Há um pássaro só observado em um dos ambientes mais bem preservados do mundo. Seu nome científico: Eubucco Tucinkae, de penas coloridas alternando entre o vermelho, o amarelo, o laranja e o verde. O Capitão-de-colar-amarelo, como é conhecido popularmente, foi observado no Brasil apenas no Parque Estadual Chandless, uma área de mais de 690 mil hectares destinada à preservação florestal, na fronteira do Acre com o Peru.
A ave, que vem sendo estudada à exaustão pela jovem bióloga Letícia Fernandes, 23 anos, foi escolhida para abrir essa reportagens por sua rara beleza e pelo seu modo de viver inusitado, em meio às árvores de embaúbas, numa das regiões mais inóspitas da Amazônia, palco de histórias como a do menino que foi atacado pela onça, do dia em que garimpeiros invadiram a área na intenção de prospectar a possibilidade de instalar um garimpo de ouro, ou das quadrilhas de narcotraficantes que se utilizam do rio Chandless desde o Peru, para comercializar armas e drogas no país, num caminho semelhante ao que fizeram os peruanos das últimas décadas do século 19, quando desceram as bacias do Ucayali e Urubamba em direção ao Brasil, para a exploração do caucho.
Passados mais de 100 anos e a região ainda sente a ausência dos governos local e federal ante a ameaça da caça predatória e da exploração ilegal de madeira por invasores, e da vulnerabilidade econônica e social de 16 famílias, compostas por 76 pessoas, que vivem dentro da floresta do parque.
Felizmente, o governo do Estado do Acre reiniciou uma frente de ações amplas para cuidar melhor da região e do seu povo, com a primeira edição do programa Ação Humanitária Itinerante, da administração Gladson Cameli, no dia 28 de junho deste ano.
Na Terra do Tucinkae, adaptar-se, todos os dias, às adversidades da natureza é mais que uma obrigação, é um verdadeiro sacerdócio por parte de seus moradores, ribeirinhos que vivem, remotamente, da agricultura de subsistência, da caça e da pesca, em um dos locais mais fascinantes do planeta.
Na vastidão da floresta, aves raras e exuberantes fascinam pesquisadores
A névoa úmida cobre a floresta ao amanhecer indica que o dia será de clima estável. Estamos no verão amazônico com períodos extensos de muito calor e umidade na selva. São 6 horas e a médica veterinária Vanessa Lima de Souza, 27 anos, com a colega bióloga, Ednáira Alencar dos Santos, 24 anos, já estão de pé, nas trilhas montadas para a captura de pássaros em ‘redes de neblinas’, como são chamadas, a mais de um quilômetro da sede do parque.
“A parte da manhã é a melhor hora de se capturar aves, porque é o período de maior atividade delas”, diz Vanessa, que ao contrário do que se imagina, não está propriamente focada no estudo dos pássaros em si, mas de como eles hospedam em seus corpinhos frágeis um bicho que é repugnante para muita gente: o carrapato.
Sim! Os pássaros também têm carrapatos, assim como os cães, “só que de uma espécie diferente dos nossos animais domésticos”, explica Vanessa, que na floresta do Chandless, cumpre uma imersão de 15 etapas intensivas de estudos práticos para a sua tese de mestrado em Ciência Animal com Ênfase em Doença Transmissíveis por Carrapatos, pela Faculdade de Medicina Veterinária, da Universidade Federal do Acre (Ufac).
Em 2019, segundo Ricardo Plácido, gestor do Parque Estadual Chandless, pelo menos 31 novas espécies de pássaros foram descobertas dentro da área de conservação, aumentando para 438 o número de espécies que podem ser observadas no local.
Mas qual a finalidade de se estudar carrapatos em aves? Explica Vanessa que eles são vetores de muitas doenças, incluindo a febre maculosa, que recentemente acometeu pessoas em Rondônia. “Ela se parece muito com a dengue e é transmitida por carrapatos. Daí, o grande objetivo do nosso estudo. Estudar as diferentes espécies em seus vários aspectos, monitorando como eles se desenvolvem como hospedeiros nos pássaros do Chandless”, afirma a cientista
Vanessa tem o apoio de Ednáira Santos, bióloga do Laboratório de Ornitologia da Universidade Federal do Acre (Ufac), para a captura dos animais, a aplicação de anilhas e a catalogação de cada um deles. “Sou uma colaboradora de pesquisa. Mas em breve também fazer mestrado em ecologia”, diz.
Enquanto as duas pesquisadoras catalogavam a fêmea de um Uirapuru Laranja, um grupo de crianças da comunidade se achegou para acompanhar o trabalho delas.
A publicação Birds of Peru, um guia de campo editado em inglês com mais de 1,8 mil espécies de pássaros encontrados no país vizinho do qual o Parque Chandless está muito próximo, é a diversão favorita dos meninos, depois da atividade pegar as aves com as mãos para soltar. “Essa é também uma forma que encontramos para envolvê-los nas nossas atividades”, ressalta Ednáira.
