Os irmãos que perderam os pais em tsunami e criaram projeto que construirá escola no Brasil

Era 26 de dezembro de 2004 quando Paul acordou com gritos de “LEVANTA, LEVANTA” em um quarto no Sri Lanka.

O menino britânico tinha 15 anos e o irmão de 17, Rob, tinha acabado de ver o chão coberto de água e ‘vizinhos’ apavorados apontando para o mar – pouco antes de a terra tremer e de ouvirem “um estrondo”.

Eles estavam na mira de um tsunami. E sentiriam o impacto dele até os dias de hoje.

Rob (de pé) e Paul (de camisa verde) em uma das estações por onde passaram na Índia, com a mãe Sandra e os irmãos Mattie e Rosie

Com perda e superação

Paul “já tinha ouvido falar de tsunamis na escola, e em um documentário na TV”.

Mas “nunca tinha imaginado que seria pego por um, que sentiria a força de um, até aquele dia”, diz ele, em entrevista à BBC News Brasil 15 anos depois do desastre em que diz pensar “todos os dias”, ainda com “dor”.

Ele e o irmão assistiram juntos uma grande “muralha d’água” atingir o resort onde estavam, destruir as janelas do quarto e interromper de forma trágica a viagem que haviam começado quatro anos antes com a família.

Kevin e Sandra Forkan, o pai e a mãe deles, foram identificados três meses depois entre os cerca de 230 mil mortos registrados em 14 países banhados pelo Oceano Índico.

Paul e Rob, assim como Mattie e Rosie, os irmãos mais novos, sofreram ferimentos leves e voltaram para o Reino Unido com a ajuda da embaixada britânica.

Mas esse não foi o fim da história.

Inspirados na jornada que viveram, anos depois, Paul e Rob idealizaram um projeto para transformar a realidade de órfãos e de outras crianças pelo mundo por meio da educação, investindo na construção de escolas.

A iniciativa foi chamada de Orphans for Orphans (ou, em português, De órfãos para órfãos) e é apresentada como homenagem aos pais. A intenção, diz Paul, é “abrir o máximo possível de escolas”.

No roteiro que eles traçaram até agora, uma no Sri Lanka e outra no Malaui já viraram realidade. Mais duas abrirão as portas este ano: no Nepal e no Brasil. Já os próximos passos deverão incluir a Índia, o lugar onde começou toda essa história.

A jornada até o tsunami
O ano era 2000. Paul tinha 11 anos e chegou com a família para morar em Goa, o menor estado da Índia.

A mudança aconteceu depois de passarem “o melhor Natal de todos” no país e de terem decidido vender o que tinham no Reino Unido para voltar, em uma nova jornada que teria esse estado como base, mas que também os levaria a outros destinos.

Foi um período em que o cheiro de tempero, misturado com incensos e a fumaça de fogão das casas, eram “adorados” pelo menino. Mas era das pessoas que ele mais gostava. É que “muitas viviam com pouco e pareciam felizes”.

E lá também tinha o som de tuk tuk, o triciclo que transporta passageiros e que cobre parte do seu rosto, com o retrovisor, em uma foto de 2001 onde a mãe sorri, os irmãos posam e o pai estava, como sempre, por trás da câmera.

No quarto ano dessa jornada, em 23 de dezembro de 2004, a família desembarcou na praia de Waligama, no Sri Lanka, um lugar onde encontraram águas cristalinas bem ao lado da Índia e que haviam escolhido como o destino de mais um Natal reunidos.

Os dias – na memória de Paul – foram “completamente surreais”.

“A cidade estava movimentada e cheia de vida”, com gente vendendo peixe e outras coisas no mercado, ou andando pelas ruas com roupa de praia e em meio, mais uma vez, ao barulho dos tuk tuks.

Na manhã do dia 26, pouco restaria desse cenário. A cidade foi uma das atingidas por ondas que, segundo estudos divulgados na época, chegaram a alcançar entre 3 e 11 metros de altura em algumas áreas do país.

Paul e Rob dividiam o mesmo quarto e se viram dentro de uma espécie de “redemoinho”.

Escapando com vida
Eles conseguiram sair do local empurrando a porta e, com a ajuda de barras de ferro, escalaram até o telhado, o lugar mais alto que encontraram em busca de refúgio.

Rosie e Mattie, que tinham 8 e 11 anos, foram salvos pelos pais.

“Eles sacrificaram as próprias vidas para salvá-los”, diz Paul.

“Nós encontramos meu irmão agarrado a um coqueiro e a minha irmãzinha seis horas depois, em um hostel”. Ela havia sido localizada por surfistas também em uma árvore e contou que foi retirada do quarto pelos pais.

O casal, depois disso, teria sido arrastado pela água.

Rob e Paul chegaram a procurá-los debaixo dos escombros, mas por onde passavam só encontravam gente em choque, aos prantos e outros corpos, segundo descrevem no livro “Tsunami Kids”, que assinam com o escritor britânico Nick Harding.

