Em Crônicas do Povo, conheça Carlos Passos, o antropólogo do Terminal

ContilNet abre espaço para histórias de vidas de gente simples, mas cheia de significado; toda semana, um novo personagem

Carlos é antropólogo sem diploma. Especializou-se em ler a humanidade de posição privilegiada. Quando não está de costas para o mundo, sentado no banquinho, engraxando sapatos na porta do Terminal Urbano de Rio Branco, é da cadeira dos clientes que faz o seu Big Brother da vida real.

Carlos é antropólogo sem diploma. Especializou-se em ler a humanidade de posição privilegiada/Foto: Juan Diaz/ContilNet

E ali, se sente como se estivesse na área vip de uma arena romana assistindo ao espetáculo da vida – a vida alheia, de camarote, ora pra aprendizado próprio, ora pra compartilhar com quem esteja interessado em saber, pura e simplesmente. Diz que aqui, ele encontra “diferentes personalidades, de diferentes níveis sociais. Um campo de estudo”. E pra quê?

– Bem, pra colorir nossos pensamentos, responde ele.

Por isso, Carlos coleciona personagens surreais. O peão de fazenda que de manhã é macho, e de tarde, vira fêmea é o mais emblemático.

Como assim, Carlos?

– É isso mesmo. Não há dia pra acontecer, mas ele passa aqui de bota, chapéu e cinturão pela manhã, e volta lá do mercado vestido de mulher. Acho que toma umas cachaças antes, em algum boteco por aqui, pra criar coragem, porque já vem cambaleando.

E por que será que ele age assim?

– Não sei. Fico encucado também pra onde ele vai e onde deixou os seus testículos e as suas roupas de caubóis. O sujeito é estranho.

Antes de ser engraxate Carlos Alberto de Passos, 56 anos, era Carlinhos Guaraná, o cantor do povão. Fazia shows nos bailes da Sborba, a Sociedade Beneficente dos Operários de Rio Branco e já foi aplaudido na avenida Getúlio Vargas, em cima de caminhão Mercedes-Benz 1313, puxando trio-elétrico do Colégio Barão do Rio Branco ao Formigão. Cantava também MPB e se gaba de ter alegrado muitos bacanas no Paço.

Antes de ser engraxate Carlos Alberto de Passos, 56 anos, era Carlinhos Guaraná, o cantor do povão/Foto: Juan Diaz/ContilNet

Um dia descobriu-se “prostituto musical”. Sentia-se incomodado toda vez que o show terminava. E como na canção ‘Garoto de Aluguel’, do Zé Ramalho, diz que só recebia o dinheiro porque queria viver. – Eu era um prostituto. Um puto musical.

E viver daquele jeito, pelo menos, já não era a sua praia. A essa altura, nem o apelido Guaraná lhe servia mais. Tornou-se evangélico. Virou nova criatura pelo óleo ungido. Prostrou-se em oração a Jesus por um novo emprego. Foi atendido. Vagando pelo Terminal, vendendo quadros do Flamengo e do Corinthians, conheceu a cera. Conseguiu vaga de engraxate na vez do titular da concessão, que adoeceu dos rins e nunca mais voltou. – Ele não morreu, mas só mudou de ofício mesmo, porque Deus não descobre ninguém pra cobrir outro.

Desde que chegou de Maceió, em 2000, guarda o que sobrou de uma camisa-souvenir que trouxe consigo/Foto: Juan Diaz/ContilNet

Hoje, só curte Gospel nos cultos da Igreja Assembleia de Deus. A saudade da vida de outrora, não tem, exceto a de que levava nas Alagoas, antes da família entrar em contenda de morte com outra.

Desde que chegou de Maceió, em 2000, guarda o que sobrou de uma camisa-souvenir que trouxe consigo, enaltecendo as praias e os forrós da gente bonita de sua terra-natal. O ranço dos duelos entre famílias, que teima em mostrar em pleno século 21 quem é mais forte que o outro na bala ou na faca, o trouxe para o Acre. Se permanecesse lá, seria mais um na história dos Passos a matar ou ser morto.

Desde que chegou de Maceió, em 2000, guarda o que sobrou de uma camisa-souvenir que trouxe consigo/Foto: Juan Diaz/ContilNet

E o antropólogo da vida resume toda essa insanidade com a seguinte frase:

– A cultura do nordeste é a do Lampião, que levou para a sepultura o ódio da vingança, mas deixou um pouco nesta face da terra. É o que acontece com a minha família.

Ele crê, no entanto, que as novas gerações vão pôr um fim à ira sem motivo que teima em persistir no agreste. Espera que isso aconteça num dia em que ele ainda esteja vivo. Nem que seja muito velho, pra voltar e sentar, dessa vez, não mais num banco de engraxar sapato, mas numa cadeira de balanço, à porta do casebre e dizer:

– Daqui fui embora e pra cá voltei. E já não observo mais ninguém. Agora, meus olhos são só desse sertão querido.

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