, onde o mamão é substituído pela cana, ou por um jabuti, ou qualquer coisa que possa ser agarrada por um homem para que as mulheres o tirem dele à força.

A celebração parece ter relação com a fartura de colheita e caça, já que este algo a ser defendido pelo homem é sempre destinado à alimentação.

Então o homem agarra o mamão (ou cana, ou jabuti) com todas as suas forças e espera que venham, elas retirar-lhes à força. A elas tudo é permitido. Tapas, socos, puxões de cabelo e pancadas nos testículos. A ele, só resta resistir o máximo que puder, dificultando o acesso delas, ao alimento.

O valor simbólico da brincadeira e seu conteúdo catártico é um prato cheio para estudos antropológicos. Certamente que a psicanálise encontraria aí ricos elementos que foram perdidos em nossa neurótica sociedade moderna, ora ressuscitados sofrivelmente, pelas hashtags nas redes sociais.

A brincadeira do mamão talvez ensine que certas batalhas não são feitas para serem vencidas, mas sim, para testar o valor e a força de todos e de cada um perante o seu coletivo, e com isso, fortalecer o próprio coletivo.

Não há como evitar que elas fiquem com todos os mamões ou jabutis. A eles sobram apenas escoriações e marcas de uma simbólica, porém real, violência e talvez algum orgulho por ter dado bastante trabalho a elas.

Mas, no final, todos comem.

 

*Leandro Altheman é jornalista e escritor do livro “Muká, a Raiz dos Sonhos” [email protected]

 

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