Imagine trabalhar por um dia com seu maior ídolo. Não importa sua profissão, interesse ou faixa etária. Apenas visualize-se mentalmente conhecendo um dos expoentes de sua área profissional, acompanhando de perto como ele faz a sua “mágica” de todos os dias.
Pois eu tive este privilégio em 21 de maio de 2016. Depois de acompanhar por oito jogos o Portsmouth FC, time da quarta divisão inglesa – ao todo cobri mais de 20 jogos como jornalista na Europa -, recebi um convite inesperado: O repórter João Castelo Branco, vídeo-repórter dos canais ESPN, me convidou para ajudar na cobertura da final da Copa da Inglaterra, um dos campeonatos mais importantes do mundo, na partida entre Manchester United e Crystal Palace. Eu estava meio cabisbaixo, pois o Pompey havia sido eliminado nos playoffs (fase qualificatória), perdendo o jogo para o Plymouth Argyle fora de casa no último minuto, sepultando as chances de ir para Wembley com credencial, meu grande sonho.
Quando João me chamou por um aplicativo de celular, apenas 12 horas após eu ter chegado à minha casa temporária na cidade portuária de Portsmouth, eu arrumava melancolicamente minha mala, sepultando uma jornada que havia iniciado em janeiro de 2016 (cobertura de um jogo do Glasgow Rangers-ESC) e mal acreditava no que meus olhos me mostravam. Sim, eu iria para Wembley! Sim, eu ia conhecer e trabalhar com João Castelo Branco! Pouco importava que a grana estivesse curta e as ajudas de custo que recebia do clube mal pagavam as despesas básicas. O importante é que eu ia trabalhar por um dia num dos maiores palcos do futebol, o templo bretão moderno e sagrado.
O convite não surgiu à toa. JCB acompanhou boa parte da minha trajetória, desde as tímidas postagens do meu blog até reportagens maiores, para portais da internet, culminando nos 45 dias incríveis que tive no Portsmouth, acompanhando o clube diariamente e viajando para todos os jogos, de Norte à Sul da Inglaterra, junto com jogadores, comissão técnica e torcedores. Ele lia as matérias e comentava algumas pelo Messenger, como na vez em que, num único dia, visitei Old Trafford e, logo em seguida, assisti à um jogo do Manchester City pela Liga dos Campeões.
Daí surgiu uma espécie de “amizade-virtual”, na qual conversávamos, em média, de duas a três vezes por semana. Sugeri uma vez que nos encontrássemos num café ou pub de Londres, mas nossas agendas e compromissos não casavam. No “grande dia”, ele pediu para eu encontrá-lo pontualmente às 14 horas na estação Wembley Park, bem ao lado do estádio, e eu tinha dois dias para me programar para o “match day” (dia de jogo) histórico e inesquecível.
Portsmouth ficava à apenas 1h20 de Londres no trajeto de ônibus, e aproveitei uma passagem em promoção (apenas 5 libras, equivalente a pouco mais de vinte reais) para chegar com duas horas de antecedência na capital inglesa. O problema é que na minha “pirangagem” eu nem reparei que o hotel mais barato ficava exatamente na extremidade oposta ao estádio. Chegando ao local, por volta das 8 horas, descobri que o hotel na verdade era a casa de uma pessoa, com meu quarto situado numa espécie de sótão da residência. Para completar, o bairro era tomado por mulçumanos, o que me fez temer um possível ataque terrorista por puro preconceito, formado pelo bombardeio da mídia com os recentes ataques a grandes cidades europeias.
Desconfiado e temendo pela minha vida, fui ao supermercado na esquina, da rede Tesco, comprar algo que desse para satisfazer minha fome por três libras, para caber no meu “budget” (orçamento) de 15 libras para o dia todo. Dei sorte e descolei um sanduíche natural com direito a iogurte e suco de laranja, com a atendente e os transeuntes sendo simpáticos comigo – bem diferente da maioria dos londrinos. Pronto, estaria alimentado até o banquete servido antes da partida, pensava. Após descansar um pouco na acomodação minúscula e comprar o passe do metrô ilimitado (até à meia noite, poderia entrar em todas as estações da cidade) por cinco libras, eu aguardava pacientemente a longa viagem de 1h30 lendo minha revista (Four Four Two) e meu jornal (The Guardian) favoritos, torrando sete libras e ficando completamente sem dinheiro. Nada podia dar errado, mas, na adrenalina, eu não ligava para nada além de Wembley. Wembley, Wembley e mais Wembley. Eu tinha participado de coberturas jornalísticas importantes, mas apenas no futebol semiprofissional da Irlanda havia trabalhado em jogos envolvendo times da primeira divisão. Nem mesmo na Escócia, pois o Rangers FC, o maior time de lá, faliu e lutava para voltar à “primeirona”.