Os irmãos foram retirados do Sri Lanka e voltaram para casa com a ajuda da embaixada britânica. Joanne, a irmã de 19 anos que havia se juntado a eles no Natal, no momento do tsunami voava de volta para o Reino Unido, onde Marie, a irmã de 22, já estava.

Encarando a morte
“Eu fiquei meses pensando que meu pai e minha mãe iam voltar. Porque eles não podiam nos deixar. Eram tudo para a gente”, disse Paul à BBC News Brasil. Na última vez em que falou com eles – no Natal – se despediu com “boa noite”.

Em vez de lembrar a morte deles, no dia do funeral, os irmãos decidiram lembrar a vida, segundo descrevem no livro. “Eles não iam querer ver ninguém triste.”

Para a cerimônia, eles decidiram então não vestir preto e contam que houve lágrimas, mas também sorrisos.

Uma das músicas que ouviram no dia foi “Always Look on the Bright Side of Life”, ou “Sempre olhe para o lado bom da vida”, do grupo de comédia britânico Monty Python – uma das favoritas de Kevin.

O poema Footprints in the Sand, ou Pegadas na Areia, cuja autoria é atribuída a Margaret Fishback Powers, foi lido por Marie.

O verso “era sobre alguém que descreve a própria vida como uma jornada retratada por pegadas na praia”.

“Seguindo em frente”

Cerca de sete anos após tsunami, irmãos tiveram a ideia de criar a Gandys para ajudar órfãos e outras crianças

“Meus pais sempre diziam que se você cair de bicicleta, não deve ficar só reclamando. Você deve subir nela de novo e seguir em frente”, diz Paul, agora com 29 anos.

“Foi mais ou menos isso que o tsunami fez com a gente. Nós passamos por muita dor, por um trauma enorme. Mas não ficamos parados. Nós ficamos mais fortes”.

O café onde ele conta essa história à BBC News Brasil fica a poucos metros de uma das três lojas que ele e Rob abriram na capital da Inglaterra, Londres, para ajudar a financiar o projeto das escolas.

Este chega ao Brasil e ao Nepal em 2019 – após ter fincado bandeira no Sri Lanka e na África.

Ele foi idealizado sete anos depois do tsunami, quando, após viajarem separadamente pelo mundo, os irmãos se reencontraram e Rob apresentou a ideia a Paul.

A proposta era eles criarem uma empresa para fazer chinelos, o tipo de calçado que costumavam usar “na estrada”.

Os produtos nasceram sob a marca Gandys, cujo nome foi originalmente inspirado no ativista indiano Mahatma Gandhi, que lutou pela independência do país e pelos direitos dos pobres indianos – normalmente calçado com chinelos.

A marca se popularizou no Reino Unido junto com a história de vida deles. A ideia, que colocaram em prática, era que as vendas ajudassem a financiar a construção do que chamam de “kids campus” no Sri Lanka e os demais que construíssem.

Eles já atenderam em média 800 crianças no Sri Lanka. Na unidade que funciona desde 2016 no Malaui, país africano que está entre os mais pobres do mundo, foram cerca de 200 até agora.

O campus é uma casa onde crianças órfãs ou não têm aulas de reforço, cursos profissionalizantes, estudam informática e inglês, praticam esportes, comem e recebem atendimento médico básico.

“Tudo isso funciona como incentivo para os pais não fazerem as crianças trabalharem, para que mantenham elas na escola, já que não precisam gastar com a alimentação delas nem elas precisam procurar trabalho para comprar a próprio comida”, diz Paul.

Ele conta que 10% do lucro da marca – que hoje também inclui roupas e acessórios – são destinados à fundação que criaram para investir no projeto. “100% dos recursos da fundação vão para a iniciativa”, diz.

O montante, segundo Paul, também inclui doações que recebem de empresas e pessoas físicas, principalmente britânicas, e, sobretudo, a receita de palestras que fazem para clientes corporativos com lições de como superar adversidades.

Rio de Janeiro

Imagem feita em abril mostra andamento da obra de escola em que britânicos investem no Rio: intenção é inaugurar espaço em julho

A ideia de construir uma das escolas no Brasil surgiu de uma parceria com a equipe britânica de Fórmula 1 McLaren, que teve o brasileiro Ayrton Senna entre os pilotos mais famosos e chegou a estampar a marca dos irmãos em peças dos carros.

São Paulo, segundo Paul, seria inicialmente a escolha do projeto, mas houve dificuldades de contato com instituições locais.

A necessidade de comunicação em inglês foi apontada como barreira.

A saída que esperavam foi então encontrada no Rio de Janeiro, em um projeto tocado desde 2010 pelo americano Scott Miller – com aulas e outras atividades gratuitas oferecidas a crianças, com a ajuda de voluntários.

É o chamado Project Favela.

