Na manhã seguinte à vitória de Joe Biden nas eleições americanas, o Kremlin publicou uma mensagem de parabéns do presidente Vladimir Putin. Era uma saudação de feliz aniversário aos 60 anos de um diretor de teatro de Moscou.
Ao contrário de outros líderes da Europa Ocidental, que felicitaram Biden ainda no sábado, Putin ainda não emitiu uma declaração sobre o presidente eleito. Quatro anos antes, o Kremlin divulgou logo uma mensagem parabenizando Donald Trump poucas horas após a vitória do republicano ser anunciada.
— Putin é um bom soldado e não abana o rabo diante de seus inimigos — disse um analista pró-Kremlin, Sergei Markov, ao explicar a diferença.
Os primeiros sinais indicam que Putin está se preparando para um relacionamento difícil com o próximo presidente americano. Embora Trump nunca tenha cumprido as esperanças russas de uma reaproximação entre Washington e Moscou, sua política externa de “Estados Unidos primeiro” se encaixou no desejo do Kremlin de enfraquecer a aliança ocidental e expandir a influência russa em todo o mundo.
Biden, por outro lado, é um presidente eleito que Putin já tem muitos motivos para temer. O democrata vê a Rússia como uma das maiores ameaças à segurança dos EUA e promete reconstruir laços desgastados com aliados europeus. Como vice-presidente, trabalhou ativamente para apoiar políticos pró-ocidentais na Ucrânia, um país em guerra com a Rússia.
Além disso, Biden, ao contrário de Trump, na opinião de muitos russos, é o tipo de político americano que eles mais detestam: alguém pronto para se intrometer na política de países ao redor do mundo em nome de ideais democráticos.
Enquanto os votos nos estados mais disputados eram contados nos últimos dias, a televisão estatal russa repercutia cada vez mais a alegação infundada de Trump de que os democratas haviam roubado a eleição.
Já nesta segunda-feira, o porta-voz de Putin, Dimitry Peskov, disse a repórteres que o Kremlin estava segurando uma mensagem de parabéns em respeito às contestações judiciais feitas por Trump.
— Acreditamos que seja adequado aguardar um anúncio oficial — disse Peskov. — De qualquer forma, esperamos que seja possível estabelecer um diálogo com o próximo presidente dos Estados Unidos e chegar a um consenso sobre os caminhos para normalizar nossa relação bilateral.
Mas a ofensiva na mídia controlada pelo Kremlin e o fato do governo ainda não ter parabenizado o democrata chama a atenção, já que Putin aparentava estar tentando se distanciar de Trump quando Biden emergiu como favorito nos últimos meses. Alguns analistas e políticos russos chegaram a especular que uma nova liderança em Washington poderia ser algo positivo para Moscou.
Na verdade, Putin escolheu não dar a Trump o que teria sido uma vitória valiosa da política externa do republicano: uma extensão do último acordo ainda em vigor responsável por controlar os dois maiores arsenais nucleares do planeta, o Novo Start.
Em vez disso, em uma entrevista em outubro, Putin elogiou Biden por estar preparado para estender o tratado. E no que pode ter sido um elogio indireto, ele elogiou os democratas por compartilharem os ideais de esquerda com um partido do qual já foi membro: os comunistas.
— Trabalharemos com qualquer futuro presidente dos Estados Unidos, aquele a quem o povo americano der seu voto de confiança — disse Putin.
Segundo analistas e políticos, a ideia de que a saída de Trump da Casa Branca poderia reduzir a raiva americana em relação à interferência russa nas eleições de 2016 parecia ser o maior ponto positivo de uma vitória de Biden.
Biden também poderia beneficiar a Rússia colocando os Estados Unidos de volta no acordo nuclear com o Irã, do qual Moscou faz parte, segundo um deputado russo, Leonid Slutsky. Em 2018, Trump retirou os EUA do acordo, do qual o ex-presidente Barack Obama ajudou a intermediar entre as potências mundiais para interromper o programa de armas nucleares do Irã.
Putin se apresenta como um defensor da Rússia contra um Ocidente invasor. Uma política mais dura para a Rússia nos Estados Unidos pode ser vantajosa para ele, disse Sam Greene, diretor do Instituto da Rússia no King’s College London:
— Os conflitos com o Ocidente e os Estados Unidos em particular constituem uma parte importante da legitimidade de Putin. [Capa: Alexey Nikolsky/Kremlin e Drew Angerer/Getty Images/AFP]