Lugar de autista é em todo lugar: acadêmicos no Acre falam sobre desafios que enfrentam na universidade

Falta de amparo por parte da instituição e de empatia pelos professores e outros alunos, discentes com TEA reclamam da acessibilidade na instituição

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um distúrbio que afeta o desenvolvimento neurológico das pessoas dentro deste espectro, o que pode afetar diversas de suas capacidades, principalmente relacionadas à comunicação e interação social, podendo, muitas vezes, apresentar comportamentos repetitivos e estereotipados.

A fim de incentivar a conscientização acerca do TEA, dos problemas, dificuldades e suas especificidades, foi criado, pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 2007, o dia mundial de conscientização sobre o autismo, comemorado no dia 2 de abril. 

Entretanto, é muito comum que as políticas públicas e os olhos da população se voltem apenas para o público infanto juvenil, porém, crianças e a adolescentes autistas chegarão, um dia, a ser um adulto dentro do espectro, e esta parte do grupo também enfrenta dificuldades relacionadas às peculiaridades do transtorno. 

O TEA continua afetando as rotinas e interações mesmo na vida adulta/Foto: Reprodução

Mathias Melo é estudante do curso de Psicologia na Universidade Federal do Acre (Ufac), foi diagnosticado com 19 anos. Atualmente com 20, ele relata algumas situações que enfrentou, desde o momento que foi aprovado, e precisou sair de Cruzeiro do Sul e vir para a capital Rio Branco. 

“Tive mais dificuldades com todo o processo de vir para cá do que o esperado, o cansaço e esforço mental, para me manter funcional durante todo o processo é difícil, além disso, a universidade não tem estrutura para o acolhimento de pessoas no espectro, e o entendimento de nós por parte deles é baixo”, explica ele.

O Núcleo de Apoio à Inclusão (NAI) existe dentro da instituição, entretanto, de acordo com o relato do aluno, sua atuação é ineficiente. “A diretoria que cuida do NAI parece não ter conhecimento sobre questões relativas ao tratamento com pessoas neuro divergentes, sendo muito difícil estabelecer um diálogo satisfatório com eles”. 

Melo ainda cita problemas com o restaurante universitário (RU), que é um lugar de grande importância para os alunos que, por quaisquer razões, não conseguem almoçar fora da universidade. 

O ambiente não é adequado e gera alguns problemas para algumas pessoas dentro do espectro. “O RU é um local de difícil acesso, a fila preferencial não é bem organizada, o que leva ao constrangimento de qualquer pessoa sem deficiências aparentes e que tente usá-la, além disso, a acústica é muito ruim, causando uma sobrecarga sensorial em muitas pessoas”, continua o estudante.

Dentro do espaço, caixas de som estão espalhadas e música é reproduzida através do sistema de som, além disso, em certos dias da semana um palco com microfone aberto fica à disposição para que apresentações ao vivo aconteçam, entretanto, devido à arquitetura do ambiente, a forma como o som reverbera sobrecarrega os sentidos de alguns dos neurodivergentes, o que por vezes torna o espaço inacessível para esse grupo. 

Mathias Melo usa de fones de ouvido com supressão de ruido e abafadores para diminuir o desconforto causado pela hipersensibilidade/Foto: Arquivo Pessoal

Sophia Neves, 22, também é aluna da Ufac, e foi diagnosticada há pouco tempo, em outubro de 2023, mas relata que utilizar o restaurante da universidade sempre foi uma dificuldade. 

“É tão barulhento que toda vez que tento comer lá, fico com ânsia de vômito e não consigo me concentrar ou conversar com as pessoas pelo resto do dia devido a sobrecarga”, conta Neves.

Melo  revela ainda que os professores por vezes são intransigentes com as dificuldades enfrentadas por ele, sendo difícil argumentar ou negociar em certos momentos.

“A experiência com os professores e alunos não é das melhores , a maioria dos deles  acabam não entendendo muito bem sobre as dificuldades dos alunos, dificultando tanto o diálogo quanto o entendimento das dificuldades que há dentro e fora da sala de aula, mesmo no curso de psicologia enfrentamos esses problemas”.

Neves também já enfrentou problemas nas relações com os professores e outros alunos. De acordo com ela, alguns não entendem que o barulho pode afetá-los de maneira diferente, fazendo com que certas atividades sejam muito mais difíceis de serem realizadas em ambientes barulhentos.

 “Já fiquei sem entregar trabalho porque tive uma crise no dia, já tive de sair da sala de aula por conta do barulho do ar-condicionado, já tive discussões com colegas por conta de barulho, já deixei de entregar um trabalho pro professor pois o TDAH estava atrapalhando e a lista segue”, relata. 

É importante lembrar que, em raros casos, o autismo é o único tipo de neurodivergência, sendo muito comum que o diagnóstico venha atrelado a outras comorbidades, sendo a mais comum delas o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).