“Nós estamos construindo uma sede permanente para eles e vamos fornecer recursos para que as crianças tenham alimentação no local e atendimento básico de saúde (um sistema semelhante ao do Sri Lanka e do Malaui)”, diz Paul.

“A intenção é que as pessoas do projeto não precisem mais se preocupar com ‘onde vão arrumar o dinheiro’ nem com o futuro das atividades. Elas vão poder focar simplesmente no bem-estar das crianças e em como deixar o projeto melhor”.

Destino: comunidade Tabajaras

Canteiro de obras de nova sede de projeto social em Tabajaras, Copacabana: espaço para crianças será quase quatro vezes maior

A casa onde ele e o irmão depositam suas libras ganha forma em um terreno na comunidade Tabajaras, um morro de Copacabana onde moram “pessoas em situação de vulnerabilidade”, segundo descrição da prefeitura.

A área abriga o Project Favela atualmente em um imóvel alugado.

“Esse investimento muda completamente o jogo para a gente”, diz à BBC News Brasil o idealizador da iniciativa, Scott Miller.

Um dos planos, segundo ele, é buscar o reconhecimento oficial da escola como instituição de ensino junto às autoridades. Ter um endereço próprio era um requisito.

“Nosso foco é ser uma fábrica de crianças que vão entrar em universidades federais. Nós queremos estar ao lado delas e prepará-las até o vestibular, oferecendo educação gratuita dentro da comunidade”, frisa o americano.

O espaço que o projeto deverá ocupar a partir de julho, quando estimam que a obra estará pronta, é quase quatro vezes maior que o atual.

Nele estão sendo construídas quatro salas de aula, sala de informática, espaço para apresentações de teatro, música, dança e capoeira, banheiros, jardim e refeitório.

O projeto atende 43 crianças de 6 a 12 anos – estudantes de escolas públicas ou que ainda estão fora da escola regular.

A função que cumpre, segundo Miller, vai além de oferecer simples aulas de reforço. “Algumas dessas crianças chegam sem ter níveis mínimos de leitura, nem saber operações básicas, como multiplicar e dividir. Nós precisamos ensinar tudo”.

O método de ensino é “desenhado e redesenhado” por ele e por outros educadores americanos.

Ensinando ‘fazedores’
Hoje, o programa inclui Matemática, Geografia, Ciências, História, Redação, Leitura, e lições práticas de Física em um módulo chamado fazedores. As aulas de português ganharam prioridade sobre o inglês, dadas, segundo ele, as necessidades mais urgentes dos alunos.

O programa envolve ainda atividades como futebol e artes marciais abertas à comunidade, assim como ioga e meditação – um retrato parecido ao que Paul e Rob encontraram na parte da infância vivida na Índia.

Outras histórias
Atualmente os voluntários da iniciativa são da Inglaterra, Itália, França, Colômbia, Estados Unidos e do Brasil – a carioca Milene Fernandes.

“É uma escola americana com voluntários reais, que preparam as aulas, ensinam, limpam a escola, levam as crianças para conhecer a cidade e compartilham suas experiências de vida”, diz ela.

Miller criou o projeto há cerca de dez anos, após viajar ao Brasil e perceber carências na área.

O trabalho começou na Rocinha, mas acabou migrando para Tabajaras por conta da violência.

“Nós ficamos na Rocinha por oito anos. Construímos uma escola, crescemos, fomos para uma maior e depois de novo, mas o prédio acabou cravado de balas. Muitas famílias que moravam lá se mudaram.”

O projeto está na nova comunidade desde fevereiro de 2018.

A maioria das crianças que atende vive sem o pai em casa. É criada pelas mães, por avós ou tios.

“Eu trabalhei em várias ONGs no Rio, conheci as comunidades e vi que em todas elas têm crianças que querem entrar na universidade e que querem ser médicas, engenheiras, jornalistas…Elas têm esse sonho e nós queremos ser um caminho para que cheguem até lá”, diz ele. “As crianças têm fome de aprender. Elas vêm para estudar, haja chuva, um calor de 40 graus ou bala.”

‘Melhores lembranças’
Ainda a quilômetros de distância, os irmãos ingleses se preparam para viajar pela primeira vez ao Brasil para inaugurar a casa do projeto na comunidade.

Sentado no café em Londres, Paul aponta para a imagem no forro do casaco que veste – uma das peças que criou com o irmão para as lojas – e explica:

“Esse é um mapa da Índia”, diz.

“Algumas pessoas talvez olhem e pensem que é só um mapa. Mas não é só isso. É um mapa de um lugar muito especial para nós, onde estão todas as nossas melhores lembranças”.

No braço do casaco, ele aponta para a marca Gandys, desenhada por Mattie. E continua:

“Nesse A nós pusemos uma onda. É a onda do tsunami”.

“O A representa superar adversidades”. E o slogan que escolheram diz: “não apenas exista”.

Os outros irmãos, segundo ele, “seguiram os próprios sonhos”.

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