Ao atender ao telefone, Kátia Vieira, 56, logo pede desculpas pela tosse que a acompanha ao final de quase todas as frases. Com bronquite alérgica, a moradora de Cuiabá tem sofrido fortes crises desde o começo dos episódios de queimadas na região do Pantanal. “Já costumo ter sintomas como tosse e falta de ar durante a época da seca, mas este ano está bem pior”, conta.
Pela crise sanitária causada pela pandemia da covid-19, Kátia também sente medo de buscar ajuda no posto de saúde que fica próximo à sua casa e acabar se contaminando. “É um impasse. Como já sou do grupo de risco, tenho sobrepeso e problema respiratório, não quero me arriscar”, afirma.
Confeiteira, ela diz já ter cancelado encomendas por não conseguir trabalhar, tamanho chega a ser o mal-estar que sente. “Às vezes, eu tusso tanto que vomito, coloco tudo para fora. A fumaça incomoda demais, sentimos o cheiro até dentro de casa. Mas como não abrir a janela com um calor de 40°C?”
Os sintomas de Kátia, infelizmente, são comuns e têm causa clara: quando inalados, os poluentes oriundos da fumaça, como monóxido de carbono, dióxido de carbono e óxidos de nitrogênio, são distribuídos pelo corpo na corrente sanguínea, podendo causar diversos problemas.
Conforme mostrou uma reportagem do UOL no dia 17 de setembro, dados do Lapis (Laboratório de Análise e Processamentos de Imagens de Satélite), ligado à UFAL (Universidade Federal de Alagoas) apontam que só em Cuiabá, cidade onde Kátia reside, o índice de CO (monóxido de carbono), está em torno de 738 ppm (partes por milhão). A máxima aceitável de CO na atmosfera é de 50 partes por milhão.
Por conta disso, no último mês, médicos relatam um aumento nos atendimentos relacionados a problemas respiratórios causados pela poluição do ar.
Quais os efeitos das queimadas na saúde humana?
Embora não sejam facilmente vistos, os minúsculos materiais particulados que ficam no ar após incêndios —especificamente, partículas que medem não mais do que 2,5 micrômetros (cerca de 30 vezes menor do que um fio de cabelo humano)— quando inalados, podem causar diversos danos.
A curto prazo, a exposição pode causar dificuldade para respirar, dor e ardência na garganta, rouquidão, dor de cabeça, lacrimejamento e vermelhidão nos olhos, mas diversas pesquisas já mostram que os danos vão além disso: a fumaça pode prejudicar os pulmões, os vasos sanguíneos e o sistema imunológico.
De acordo com o estudo publicado na revista científica Nature, “ao entrarem nos pulmões, as partículas aumentam a inflamação, o estresse oxidativo e provocam danos genéticos nas células de pulmão humano. O dano no DNA é tão grave que pode provocar incapacidade de sobrevivência ou a perda do controle celular, causando uma reprodução desordenada e evoluindo para câncer de pulmão”.
“Embora em um primeiro momento outros órgãos não pareçam ser afetados, já sabemos que, de forma direta ou não, a fumaça tem relação com o aumento da prevalência de infarto, AVCs, maior risco de câncer e até doenças crônicas”, explica Guilherme Pulici, alergista e médico do Hospital de Urgências e Emergências da cidade, em Rio Branco, no Acre, onde a população sofre os efeitos de incêndios na floresta Amazônica.
E o potencial de prejudicar muitas vidas é alto: essas partículas de diferentes componentes químicos podem ficar suspensas no ar durante dias e com os ventos fortes podem ser carregadas para distâncias de milhares de quilômetros —inclusive, a fumaça do Pantanal e da Amazônia já chegou a São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, e até em outros países da América Latina, como Peru, Bolívia, Paraguai, Argentina e Uruguai.
Por experiência pessoal, o médico, que é paulistano, mas mora há 15 anos no Acre, diz que a situação tem piorado nos últimos anos. “É só abrir a porta de casa que você já sente o olho arder, parece que está queimando a dois metros. Se olha para o céu, já não dá mais para saber e está nublado mesmo, ou se é só fumaça.”
Assim como em Rio Branco, em Cuiabá quem mais sofre são crianças, idosos e portadores de doenças respiratórias, conforme conta a médica pediatra Aparecida Pereira Camacho, que tem atendido diversos pacientes com queixas pela fumaça no Complexo Hospitalar de Cuiabá.
“Aqui, a sensação é que respiramos um ar pesado, sujo. Agora, com uso das máscaras, é comum no final do dia observar um resíduo escuro na superfície. Em tempos de pandemia, a fumaça agrava os problemas respiratórios causados pela covid-19, muitas vezes dificultando diagnóstico clínico”, afirma Camacho.
