Quando criança, Gabriele Amorth costumava ir à missa aos domingos levado pelos pais em Modena, cidade onde nasceu, a 330 quilômetros de Roma. Mas, em vez de prestar atenção à homilia do padre, gostava de brincar de esconde-esconde pela igreja.
Sua mãe até tentava convencê-lo a ficar quieto, mas não adiantava. Só passou a fazer silêncio quando a mãe ofereceu, como prêmio por bom comportamento, um doce.
O que ela não podia imaginar é que, um dia, aquele garoto travesso se tornaria o exorcista mais requisitado do mundo.
Com mais de 60 mil exorcismos no currículo, Amorth já escreveu dezenas de livros, virou tema de documentário na Netflix e, a partir desta quinta-feira (6/4), terá sua vida retratada no cinema.
No filme O Exorcista do Papa, adaptado por Julius Avery a partir de dois de seus livros — Um Exorcista Conta (1990) e Novos Relatos de Um Exorcista (1992) —, o personagem-título é interpretado por Russell Crowe.
“Quem melhor do que o gladiador para enfrentar o diabo de igual para igual?”, brinca um dos produtores do longa, Michael Patrick Kaczmarek.
Em O Último Exorcista (Ecclesiae, 2012), escrito em parceria com o jornalista italiano Paolo Rodari, Gabriele Amorth (1925-2016) compara o ritual a uma batalha.
Antes de enfrentar seu oponente, costumava fazer um ato de contrição e, em seguida, vestir sua armadura — uma estola roxa, mais longa do que a usada na missa. Logo no início do ‘combate’, gostava de colocar uma das abas do paramento sobre os ombros da pessoa a ser exorcizada.
Na Roma Antiga, os gladiadores ganharam esse nome por usarem gládios: espadas curtas e de dois gumes. O gládio do exorcista é o crucifixo. O de Amorth trazia a medalha de São Bento.
Mas, se os gladiadores usavam outras armas, tanto de defesa (como redes e escudos) quanto de ataque (lanças e tridentes), os exorcistas também dispõem de outros sacramentais, como a água benta e o óleo santo.
Com um, asperge a cabeça do possesso; com outro, produzido com os óleos do Batismo e da Unção dos Enfermos, faz o sinal da cruz em sua testa.
‘Não tenha medo’
Gabriele Amorth nasceu no dia 1º de maio de 1925. Na infância, praticou esportes, como esgrima e basquete. Ainda jovem, lutou na Segunda Guerra Mundial — chegou a ser condecorado com uma medalha por bravura militar. Já adulto, tentou a política no Partido da Democracia Cristã. Filho e neto de advogados, formou-se em Direito e Jornalismo. Quanto à vocação sacerdotal, descobriu-a cedo, por volta dos 12 anos. Por incentivo do padre Tiago Alberione (1884-1971), fundador da Pia Sociedade de São Paulo, tornou-se paulino.
Amorth foi ordenado sacerdote em 24 de janeiro de 1954 e nomeado exorcista no dia 11 de junho de 1986. Em Investigação Sobre o Demônio (Petra, 2022), escrito a quatro mãos com o jornalista italiano Marco Tosatti, Amorth, ao ser indagado sobre o porquê de sua decisão, responde com a franqueza habitual: “Não decidi nada”.
E não decidiu mesmo.
Quem decidiu foi o bispo vigário de Roma, o cardeal Ugo Poletti (1914-1997). São eles, os bispos, os responsáveis por delegar aos padres de suas dioceses o poder conferido por Jesus de expulsar demônios.
Naquela manhã de 1986, Amorth acordara com vontade de visitar o bispo de Roma. Motivo? Contar uma ou duas piadas novas que aprendera para alegrar seu dia. Como de hábito, não agendou horário nem marcou visita.
Chegou de surpresa, tocou a campainha e foi recebido. Entre uma conversa e outra, falou de sua admiração por padre Cândido Amantini (1914-1992), o então exorcista da diocese de Roma havia 36 anos. Nessa época, Amantini chegava a atender, só na parte da manhã, de 70 a 80 pessoas com suspeita de possessão diabólica.
“Você conhece o padre Cândido?”, perguntou Poletti, surpreso. “Sim!”, respondeu Amorth.
“Quis conhecer, por curiosidade, o local onde ele faz os exorcismos, o Santuário da Escada Santa, a poucos metros daqui. Eu o conheci e, de vez em quando, vou visitá-lo”, explicou.
Nessa hora, Poletti abre uma gaveta de sua escrivaninha, pega uma folha com o timbre da diocese e, em silêncio, começa a escrever. Dali a pouco, coloca a folha em um envelope e, com um sorriso, o entrega a Amorth: “Parabéns!”.
