23 de abril de 2024

‘Coração cachorro’: hit nacional do fim de 2021, forró ganhou o mundo e rendeu acordo inusitado com James Blunt

Todo mundo já passou ou conhece alguém que precisou lidar com uma situação como essa: após o término de um relacionamento, passado o período de reclusão voluntário e superada a saudade, a pessoa se sente mais disposta e topa o convite de um amigo para sair. Eis que, ao chegar, na mesa do bar, “deu tudo errado, olhei pro lado. Era você na outra mesa, acompanhada”, como narra Ávine Vinny, cearense de Sobral, no forró eletrônico “Coração cachorro”. Até aí, tudo bem, poderia ser mais um hit popular dos nossos tempos que canta situações sofridas do cotidiano, como o sertanejo e, mais recentemente, a pisadinha, fazem muito.

Só que vem o refrão e, no clímax,a amargura vira deboche. Embalado pela saudade revivida, o tal coração cachorro, a quem Ávine dá voz, literalmente uiva: “Auuuu/ late coração cachorro/ late coração”, canta ele, enquanto entra de vez o som típico de teclados e baterias eletrônicas da pisadinha. Essa fórmula criou um dos maiores hits deste fim de 2021 — foram cerca de 90 milhões de reproduções em áudio e vídeo, mais de 30 dias consecutivos em primeiro lugar no ranking do Spotify (perdido após a morte de Marília Mendonça) e rendeu mais de 1 milhão de vídeos no TikTok, onde obviamente viralizou.
— Ninguém espera que o coração uive. Foi o que fez a música ficar realmente fora da curva. Quando terminamos, já sabíamos que seria sucesso — admite Daniel dos Versos, um dos seis compositores iniciais do hit, responsável por transformar o que seria “Coração acorrentado” em “Coração cachorro”. — O uivo foi sugestão do PG do Carmo (outro compositor). Na hora, caímos na gargalhada. Era o encaixe. Uma melodia muito forte, com refrão marcante, pegajoso, dançante. Uma música fácil de viralizar no TikTok. Chiclete.
A partir do alto: James Blunt, Matheus Fernandes e Ávine Vinny Foto: Arte O Globo

A partir do alto: James Blunt, Matheus Fernandes e Ávine Vinny Foto: Arte O Globo

‘Solução debochada’

A lista de compositores ganhou uma sétima e inusitada adição já depois da explosão de “Coração cachorro”: o cantor e compositor britânico James Blunt, conhecido pela balada “You’re beautiful”. Isso porque o uivo em questão traz clara inspiração (ou “citação comprovada”, como diz Daniel) ao refrão melódico de “Same mistake”, sucesso nacional quando entrou na novela “Duas caras”, de 2007.

— É uma memória afetiva subvertida — resume o pesquisador sergipano Lucas Prata Fortes, que estuda o forró eletrônico desde sua origem até a explosão recente da pisadinha. — Você tem uma música que tocou muito há 14 anos, num contexto de balada romântica gringa, e você transforma em algo que jamais imaginaríamos, uma solução debochada para uma situação triste. Isso somado à pisadinha, que é dançante. Quando toca em festas, as pessoas dançam e dão risada.

Ávine Vinny, cantor de 32 anos conhecido no Nordeste, vive com “Coração cachorro” seu primeiro grande reconhecimento nacional (“a gente já vinha acertando coisas regionais, mas agora consegui furar a bolha”). Conta que as pessoas uivam para ele na rua quando o reconhecem. Ele mesmo passou dois dias uivando sem parar quando recebeu a composição de um dos seus produtores. Ainda assim, teve que driblar alguns amigos e parte da equipe, que achavam “empírica demais”.

— Que bom que não escutei! (risos) Eu já tinha uma agenda de shows agitada no Nordeste, 25, 28 por mês, mas agora em dezembro vou fazer 32 shows no Brasil inteiro — comemora Ávine, que convidou o amigo Matheus Fernandes, estourado em 2021 com a mistura de forró e pagode “Baby me atende”, para cantar com ele. — O timming da música foi perfeito. Passamos dois anos sem shows, sem dinheiro nenhum para investir em música nova, e veio “Coração cachorro”, que é um hit viral. Não gastamos nem 1% do que normalmente é necessário para impulsionar uma música.

Quando perguntado sobre a semelhança entre o uivo de “Coração cachorro” e o trecho de “Same mistake”, Ávine Vinny não cria desculpas:

— Não dá para não notar, a semelhança aparece de cara. A música dele foi tema de novela aqui no Brasil. É surreal pensar que eu, um cantor cearense, fui notado por um cara como ele. É como foi com “Ai se eu te pego” (hit de Michel Teló que tocou muito nas pistas europeias).

Para inglês ouvir

Pois é, o viral foi tamanho que, claro, chegou a James Blunt na Inglaterra através das citações nas redes sociais. Num primeiro momento, o músico de 47 anos se divertiu, gravou vídeo dançando o hit brasileiro e brincou que “mandaria os dados bancários”. No último dia 13, porém, foi confirmado que ele passou a ser um dos compositores da música e terá direito a 20% dos direitos autorais.

— Fiquei grato. De várias formas, eles trouxeram visibilidade para as minhas próprias músicas através da deles — admite Blunt, que está revisitando sucessos como “You’re beautiful” , “Same mistake” e “1973” através da coletânea “The stars beneath my feet”, recém-lançada nas plataformas de streaming com quatro canções inéditas.

Se o britânico já tinha imaginado seu refrão virando um uivo de cachorro?

— Não! E aí que está a parte criativa do que eles fizeram. Eles ouviram minha música, ficaram com ela na mente e usaram esse trecho como gancho para sua canção, de uma maneira especial.

É uma tradição do forró eletrônico, desde Calcinha Preta e Aviões do Forró, fazer versões de hits internacionais sem pedir qualquer tipo de autorização. De A-ha a Scorpions, muitos já tiveram suas canções adaptadas. A novidade, aqui, é ter gerado um acordo amigável internacional.

— Com a globalização e o avanço da internet, a música se tornou global por natureza. Os editores das obras originais agora têm subeditores no Brasil, e fica mais fácil para eles detectarem e reportarem aos estrangeiros. Vai ser cada vez mais comum de acontecer. É importante que as pessoas, sempre que possível, se atenham que as autorizações precisam ser dadas antes da gravação, assinadas e por escrito — aconselha a advogada Daniela Colla, que atua há mais de 16 anos com direitos autorais e direito de entretenimento.

Vem feat. aí?

Ávine Vinny, inclusive, faz questão de agradecer a disposição dos compositores para entrarem num acordo com os representantes de Blunt — uma disputa judicial poderia tirar “Coração cachorro” do ar nas plataformas de streaming, por exemplo. Pelo contrário, a música chegou a entrar no ranking da revista “Billboard” de 50 músicas mais tocadas no mundo. Já pensou aproveitar a divulgação para trazer James Blunt oficialmente para o forró?

— Seria um sonho legal demais um cantor cearense de forró gravar com ele (risos) — aposta Ávine.

Blunt dá corda:

— Adoraria, com certeza! Eles parecem se divertir muito fazendo música, é um prazer assistir a esse sucesso — diz ele, que não conhecia o forró até virar compositor de um.

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