Registro de uma das reuniões do Coletivo Atípico Estudantil da UFAC/ Foto: Arquivo Pessoal

A jovem ainda diz que a comunicação sobre direitos, auxílios e recursos destinados a pessoas com TEA são mal divulgados dentro da instituição, tornando-os de acesso ainda mais dificultoso. 

“Eu só fui descobrir as informações em relação à apoio à pessoas neuro divergentes dois anos depois de ter ingressado na universidade, as monitorias, auxílios, questões relacionadas ao apoio dentro da sala de aula, tudo isso eu descobri por conta própria ou por outras pessoas”, explica Neves.

A estudante ainda diz se sentir negligenciada pela instituição, pois mesmo quando o contato com o NAI é tentado, ela se sente ignorada. “O próprio NAI é extremamente preconceituoso com deficiências invisíveis, no sentido de ele ignorar bastante a gente, nossos e-mails, pedidos de reuniões, reivindicações de mudança, entre outras coisas”.

Ela ainda revela que foi levada uma denúncia ao NAI sobre capacitismo por parte de professores e outros funcionários da instituição, contra alunos com TEA. Foi prometido que um projeto de extensão aconteceria para ensinarem monitores sobre deficiências invisíveis e realizar cursos com os professores acerca do tema, mas que nada havia sido feito até o momento, de acordo com a aluna.

Sophia Neves diz que existe um coletivo para realizar ações junto a universidade, e para tentar acolher essa parcela de alunos existe, mas que o grupo não é ouvido de maneira adequada por parte da instituição. O trabalho pode ser acompanhado através do perfil do coletivo no Instagram, @cadufac

Mathias Melo também comentou das situações enfrentadas dentro das salas de aula, e as dificuldades existentes dentro da universidade. “ A minha sala é difícil de permanecer dentro, o ar-condicionado é muito barulhento, os órgãos são informados mas não é feito nada, muitas pessoas precisam se regular após as situações de sobrecarga sensorial, e os momentos e atitudes relacionadas a isso são mal vistas pelos colegas e professores do curso.

Trabalhos em grupo, ou que precisam ser realizados dentro de salas de aula, ou certos ambientes de muito estímulo, são dificultosos. “ Trabalhos em grupo e dentro de sala acabam sobrecarregando a hipersensibilidade das pessoas com autismo , dificultando a concentração e a permanência dentro de sala nessas atividades”.

Melo ainda cita um despreparo geral da Ufac em relação a pessoas autistas e que um diálogo maior seria necessário. “Há muito despreparo tanto da instituição e órgãos da mesma , quanto da cultura geral dos alunos e docentes, sendo necessário maior diálogo e atenção para as necessidades das pessoas com TEA”, explica.

Por fim, o aluno diz que felizmente conseguiu criar uma rede de apoio com outros alunos dentro da universidade, e que isso facilita o convívio e a trajetória acadêmica, entretanto, que isso não deveria ser algo que ocorre ao acaso, e que a universidade deveria auxiliar os alunos neste quesito.

“Felizmente no curso , encontrei muitas pessoas com TEA que me acolheram e me ajudaram em diversas situações que passei, me sentindo menos culpado e mais acolhido e amado, espaços assim , com a compreensão de pessoas sobre essas necessidades e dificuldades, podem se tornar não só um espaço mais receptivo e adequado pra pessoas com TEA , mas também um espaço acolhedor para o ser humano como um todo , de maneira a diminuir o julgar e aumentar o compreender”, finaliza ele.

Posição do NAI

A coordenadora no NAI, Carla Perez, afirma que existem levantamentos do quantitativo de alunos neuro divergentes, sendo 54 autistas, até o fim de 2023, e que isso é utilizado para o planejamento das ações a serem realizadas, entretanto, de acordo com ela, os processos de burocracia interna fazem com que a execução dos planos seja demorada.

“Como o processo de Inclusão caminha a passos lentos em todos os órgãos públicos, ou seja estão se ajustando nesse modelo inclusivo e a Universidade não é diferente, estamos nesse processo de elaboração de uma política inclusiva para atender não apenas os discentes com TEA, mas para todos os acadêmicos com deficiência”, explicou.

O Núcleo de Apoio a Inclusão afirma que projetos estão sendo construídos para melhor atender aos alunos com TEA/Foto: Reprodução

Acerca dos planos sendo realizados, ela afirma que as ações realizadas no dia a dia tomam muito tempo, o que dificulta o andamento destes projetos. “No momento estamos em discussão, após o último fórum sobre esse assunto que ocorreu, portanto, em relação a ações, não tenho como falar. Além disso, leva tempo e enquanto núcleo, temos outras ações diárias que demandam tempo”, relata

Ao ser questionada sobre possíveis orientações repassadas aos professores, ela explica que, quando necessários, ações são realizadas junto ao corpo docente. “Os professores recebem as devidas orientações quando necessário, através de palestras, seminários, dentre outras ações, quando procuram o núcleo”, encerrou ela.

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