26 de abril de 2024

Primeiro julgamento

João Paulo CunhaPor João Paulo Cunha*

João Paulo CunhaA divisão entre os poderes da República é uma construção histórica que é renovada constantemente por meio da busca de formas cada vez mais transparentes de legitimidade e reconhecimento. É preciso que o cidadão se veja no poder por meio de seus representantes. No Executivo e no Legislativo, a eleição direta estabelece o vínculo imediato com o povo, em cujo nome os mandatos são exercidos. Entre o espelho e a opacidade, seguem-se os dias da democracia.

No Judiciário, em seus vários níveis, há muitas formas de composição até chegar à mais alta corte, o Supremo Tribunal Federal (STF). A diferença com relação aos demais poderes emana de um valor universal, a Justiça, que deve ser perseguido sempre em consonância com o ordenamento jurídico. No entanto, para cumprir as leis não basta apenas seguir caminhos já trilhados. Há graus de interpretação, de avaliação, de subjetividade e de historicidade. É para isso que são necessários juízes, desembargadores e ministros. É preciso gente por trás das palavras.

Há um argumento fantástico que diz que julgar é tão difícil que até mesmo Deus teria deixado essa tarefa para o juízo final, quando todas as provas e contraprovas já teriam sido apresentadas sem direito a recurso.

Nós, pobres mortais, no entanto, não podemos esperar tanto. A Justiça nossa de cada dia, para tornar a existência menos sujeita à infelicidade evitável pela maldade dos homens, precisa ser integrada por pessoas que reúnam atributos morais e técnicos necessários a uma decisão justa. Reputação no campo do sujeito e saber no que toca à doutrina.

A escolha dos integrantes para o Supremo Tribunal Federal, último estágio de julgamento e instância máxima de defesa da Constituição, tem um caminho institucional próprio. A indicação parte do presidente da República e a confirmação no cargo se dá depois de sabatina realizada pelo Senado. O rito, desta forma, articula ao mesmo tempo a participação dos três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário.

A escolha do advogado, jurista e professor Luiz Edson Fachin para a vaga do ministro Joaquim Barbosa, que se aposentou depois de atribulada trajetória, vem causando polêmica que extrapola o acordo necessário entre os poderes para priorizar uma agenda de momento. O questionamento do nome de Fachin saiu da órbita do direito para se fundar na conjuntura política e econômica. Há razões para explicar esse desvio de rota.

O Supremo parece ter se tornado uma espécie de campo de disputa para eventuais ações de natureza política, diminuindo assim sua abrangência jurídica em favor de outros valores. A composição da corte, dessa forma, apontaria para possíveis ilações de julgamentos referentes a ações no campo dos interesses de governos, oposição e partidos. Uma antevisão reativa da judicialização da política. Um tapetão ideológico.

A recente votação em segundo turno da “PEC da Bengala”, que adia a aposentadoria compulsória dos atuais ministros para os 75 anos, é mais uma jogada nesse sentido. Ao defender que se trata de uma forma de retirar do Executivo atual o poder de indicar os titulares do STF, diminuindo assim a carga ideológica, a medida apenas tira do governo eleito no ano passado a tarefa constitucional, para apostar numa recomposição no próximo mandato presidencial.

A verdadeira contribuição para uma escolha ideal da corte neste momento deveria reforçar o caráter ético e a preparação técnica do atual Senado. Mas aí, seria querer demais. Mesmo a mudança do método de eleição dos ministros, por meio de consultas ampliadas e até mesmo postulação de mandatos definidos, escapa à consideração dos parlamentares. Não há um propósito de aprimoramento, mas uma ação protelatória e casuística.

Luiz Fachin, por sua vivência e trajetória no direito brasileiro, tem tudo para ajudar a recuperar o STF dos desvios em que foi colocado pela política. Sem falar da imprensa, sempre sedenta de espetáculo e de manifestar seu poder de ditar a agenda do Estado. Não é um ministro para ser posto na cota deste ou daquele partido, mas da Justiça.

Sua identificação com causas populares, manifesta de forma transparente, é tomada como desvio de uma impossível neutralidade. Sua sensibilidade para o debate das questões de ordem humana e moral é vista como um atentado à tradição em si, sempre carente das lições da história. Em outras palavras, a oposição a Fachin diz mais dos opositores do que do próprio Fachin.

A atuação do jurista no campo do direito de família – área sempre sensível e aberta às demandas da afetividade e dos novos modelos de relacionamento –, sua visão antropocêntrica e sociológica do direito civil, sua ligação ética com a luta contra as desigualdades dão novo alento à Justiça do país. Professor e advogado, ele traz ainda para a corte a carga sempre necessária do estudo e da hermenêutica (e da humildade que muitas vezes falta aos julgadores) e do teor humano das sentenças.

Dar ao Supremo Tribunal Federal um papel central na vida institucional do país é um avanço, mas que não pode ser corrompido por questões episódicas e disputas de poder. Menos supremo e mais tribunal, é disso que precisamos. Luiz Edson Fachin talvez seja a pessoa certa para um momento de tanta divisão. Sua sabatina, em 12 de maio, tem tudo para ser um momento histórico para nossa conflagrada República. A causa é boa e o advogado é competente.

PUBLICIDADE
logo-contil-1.png

Anuncie (Publicidade)

© 2023 ContilNet Notícias – Todos os direitos reservados. Desenvolvido e hospedado por TupaHost