Intrigado, o visitante não soube o que responder. Na dúvida, leu o conteúdo do envelope: “Eu, cardeal Ugo Poletti, arcebispo vigário de Roma, nomeio o padre Gabriele Amorth, religioso da Pia Sociedade de São Paulo, exorcista da diocese. Ele colaborará com o padre Cândido Amantini enquanto for necessário”.
“Eminência, eu…”, gaguejou o padre. “A Igreja tem desesperada necessidade de exorcistas”, interrompeu o cardeal.
“Mas, o senhor me conhece, sabe que sou bom apenas em contar piadas e fazer brincadeiras”, insistiu. “Padre Cândido, faz tempo, pediu-me um ajudante. Sempre dou desculpa. Quando me disse que o conhecia, percebi que não posso demorar mais. O senhor fará bem o trabalho. Não tenha medo”, encorajou Poletti.
‘Qual é o teu nome?’
Dias depois, ainda pensando “Quem sou eu para combater o príncipe das trevas?”, Amorth entregou a carta com a nomeação do bispo a Amantini.
O padre pegou um exemplar do Rituale romanum, do Papa Paulo 5º, e o entregou a Amorth.
“Leia as 21 regras que precedem o rito. Decore-as. Sem essas regras, será derrotado”, advertiu.
Nem todos os que se dizem possuídos estão, dizia uma delas. A maior parte sofre apenas de problemas psicológicos.
“Se a pessoa não foi ao psiquiatra, não a exorcizo”, explica Amorth. “Primeiro, quero ver o diagnóstico”.
Os principais sinais de possessão, ensina o livro de 1614, são falar línguas desconhecidas, manifestar fatos ocultos e demonstrar força superior à sua condição física.
Certa vez, durante uma sessão, Amorth viu um menino de 11 anos ser segurado por quatro homens robustos. “O rapazinho os fazia voar”, ilustra. Noutra ocasião, um menino de dez anos levantou uma mesa pesada acima da cabeça. “Jamais teria conseguido sozinho”, atesta.
Mas o sintoma mais grave é a aversão ao sagrado. Caso da pessoa que desmaia quando vai à missa ou espuma de ódio quando vê um padre.
O ritual recomenda que os possuídos sejam exorcizados na igreja ou em outro local religioso, desde que longe das multidões.
Se o possuído estiver doente, pode ser realizado em sua casa. Por medida de segurança, a pessoa que será exorcizada deve ser acomodada numa poltrona, nos casos mais leves, ou numa maca, nos mais graves. Durante o ritual, o exorcista poderá ser ajudado por leigos — poucos e preparados.
Uns o ajudarão a segurar o possuído. Outros, a rezar o rosário e a invocar a intercessão dos santos. Nenhum deles, porém, deve dirigir a palavra ao endemoniado.
O exorcista, prossegue o breviário em latim, não deve se perder em demasiadas palavras ou fazer perguntas desnecessárias. Mais do que um diálogo, o exorcismo é um interrogatório.
“Qual é o teu nome?”, “Estás sozinho?” e “Quando sairás?” são algumas das perguntas a serem feitas. O objetivo do exorcismo é obrigar o endemoniado a revelar seu nome — Satanás, Lúcifer, Asmodeu…
“Para ele, dizer o nome representa uma grande derrota”, explica Amorth. E, principalmente, ordenar ao demônio, em nome de Jesus, que liberte o possuído.
‘Toda batalha tem seus riscos’
Gabriele Amorth realizou o primeiro de seus mais de 60 mil exorcismos no dia 21 de fevereiro de 1987. Naquela manhã, padre Cândido Amantini recebera mais um pedido de ajuda. Dessa vez, de um frade franciscano chamado Maximiliano. Um camponês de 25 anos, explicava ao telefone, precisava ser exorcizado.
“Não tenho tempo”, avisou. “Mandarei o Amorth”. “Está certo de que estou pronto?”, perguntou.
“Ninguém nunca está. Mas, você está suficientemente preparado. Toda batalha tem seus riscos. Tem de enfrentá-los um por um”, orientou.
O exorcismo foi realizado na Pontifícia Universidade Antonianum, em Roma. Logo ao chegar, uma surpresa: além do padre e do camponês, uma terceira pessoa.
“Quem é o senhor?”, perguntou Amorth. “O tradutor”, respondeu o homem. “O tradutor?”, repetiu, atônito.
