Por que a próxima pandemia pode surgir no Brasil: na Amazônia, cientistas correm contra o tempo

Nas profundezas da maior floresta tropical do mundo, o que a ciência sabe sobre a vida selvagem é tão limitado quanto a selva é vasta

O próximo vírus mortal a se espalhar pelo mundo pode facilmente vir de um morcego que se empoleira dentro ou ao redor das cavernas que estão sendo exploradas por Thiago Bernardi Vieira.

Vieira, biólogo da Universidade Federal do Pará, recebeu bolsas de pesquisa, incluindo uma intitulada “As espécies de morcegos mais desconhecidas do Brasil”. Sua missão: coletar informações básicas sobre os morcegos na floresta amazônica.

Ele tem um trabalho duro pela frente.

O tamanho da tarefa que ele enfrenta foi fácil de ver durante uma incursão em julho de 2021 na gigantesca caverna de Planaltina, onde ele procurou pegar amostras das muitas espécies que se acredita viverem lá. Vieira apontou a lanterna para um morcego de nariz comprido e pontiagudo.

“Nunca peguei um desses aqui”, disse o cientista, desembaraçando o animal delicadamente de uma rede que havia espalhado na boca da caverna.

Nas profundezas da maior floresta tropical do mundo, o que a ciência sabe sobre a vida selvagem é tão limitado quanto a selva é vasta. Além de Planaltina, uma das cavernas mais conhecidas da Amazônia, inúmeros outros habitats — e espécies de morcegos nativos deles — permanecem completamente sem estudos ou desconhecidos. E com financiamento limitado para pesquisadores, os cientistas não esperam desvendar os mistérios da Amazônia tão cedo.

“A gente não tem nada conhecido”, disse Vieira, cujo orçamento apertado para seu projeto de “espécies mais desconhecidas” totalizou cerca de 3.000 dólares. Ele recentemente ganhou uma segunda bolsa, totalizando pouco mais de 21.000 dólares, para continuar sua pesquisa.

Alguns dos vírus mais devastadores que infectaram humanos no século passado surgiram de morcegos. Por razões que incluem seu grande número e diversidade, os animais são um reservatório significativo de patógenos que podem adoecer as pessoas. E devido ao vasto tamanho da floresta amazônica e à rápida invasão humana em seus habitats pouco conhecidos, alguns cientistas veem o Brasil como um provável berço de uma futura pandemia.

“O potencial para novos vírus é enorme”, disse Erika Hingst-Zaher, zoóloga do Instituto Butantan, centro de pesquisa em São Paulo, e membro da Previr, uma rede nacional de cientistas que documentam patógenos transmitidos por morcegos e outros animais. “As pessoas estão apostando que a próxima pandemia virá do Brasil.”

O Ministério da Saúde, em comunicado à Reuters, informou que não há evidências no momento de que o risco de um novo vírus surgindo da vida selvagem represente “uma emergência de saúde pública de importância nacional”.

Lar do terceiro maior número de espécies de morcegos do planeta por uma contagem oficial, o Brasil vê suas chances de gerar um vírus desconhecido aumentarem à medida que as pessoas desmatam cada vez mais a floresta para abrir caminho para campos de extração de madeira, minas, fazendas e assentamentos.

Se um patógeno nunca antes visto — ainda mais contagioso do que o que causa a Covid-19 — escapasse da Amazônia brasileira, mostra uma simulação da Reuters, poderia infectar 1,2 bilhão de pessoas em seis meses. Isso é exponencialmente mais pessoas do que as 10,5 milhões que pegaram Covid-19 nos primeiros seis meses da pandemia.

O Brasil tem mais áreas de alto risco do que qualquer outro país, mostra a Reuters — 1,5 milhão de quilômetros quadrados de terra com condições privilegiadas para transbordamento zoonótico, como são conhecidas as transições de vírus de animais para humanos.

Para sua análise, a Reuters examinou as condições ambientais de cerca de 95 locais em todo o mundo onde vírus de morcegos infectaram humanos entre 2002 e 2020. A agência de notícias usou um modelo de computador para estimar onde condições semelhantes existiam globalmente para cada ano durante o período e identificou áreas mais propensas a transbordamento — apelidadas de “zonas de salto”.