Dicas para quem mora em região onde há fumaça
Manter uma boa hidratação, consumindo entre dois a três litros de água todos os dias;
Evitar sair em horários nos quais a umidade do ar está baixa e, sempre que possível, a proximidade com incêndios;
Manter os ambientes da casa e do trabalho fechados, mas umidificados, com o uso de vaporizadores, bacias com água e toalhas molhadas;
Usar máscara ao sair na rua, evitar aglomerações e locais fechados;
Optar por uma dieta leve, com a ingestão de verduras, frutas e legumes;
Evitar banhos muito quentes e produtos com agentes químicos que tirem a umidade natural da pele;
Utilizar hidratante após o banho para evitar que a pele perca água;
Usar soro fisiológico para umidificar os olhos e o nariz constantemente;
Evitar a prática de exercícios físicos entre 10 e 16h;
Em caso de urgência, buscar ajuda médica imediatamente.
Por que as queimadas acontecem?
Alguns biomas, como é o caso do Cerrado, típico da região Centro-Oeste do Brasil, possuem condições favoráveis para ocorrência das queimadas, como o clima quente e seco, baixa umidade, acúmulo de biomassa seca no solo (as raízes são extremamente profundas), ventos fortes e até a presença de espécies de vegetais que produzem substâncias inflamáveis, como é o caso de gramíneas da espécie Echinolaena inflexa.
Para as regiões que não apresentam as mesmas características, fatores como raios, fogos artificiais, balões, cigarros acesos jogados em áreas próximas a vegetação, podem começar incêndios, mas não são as causas mais comuns.
“O que causa maior impacto, devastando milhares de hectares, é a queimada utilizada para expansão agropecuária. É uma prática de manejo utilizada para abrir espaço para as plantações de subsistência (conhecida como agricultura de corte-e-queimada). Primeiro, retira-se as árvores de médio e grande porte (para comercialização da madeira) e, em seguida, o fogo é usado para queimar as vegetações rasteiras, abrindo uma nova área que será utilizada para criação de gado e para plantação agrícola, as principais atividades econômicas do Brasil”, explica Mariana Rossi, bióloga e mestranda em Conservação da Biodiversidade e Sustentabilidade na USP-IPE (Instituto de Pesquisas Ecológicas).
Com grandes áreas desmatadas, os animais agonizam, queimados ou sem alimentos, e os impactos à biodiversidade podem ser irreversíveis. “Na Amazônia, o avanço da agropecuária formou um cinturão que percorre todo o bioma de leste à oeste do Brasil, coincidentemente, mesma área onde encontram-se os principais de incêndios”, afirma Rossi.
Dados são alarmantes
Em 2020, o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) já registrou mais de 72 mil focos de incêndio na Amazônia (12% a mais do que o período similar em 2019) e mais de 16 mil no Pantanal (um aumento de 183% em relação ao ano passado), segundo dados atualizados em 22 de setembro.
Só no Pantanal, entre janeiro a agosto, a área destruída —quase três milhões de hectares, mais de 16% de toda a área— já equivale a todas as queimadas dos últimos seis anos. É a maior devastação já constatada.
A tragédia ambiental é, em maior parte, de causa criminosa. Dados do ICV (Instituto Centro de Vida) apontam que 95% das queimadas no Pantanal foram detectadas em áreas de vegetação nativa, ou seja, que ainda não haviam sido desmatadas. Além disso, o monitoramento feito pelo instituto via satélite do INPE mostra que 86% dos focos de calor foram detectados em imóveis rurais, sendo 52% em imóveis já inscritos no CAR (Cadastro Ambiental Rural) e 34% em imóveis ainda não cadastrados.
O governo federal proibiu as queimadas intencionais por 120 dias, mas sem grandes fiscalizações por parte de agentes federais e com apenas 0,4% da verba destinada a programas de preservação entre janeiro e agosto deste ano gasta pelo Ministério do Meio Ambiente, parte da riqueza do nosso país se perde a cada dia.
Conheça ONGs que ajudam regiões afetadas
Para ajudar grupos de voluntários que prestam assistência às comunidades e animais afetados pelas queimadas no Pantanal, confira a lista criada por Ecoa.
A atuação das ONGs vai de levar alimentos para as pessoas e animais a criar projetos sociais que contribuam para a educação, comércio local e sustentabilidade.
Entre os grupos que atuam na Amazônia, estão o SOS Amazônia, Ecam (Equipe de Conservação da Amazônia), FAS (Fundação Amazonas Sustentável), AMPA e o IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).
(Foto de capa: Fagner Delgado)