Padre Maximiliano se apressou em explicar: “Quando entra em transe, só fala inglês”. E foi na língua de Shakespeare que o lavrador italiano começou a gritar as primeiras blasfêmias. Não foi a única vez. Noutra ocasião, uma mulher analfabeta proferiu ofensas num idioma que Amorth desconhecia.
“Tive de fazer com que vários sacerdotes participassem dos exorcismos. Até que um deles desvendou o enigma: era aramaico”.
Amorth dedica o segundo capítulo de O Último Exorcista ao seu primeiro exorcismo. Em Minha Primeira Vez Contra Satanás, descreve o episódio que classifica como “aterrorizante”.
A certa altura, os olhos do rapaz viraram para dentro e sua cabeça pendeu sobre as costas da cadeira. Pouco depois, a temperatura no aposento caiu horrores e Amorth passou a sentir um frio glacial. Mais adiante, o possuído começou a levitar. “Meio metro acima da cadeira”, observa Amorth. “Aí, permaneceu imóvel, suspenso no ar por vários minutos”.
A primeira batalha de Amorth chegou ao fim cinco meses após iniciada, ou seja, no dia 21 de junho de 1987, às 15h. Foram necessárias 20 sessões, uma por semana.
“Libertar um possuído em tão poucas sessões é um milagre”, admite. O exorcismo mais curto de seu ministério durou inacreditáveis dez minutos. O mais longo? Quase 30 anos! “Já fico satisfeito quando um caso se resolve em quatro ou cinco anos”, dizia.
‘Nunca encontrei um diabo ateu’
Um exorcismo nunca é igual ao outro. Às vezes, o possesso salta de uma parede para outra como se fosse um macaco ou rasteja pelo chão como uma serpente. Outras vezes, o endemoniado ruge como um leão, uiva como um lobo ou mia como um gatinho. Houve uma ocasião em que Sabrina, como se fosse a coisa mais natural do mundo, começou a caminhar pela parede, subindo rumo ao teto.
Volta e meia, Amorth ganhava um “presentinho”: um empurrão aqui, um soco ali, uma mordida acolá…
“Certa vez, um chute que não me pareceu tão forte me deixou com a perna engessada quarenta dias”, relata.
Cusparadas? Nem se lembra mais quantas levou. Quando exorcizou uma religiosa italiana chamada Gisella, viu ela cuspir objetos de ferro, como pregos, parafusos e tesouras. Sim, padres, freiras e religiosos não estão imunes à possessão.
“Amorth saiu de algumas batalhas com hematomas pelo corpo. É impressionante como o diabo empresta força extraordinária a seres fisicamente fracos. Felizmente, alguns dos fenômenos que ele testemunhou ao longo de seu ministério são bastante raros. Como foram raros também os casos em que Amorth conseguiu libertar o possesso com uma única sessão. Apenas dois em mais de 60 mil!”, revela Tosatti.
“Quanto à barba do Russell Crowe, não me convenceu muito. Amorth andava sempre bem barbeado. Mas, vamos ver o filme primeiro antes de julgá-lo”.
Certa ocasião, um padre dos EUA chamado Andrew perguntou a Amorth se ele tinha medo de Satanás.
“Não sou eu que tem medo dele. Ele é que deve ter medo de mim. De mim e de todos que vivem em Jesus Cristo”, respondeu Amorth.
O bom humor era um de seus traços marcantes. Quando alguém lhe dizia que “acreditava em Deus, mas não era praticante”, fingia concordar: “Ah, sim! Os diabos também… Creem em Deus, mas não são praticantes. Aliás, nunca encontrei um diabo ateu”, disparava, sarcástico como sempre.
‘Satanás não dorme nunca’
Em 1991, Gabriele Amorth teve a ideia de fundar uma associação de exorcistas.
E, na condição de exorcista da diocese de Roma, quis comunicar sua decisão a um determinado cardeal, que ele preferiu não divulgar o nome.
“Nós dois sabemos que Satanás não existe, não é verdade?”, observou Sua Eminência, com uma piscadela marota.
“O que quer dizer com ‘sabemos que não existe?'”, perguntou Amorth.
“O senhor sabe melhor do que eu que tudo isso é uma superstição”, continuou o cardeal. “Não quer me fazer acreditar que crê nessas coisas, não é?”.
“Bem, o senhor deveria ler um livro que talvez possa ajudá-lo”, sugeriu o padre. “Ah, sim? Qual livro, padre Amorth?”, perguntou o cardeal.
“O Evangelho!”, respondeu, para o espanto do cardeal. “É o Evangelho que nos diz que Jesus expulsa os demônios. Então, o Evangelho também é uma superstição?”.