No Brasil, a análise identificou locais de risco cobrindo uma área combinada de aproximadamente três vezes o tamanho da França. Impulsionadas por condições que incluem desmatamento e outras incursões de humanos em habitats de morcegos, essas zonas de salto brasileiras cresceram mais de 40% em extensão nas últimas duas décadas — mais de 2,5 vezes mais rápido do que áreas de risco semelhantes em todo o mundo, concluiu a Reuters.

Quase três quartos das zonas de salto do Brasil estão dentro da Amazônia, um emaranhado de biodiversidade que guarda mais segredos do que os cientistas podem esperar descobrir, especialmente com trechos da floresta sucumbindo rapidamente ao desenvolvimento. A cada nova incursão na selva, aumenta a chance de um novo e mortal patógeno se espalhar, proliferar localmente e potencialmente se propagar para o resto do Brasil e o mundo.

O Brasil não está preparado para tal evento.

O sistema de saúde do país e as instituições de pesquisa científica, de acordo com cientistas e especialistas em saúde, são subfinanciados e mal equipados para detectar um patógeno perigoso, seja novo — como o modelado pela Reuters — ou conhecido, como os que causam Sars e Nipah.

Ambas as doenças letais a princípio se parecem à gripe ou ao resfriado comum em seus primeiros sintomas. A semelhança com doenças de rotina pode permitir que um novo vírus mortal se transmita silenciosamente e evite a vigilância, pelo menos inicialmente.

“Se você não está procurando por um novo vírus, não o está vendo”, disse Ana Pastore y Piontti, cientista de dados de Boston especializada em epidemiologia e coautora do livro de 2018 “Charting the Next Pandemic” (Mapeando a próxima pandemia, em tradução livre).

Durante a pandemia, centenas de indígenas morreram sem chegar aos hospitais. E os doentes que chegaram a cidades amazônicas como Manaus e Altamira encontraram longas esperas por leitos hospitalares e um sistema médico sobrecarregado em colapso.

“O sistema de saúde não estava preparado para o coronavírus”, disse Marcelo Salazar, que até recentemente era o coordenador brasileiro da Health in Harmony, organização voltada para saúde e meio ambiente. “Obviamente não está preparado para as pandemias futuras.”

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Em seu comunicado, o Ministério da Saúde informou que monitora diariamente o risco de contágio zoonótico por meio de várias redes e programas, incluindo 815 centros epidemiológicos em hospitais de todo o país. Esses centros, acrescentou, têm a tarefa específica de identificar doenças emergentes.

O ministério disse que também está estudando a criação de um grupo de trabalho para melhorar a vigilância zoonótica que incluiria representantes dos setores agrícola, ambiental, acadêmico e de saúde.

“POUCOS DADOS”

Uma das principais rotas pelas quais os humanos podem transportar esse vírus para fora da floresta tropical do Brasil, de acordo com a análise de dados da Reuters, também é um dos principais fatores de risco de transbordamento: a Rodovia Transamazônica.

Até agora, o Brasil — e a humanidade — tiveram sorte em evitar um grande transbordamento da Amazônia, dizem os pesquisadores. As chances de um novo vírus emergir da região são altas.

Ao examinar o risco de transbordamento, os cientistas usam o número de espécies de morcegos em uma determinada área como uma variável-chave.

Ludmilla Aguiar, bióloga da Universidade de Brasília, disse que se sabe tão pouco sobre morcegos na floresta tropical que pode levar centenas de anos, dado o estado atual de pesquisa e financiamento, para os cientistas documentarem até mesmo informações elementares sobre todas as espécies possíveis e habitats específicos para eles.

Pesquisadores já identificaram alguns vírus em morcegos brasileiros que sabidamente infectam humanos. Eles incluem a raiva, que ocasionalmente causa surtos. Também foi demonstrado que os morcegos brasileiros carregam coronavírus e hantavírus, patógenos mortais comumente associados a roedores que podem causar febre hemorrágica e infecções pulmonares.

O que mais preocupa alguns cientistas, porém, são os vírus que eles não conhecem.

“A gente tem muito poucos dados para falar sobre a patogenicidade”, disse a bióloga Ludmilla Aguiar, usando um termo que descreve a capacidade de um germe causar doenças.

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