Construindo a autonomia na idade adulta

Embora o momento de entrada na vida adulta continue a ser discutível, é consensual o entendimento de que a adultez é a etapa mais longa da vida humana e que assume uma crescente importância, sobretudo em face da complexidade da vida no mundo atual e das profundas alterações a que assistimos. Habilitar os cidadãos e cidadãs para desempenharem melhor os seus diversos papéis sociais, de uma forma crítica, bem como salvaguardar a autonomia das pessoas até às idades mais avançadas, quer em geral, quer no domínio da aprendizagem, sempre foi assumido pelos educadores de adultos como um dos seus desígnios mais nobres. Nas sociedades contemporâneas, tais propósitos revestem-se de uma dimensão inadiável, por várias razões: porque estamos à beira de abismos como o das alterações climáticas, ao persistirmos na ação predadora e agressiva sobre os sistemas biofísicos; porque as disparidades e injustiças entre as sociedades ditas desenvolvidas e em desenvolvimento, bem como dentro de uma mesma sociedade, têm vindo a agigantar-se; porque é urgente construir uma cultura de paz e respeito pela dignidade da vida; porque é preciso desconstruir equívocos, e habilitar para compreender e agir, sabiamente, nas circunstâncias e forças que nos envolvem e moldam.

Os apelos dominantes que todos sentimos e que têm vindo, insidiosamente, a afetar as diversas esferas da nossa vida, em culturas orientadas pela bandeira do fast, são o de produzir e fazer rapidamente, ser competitivo, procurar o sucesso a todo o custo. Mas, como diz o nosso povo, no seu saber secularmente decalcado, depressa e bem não há quem! Os macroproblemas que temos gerado, como sociedades ‘avançadas’, desafiam-nos a uma profunda alteração do paradigma que nos tem sustentado, e suscitam, mais do que nunca, um posicionamento crítico. O absurdo e insensatez da nossa ação no mundo, quais Sísifos em arrastamento de pedregulhos montanha acima, para alcançar um crescente esgotamento e vazio, precisam ser contrariados. É imperioso que, pessoal e coletivamente, a nossa ação tenha finalidades claras, mas também que esteja impregnada de valor – aos níveis pessoal, social, ecológico e a longo prazo.

Desfazendo equívocos…

Reposicionar o entendimento da construção da autonomia da pessoa permite afastarmo-nos de instâncias míopes e de nos afundarmos no lodo ao qual nos tem conduzido um paradigma de vida predominantemente arquitetado sobre as noções de independência e separação. A autonomia desenvolve-se lentamente, numa longa jornada que vai da dependência total (à nascença) à perceção e vivência crescentes da condição de interdependência. O percurso afasta-se do da dependência à independência, da fusão à separação, da afiliação a estar só, da colaboração à competição, do pensamento orientado ao pensamento independente. Superando antinomias, a jornada de construção da autonomia, que torna viável a vida em comum, passa, antes, por ser tributária dos seguintes princípios: é um processo ontogenético que se estende por toda a vida; que se requer apoiado e refletido em permanência; que é multidimensional e multidirecional; que está inserido em diferentes contextos (biográfico, histórico, sociocultural, etário, de género, etc.); que requer uma abordagem interdisciplinar para uma compreensão adequada e uma ação valiosa.

O desenvolvimento da autonomia não chega nunca a ser terminado, dado implicar o desenvolvimento de capacidades, perspetivas e insights de complexidade, profundidade e consciência crescentes. Do ponto de vista neurobiológico, o lobo pré-frontal – estrutura cerebral responsável pelo controlo de numerosas funções, entre as quais o controlo executivo e a autorregulação da pessoa – é o de mais tardio desenvolvimento, maturando apenas entre os 25-30 anos. E as investigações mais recentes apontam no sentido de poder continuar a desenvolver-se ao longo de toda a adultez, sendo um dos ‘nichos’ cerebrais onde mais ocorrem os processos de sinaptogénese e neurogénese, particularmente com práticas meditativas e de mindfulness. Atendendo à dimensão cognitiva, é de sublinhar a trajetória que podemos percorrer, perante ambientes e oportunidades adequadas, e que implica uma reorganização qualitativa das estruturas de pensamento e de atribuição de significado: um movimento de etapas pré-reflexivas, típicas das idades mais precoces, que nos imergem no mundo das dualidades (e.g., certo ou errado, forte ou fraco), passando pelas estruturas quase-reflexivas (a descoberta da incerteza, da subjetividade, e a crença de que todas as opiniões são importantes), até às estruturas reflexivas (ligadas à emergência da reflexividade crítica), em que se toma consciência clara de que nem tudo é igualmente valioso, que é necessário um pensamento interssistémico, assim como aliar à razão o insight e o coração. A ação genuinamente proveniente destas últimas estruturas requer empatia, confiança, solidariedade, segurança, honestidade e integridade, remetendo para a importância da dimensão afetiva e relacional. Na dimensão social a autonomia constrói-se num movimento de inclusividade – da vinculação inconsciente às figuras parentais, ao sentido de pertença a uma família, ao grupo sociocultural de origem, aos grupos elegidos pela pessoa, ao mundo da humanidade, e ocorre na medida em que o sentido de interdependência vai emergindo e sendo coconstruído. Paralelamente a este último, conscientemente ou mais nos ‘bastidores’, vai despontando a dimensão espiritual, entendida como o sentir, experiencial (e não concetual), de ligação profunda a todos e a tudo. A consciência de união fundamental exprime-se em termos de partilha e não de concorrência ou competição.

À luz dos princípios apontados, a promoção da autonomia contribuirá para a construção de um mundo mais justo, solidário e pacífico, arredando a cultura instrumental em que estamos imersos. Deixemo-nos tocar pela ressonância das palavras inspiradoras de Ghandi: “sejamos a mudança que queremos ver no mundo”.

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