O resultado das eleições primárias na Argentina surpreendeu e causou uma forte onda de aversão ao risco no mercado financeiro local. O sentimento negativo dos investidores vem das ideias do vencedor das primárias, o candidato de extrema-direita Javier Milei, que pretende dolarizar a economia argentina e fechar o banco central do país.
As medidas são vistas pelo político, que se autodeclara um “anarcocapitalista”, como a solução ideal para a grave crise econômica que atinge o país latino-americano há anos. Atualmente, a inflação argentina está em inacreditáveis 115,6% em 12 meses, com juros em 118% ao ano. A taxa de câmbio já se desvalorizou o peso argentino em quase 40% só em 2023.
De acordo com especialistas ouvidos pelo g1, a ideia de Milei de dolarizar a economia pode trazer alguns benefícios rápidos para a Argentina, com destaque para a queda da inflação e o fim da venda de dólares com uma cotação extraoficial, como o dólar blue.
No entanto, a medida não resolve todos os problemas econômicos no país e pode trazer outras consequências negativas, já que os rumos da moeda e da economia como um todo ficariam totalmente vinculados e dependentes das decisões do Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos.
Efeitos sobre a inflação
Nesta segunda-feira, com a perspectiva de mudanças na Argentina, o mercado financeiro reagiu com um disparo da cotação do dólar blue, batendo os 670 pesos. Em momentos como esse, o banco central passou a agir e decidiu fixar a taxa de câmbio oficial do país em 350 pesos até o fim das eleições, marcadas para outubro, e subir a taxa de juros do país.
É o tipo de ação que a Argentina não teria controle, em caso de concretização dos planos de Milei de acabar com o BC.
Sobre a dolarização da economia, o professor de economia da FIA Business School, Claudio Felisoni, diz que ela pode ocorrer de forma formal ou informal. Na primeira delas, é o governo que instituí a substituição da moeda local pelo dólar, enquanto na segunda, a população passa a utilizar o dólar para compras de bens ou serviços pela falta de confiança que se tem na moeda local.
No caso da Argentina, a economia já é parcialmente dolarizada informalmente e muitas pessoas já usam a moeda americana para as trocas comerciais.
Isso acontece porque a população, acostumada com severidade da crise econômica, já sabe que a inflação pode desvalorizar ainda mais o peso argentino e, assim, utiliza o dólar por ser uma moeda mais segura e menos instável.
Com uma adoção do dólar como moeda oficial pelo governo, então, a dolarização seria completa e o peso pararia de circular. O principal impacto, segundo os especialistas, seria sobre as pessoas (principalmente as de baixa renda) que passariam a receber seus salários também em dólar, sem precisar mais trocar as moedas, sujeitas às fortes oscilações das taxas de câmbio.
O efeito mais imediato seria a estabilização dos preços, afirma Reginaldo Nogueira, economista e diretor do Ibmec, já que com a dolarização, o governo do país não pode mais emitir moeda.
“A partir do momento em que o banco central e o governo não podem mais imprimir sua própria moeda, porque sua moeda agora é a moeda americana, isso impede que o governo simplesmente inunde o país com notas de papéis para financiar déficit público e que isso continue gerando inflação”, pontua.
Além disso, com a dolarização feita em um mundo ideal, os preços internos são equalizados aos preços dos produtos importados, para que haja competitividade, também segurando a pressão inflacionária.
Por fim, a adoção do dólar oficialmente tende a eliminar o mercado de câmbio paralelo, que cobra um preço muito maior na venda da moeda por pesos argentinos. “Haveria a unificação do câmbio. Não haveria mais dólar Coldplay e outras excentricidades“, comenta Nogueira.
País perde o controle da política monetária
Enquanto o controle da inflação seria o principal efeito positivo, a maior desvantagem de uma dolarização da economia é a perda do controle sobre a política monetária. Em outras palavras, como explica Claudio Felisoni, o banco central perde o seu principal papel, que é controlar os juros para buscar uma estabilização econômica.
A Argentina ficaria dependente, portanto, de decisões tomadas com base nas necessidades dos Estados Unidos, sem considerar o momento econômico de um país que decidiu por sua conta adotar o dólar como moeda oficial.
Em outras palavras: o banco central americano, o Fed, passaria a definir indiretamente os rumos das taxas de juros argentinas.
Dessa forma, se os Estados Unidos estiverem em um momento de inflação alta, por exemplo, e o Fed optar por subir os juros, o movimento natural é que o dinheiro de investimentos e da própria população migrem para os títulos públicos americanos, que estarão com uma boa rentabilidade. Isso desaquece o consumo não apenas no país, mas também em qualquer outro que use o dólar, independente do momento econômico.
A ideia oposta também é válida: em um momento de baixo consumo nos Estados Unidos, o Fed poderia cortar os juros para estimular a atividade econômica lá, mesmo que os outros países que usem o dólar precisem contar o avanço dos preços internamente.
Nogueira, do Ibmec, considera a dolarização como uma “amarra às mãos do poder público”, já que ele perderia a capacidade de estimular o consumo ao emitir moeda.
Vale pontuar, entretanto, que um banco central tem outras tarefas para além da definição das taxas de juros e que, com uma eventual vitória de Javier Milei e o possível fechamento da instituição na Argentina, outros problemas poderiam aparecer.
“O banco central é o regulador do sistema financeiro, ele é um emprestador de última instância, ele zela pela segurança do sistema bancário. Então o fim do banco central teria que ter que vir junto com o encaminhamento de novas regras e de uma nova agência reguladora. É uma mudança institucional extremamente complexa e precisaria de muito mais detalhes porque não é simplesmente ‘vou adotar o dólar e o banco central vai acabar'”, diz Nogueira.
Só a dolarização não basta
Segundo Felisoni, da FIA Businesse School, “a Argentina chegou em uma situação que demanda uma medida extrema”.
Há outros países que adotaram o dólar como moeda oficial em meio a crises econômicas, como o Equador, em 2000, e o Zimbábue, em 2015. Os especialistas, porém, destacam que só a dolarização não é o suficiente para reverter a situação econômica do país.
Na década de 1990, houve uma tentativa de estabilizar a economia da Argentina inserindo uma paridade 1:1 do dólar com o peso conversível. O plano econômico ficou conhecido como Plano Cavallo.
Com a paridade, a economia ficou, na prática, dolarizada. Acontece que o governo falhou em reduzir o déficit público e também não investiu em uma agenda para atrair investimentos estrangeiros e incentivar exportações.
Agora, portanto, a solução teria de passar, primeiramente, por uma forte modificação na política fiscal argentina, para que o país conseguisse diminuir significativamente suas dívidas e seus gastos, pontua Nogueira, do Ibmec.
Junto a isso, o governo teria de adotar medidas de favorecimento ao investimento estrangeiro dentro do país, além de incentivar as exportações por parte dos produtores internos, já que essas são as formas possíveis para que a Argentina aumente suas reservas em dólar e coloque a moeda em circulação.
O economista finaliza dizendo que é de extrema importância que, para uma dolarização da economia, seja muito bem desenhada a transição cambial, para que o governo não fique sem reservas para pagar suas contas e para que a população também tenha suas reservas em dinheiro.