“Os bispos que não nomeiam exorcistas, apesar da necessidade de suas dioceses, estão em pecado mortal”, afirma Amorth.
“A Igreja Católica dorme. Mas deveria saber que Satanás não dorme nunca. Está sempre acordado, preparado para atacar”.
A Associação Internacional dos Exorcistas (AIE) foi reconhecida pela Igreja Católica no dia 13 de junho de 2014.
Hoje, fazem parte dela cerca de 500 exorcistas. O Monsenhor Rubens Miraglia Zani, da Paróquia Nossa Senhora do Líbano, em Bauru (SP), é um dos 20 brasileiros.
Nomeado exorcista em 2013, conheceu o Padre Amorth um ano antes, durante o curso de formação para exorcistas, promovido pelo Ateneu Pontifício Regina Apostolorum, em Roma.
“Era uma pessoa culta, alegre e inteligente”, descreve. “Seu senso de humor era agudo, mas não ferino”.
“O maior equívoco é pensar no exorcismo como um ritual de magia: basta que se recite mecanicamente o rito, uma única vez e o demônio é obrigado a ir embora, não importando a fé e a colaboração do possesso, nem a fé e a santidade do exorcista”, pondera Zani, delegado coordenador da Secretaria de Língua Portuguesa da AIE.
“O primeiro exorcista de uma pessoa é a própria pessoa que será exorcizada. Se ela não colabora, rezando o terço, meditando a Palavra de Deus e participando da missa, sua situação se arrasta e o exorcista pouco pode fazer”.
‘A grande inimiga de Satanás’
Em seus últimos anos de vida, Gabriele Amorth realizava uma média de cinco exorcismos por dia.
Mas houve um tempo em que chegou a praticar de dez a quinze.
Por essa razão, gravou um recado em sua secretária eletrônica, reduzindo os pedidos de exorcismo a uma hora semanal: “Telefonemas para agendamento são aceitos apenas às segundas-feiras, das 18h30 às 19h30. Quem não pertence à diocese de Roma, por favor, dirija-se ao seu bispo”.
Em abril de 2016, Amorth ouviu o recado de William Friedkin. O diretor de O Exorcista, clássico do gênero adaptado do romance de William Peter Blatty (1928-2017), solicitava autorização para registrar um exorcismo.
“Sou grato a O Exorcista“, disse Amorth em Investigação sobre o Demônio. “Embora um tanto sensacionalista, com cenas irreais, é substancialmente exato. Atingiu um público vastíssimo e divulgou a figura do exorcista”.
Autor do livro que deu origem ao filme e do roteiro que ganhou o Oscar, Blatty inspirou-se na história real de um menino de 14 anos que sofreu uma possessão e foi exorcizado por um padre jesuíta chamado William Bowden. O caso aconteceu em 1949 na cidade de Cottage City, no Estado de Maryland.
Gabriele Amorth pediu a Friedkin alguns dias para pensar. Por fim, autorizou a filmagem.
Mas impôs três condições ao cineasta: ele deveria ir sozinho, levar uma única câmera de vídeo e não interferir no ritual. O resultado do exorcismo de Cristina, uma arquiteta italiana de 46 anos, realizado no dia 1º de maio de 2016, quatro meses antes da morte de Amorth, pode ser conferido em O Diabo e o Padre Amorth, disponível na Netflix.
Padre João Cláudio, da Igreja Nossa Senhora de Fátima, em Niterói (RJ), não é exorcista, mas participou do curso em Roma.
Foi lá que, em 2016, conheceu Amorth. Os dois conversaram sobre o processo de beatificação de padre Amantini.
De quebra, João Cláudio foi convidado a participar de uma “benção” — nome dado por Amorth às sessões de exorcismo.
“Não gostava de ser tratado como alguém fora do normal. Quando pedi que benzesse meu crucifixo, igualzinho ao dele, disse: ‘Ué, você é tão padre como eu…’ Só aceitou porque insisti muito”, recorda.
Sabrina, Gisella, Cristina… A cada dez exorcismos que Amorth fazia, nove eram de mulheres. Devoto de Nossa Senhora de Fátima, ele nunca soube explicar bem o motivo. Mas, tinha lá seu palpite: o demônio queria se vingar de Maria.
“Por que te assusta mais quando invoco a Nossa Senhora do que quando invoco a Jesus?”, perguntou Amorth, durante uma sessão, em diálogo descrito no livro Novos Relatos de Um Exorcista (Palavra e Prece, 2011).
“Por que me humilha mais ser derrotado por uma criatura humana do que por Ele”, respondeu Satanás.