Chegando em Wembley Park com 2min e 27seg de atraso, encontro João Castelo Branco sentado num banco, como se fosse uma pessoa comum. Para mim, ele é muito mais que isso. JCB pertence ao seleto grupo de jornalistas que eu mais admiro, só comparado ao Paulo Vinícius Coelho (Fox Sports) e o escritor Marcos Eduardo Neves, autor de “Nunca houve um homem como Heleno”. Os dois últimos eu conheceria depois – PVC foi um dos meus entrevistados para um livro e Marcos eu conheci pessoalmente no Rio de Janeiro -, mas com João foi especial.
Ele abriu um sorriso tímido ao me ver e andamos alguns metros em direção à linda entrada principal do palco da final da Copa de 1966. Reformado no início dos anos 2000, Wembley recebe as fases finais da Copa da Inglaterra há quase 100 anos e jogar no estádio é um privilégio para poucos. Cansei de ver times comemorando como um título o fato de ter jogado há anos atrás no estádio, nas Copas Inglesas ou em torneios de acesso. Logo de cara fiquei impressionado com a funcionalidade do meu ídolo. Eu não fazia ideia que ele filmava e editava tudo sozinho. Achei que em grandes partidas ele tivesse equipe de apoio, ou ao menos um cinegrafista. Com muita desenvoltura, entrevistava os torcedores do Crystal e MUTD que chegavam e me senti um felizardo de poder vê-lo em ação in loco.
Na fila das credenciais, enquanto via seguranças brutamontes revistando jornalistas e vários detectores de metais, comentava como achava o apresentador Gary Lineker um “arrogante borra botas, chato pra cacete”, e João pediu para eu falar mais baixo. Afinal, Lineker poderia estar naquela fila. Vi os ex-jogadores Henry e Rio Ferdinand, comentaristas de televisão, sentindo por dentro muita vontade de pedir um autógrafo ou falar um despretensioso “how are you? I’m a big fan!” (como vai você? Sou seu grande fã!) ou algo assim, mas preferi manter a seriedade, como se estivesse acostumado a cobrir jogos daquela magnitude toda semana. Entramos no estádio com três horas de antecedência e parecia que eu estava sedado. Não podia crer que aquele começo de ano pudesse ter sido tão incrível, com fechamento épico ao lado de um dos maiores repórteres esportivos do Brasil.
Foram incontáveis matérias que assisti do JCB pela TV, quase todos os dias durante vários anos, e ali estava eu, com ele na cobertura de um jogo do time do Rooney e De Gea! Num determinado momento, achei que não sentia minhas pernas. Um filme passou pela minha cabeça, com vários erros e acertos que havia protagonizado na minha vida. Parecia que cada fiapo de coisas boas e ruins me levaram para aquele momento, e mesmo minhas piores cabeçadas pareciam suaves, mas leves que a moderna camisa “high tech” dos atletas. Viagem total por alguns segundos.
Voltando a realidade, entrei na sala de imprensa do local e tratei de postar a foto minha e do João na frente de Wembley no facebook. Em seguida, pesquisei algumas informações que ele pediu e depois fomos comer antes da correria que nos esperava. O cardápio era 100% inglês, com o tradicional “fish and chips” (peixe com batatas), assim como purê de batata e outras guloseimas. Comemos rápido e fomos para as arquibancadas, ainda vazias, para ele fazer sua primeira de muitas passagens ao vivo durante o dia. Eu apenas segurava o computador e regulava o áudio para ele, enquanto o repórter falava com os repórteres do canal, que estavam em São Paulo.
Depois de uma conversa que teve com produtores da ESPN, reclamando de alguma coisa que eu não lembro o que era, ele me chamou para descermos para nos acomodar numa das cadeiras atrás de um dos gols, logo após a torcida, no gramado. Após mega abertura, ao estilo Copa do Mundo e Olimpíadas, o jogo finalmente começou. Estávamos entre a torcida do Crystal e o goleiro De Gea, situados milimetricamente no meio do gol do Manchester. A partida em si foi bem abaixo das expectativas, com o time de Louis Van Gal apresentando um futebol pobre, sem recursos ou jogadas criativas, apesar de bons jogadores, e o Crystal partindo para cima, mas sem a técnica necessária para arrematar o jogo. A torcida do Palace fazia muito mais barulho que a do United e eu já esperava por isso. Geralmente equipes menos badaladas têm torcidas forte na Inglaterra, pois times como Arsenal Chelsea e Manchester têm muitos fãs estrangeiros, tipo os sheiks árabes que eu vi descendo de helicóptero vindo de Dubai apenas para assistir a partida.
João pediu para eu avisá-lo de alguma situação ou cena curiosa para ele registrar com sua atenta câmera. Pediu também para eu não levantar em hipótese nenhuma do banquinho em que estava durante o jogo, pois a torcida poderia reclamar. Tudo correu maravilhosamente bem e o único “porém” foi um jornalista que estava do nosso lado. Ele ficou me olhando torto o jogo inteiro, talvez por achar, pela minha aparência, que eu fosse sírio, e ele, xenófobo, não me achava digno de estar ali. Não importa. A torcida do Crystal e do Manchester foram atenciosas comigo e bati várias fotos com eles, mas confesso que estava torcendo para o time do subúrbio de Londres.
Senti que para os torcedores do Palace, aquele momento era único. Talvez eles tivessem uma nova oportunidade dessas daqui há 50 anos, vai saber. Muita gente chorava de emoção, apenas por estar ali, no lado azul, vermelho e grená do estádio, ao passo que no lado vermelho e preto a massa só se preocupava em pedir a cabeça de Van Gal, implorando para a contratação de José Mourinho, ex-Chelsea. Depois de dar algumas bocejadas no tediante segundo tempo, me perdendo no show visual proporcionado pelos 88.619 espectadores, sou “acordado” pelo gol de Puncheon, do Crystal, aos 33 minutos, com empate de Mata três minutos depois. O placar igual forçou a prorrogação e o jogo sem graça se transformou num banho de bola.
O reserva Jesse Lingard, com um petardo de fora da área, decretou o final da partida: 2 a 1 United, com os Diabos Vermelhos conquistando seu primeiro título pós Alex Ferguson. Rooney, Rashford e Cia estavam se preparando para levantar o troféu na tribuna do príncipe quando João me deu a bomba: Mourinho já estava contratado, todos já sabiam – menos Van Gal, do qual Mou foi pupilo no Barça dos anos 90. Corremos para o setor da coletiva de imprensa, que estava lotado mesmo com 30 minutos de antecedência para as entrevistas dos treinadores. Alan Pardew foi o primeiro, usando seus dez minutos para elogiar de forma efusiva seus jogadores e puxar o saco dos dirigentes. Quando Van Gal chegou, o silêncio imperou na sala. Os jornalistas se entreolhavam, com um misto de pena e perplexidade. “Como podem fazer isso? Ele acaba de ganhar o título e o despedem!”, comentou um repórter. João filmava tudo e eu apenas assistia ao treinador ser irônico e responder a todas às perguntas de forma franca, ao lado de uma assessora de imprensa com cara de poucos amigos. No fim, ele surpreendeu todos e disse “obrigado”. Ninguém o havia congratulado pela conquista do título.
A notícia inesperada fez João e eu subirmos correndo rumo à sala de imprensa, da qual ficamos até às 23 horas. Exausto, saí com ele do estádio pensando em tomar uma pint (copo grande de cerveja) com ele, esquecendo completamente que eu não tinha um pence (centavo) furado na carteira. Despedimos-nos e eu agradeci efusivamente pela oportunidade incrível. Tinha a consciência de que, assim como os torcedores do Palace naquele dia, não sabia ao certo se teria outra chance daquela. Antes de ir para a estação Wmbley Park e voltar para o bairro mulçumano, pedi uma entrevista exclusiva com ele para publicar num jornal da minha cidade.
*Texto publicado originalmente para o site Linha de fundo em outubro de 2017