Mais tarde, na rede, outro Uirapuru Laranja, dessa vez macho, seria capturado. O macho possui cores mais vivas, como o vermelho forte, por exemplo, bem mais chamativo que a fêmea. “Na natureza é assim. É um pouco contrário dos seres humanos, quando o macho é que tem de ser mais bonito para atrair a fêmea”, brinca a cientista.
O charme do Tucinkae, o Capitão-de-colar-amarelo
Um dos mais interessantes e vistosos pássaros do Chandless e da Amazônia peruana é o Capitão-de-colar-amarelo, o Eubucco Tucinkae. No Brasil, os únicos avistamentos dessa ave foram registrados apenas no Acre, dentro do parque, e por isso mesmo, acredita-se que ela só exista nesta região da floresta amazônica.
“Aqui dentro do parque, conseguimos localizar apenas um casal, ainda assim, a uma distância de 5 quilômetros um do outro”, destaca Letícia Fernandes, que é mestranda em ecologia de aves pela Ufac. Ela afirma que afirma que uma das características do Tucinkae é que ele costuma viver em florestas de palmeiras e embaúbas. “Mas nunca vimos um ninho”, ressalta a pesquisadora.
Feitas a biometria e depois de catalogada com uma anilha com um código do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), cada uma das aves foi devolvida à natureza.
Celeiro de pesquisas científicas
Pela riqueza das espécies animais e vegetais na região, o Parque Estadual do Chandless tornou-se num grande celeiro de pesquisas científicas para jovens estudiosos em busca do mestrado ou do doutorado na área de ciências da natureza.
O biólogo Marcos Silva de Lima, 23 anos, por exemplo, optou por fazer seu mestrado pela Universidade Federal da Paraíba, na área de ecologia de micro gastrópodes, os caracóis e caramujos.
Lembra Lima que algumas espécies desses animais – quase imperceptíveis para os homens porque vivem em fendas, buracos e tudo o mais que puder escondê-los -, na região do Chandless, são muito determinantes para avaliar a saúde do rio.
“Algumas espécies como esta aqui – na foto – não são vistas por nós, facilmente, presas ao barranco no nível da água, mas possuem cavidades pode onde passa o fluxo da água, retendo microrganismos e substâncias minerais que vão permitir conhecer o que está contido no rio. Essa condição possibilita, por exemplo, até saber se o rio está contaminado por mercúrio, no caso de uma eventual depredação por garimpeiros”, explica Marcos Lima.
Marcos faz parte de um grupo de jovens cientistas que contribui para o monitoramento da fauna e da flora no parque, que precisariam ser mais valorizados pelas instituições de incentivo à pesquisa científica. Ainda há muitas limitações no campo do financiamento a esses estudos, situação agravada, sobretudo, no governo do presidente Jair Bolsonaro, com o corte de verbas para a pesquisa universitária.
Prática do birdwatching poderia alavancar ecoturismo na região
Ricardo Plácido, coordenador do parque, acredita que, embora a reserva seja para fins de conservação, ela tem potencial para ser explorada pelo ecoturismo, sobretudo, pelo hobby da observação de pássaros, um grande filão de mercado do turismo mundial que poderia gerar recursos para a manutenção da própria unidade.
Ele mesmo é um dos praticantes do chamado birdwatching. “Trata-se de uma política de excelência para a região alavancar recursos para a nossa própria manutenção, já que o volume de investimentos na qualidade de vida de nossos moradores e para a própria manutenção do parque ainda é baixo”, explica Plácido.
Conforme o coordenador, os recursos que chegam para a Floresta Estadual do Chandless são originários do programa Áreas Protegidas da Amazônia, na sigla Arpa, patrocinado por agências governamentais e não-governamentais para impulsionar a proteção da floresta amazônica no Brasil. E só. Embora o Chandless contribua massivamente com a geração de créditos de carbono na Amazônia, o parque nunca recebeu nenhum centavo por essa cooperação em contrapartida.
Quanto às verbas originárias do programa Arpa, de 2019 até o presente momento, foram executados R$ 408,4 mil, de um total de mais de R$ 1,5 milhão. Plácido explicou que a baixa execução para o que foi planejado para o biênio 2020/2022 se deve à mudança de gestão do parque e aos efeitos da pandemia de Covid-19.
“Esses fatores nos travaram muito em 2020 e 2021. Mas pretendemos executar o recurso ainda neste ano, nas diversas frentes de atividades planejadas para o parque”, afirmou. Os recursos financiados pelo Fundo de Transição do programa Arpa financiam diversas unidades de conservação na Amazônia.
Os números dos investimentos foram drásticos em gestões anteriores, quando entre 2014 e 2015, por exemplo, foram usados apenas pouco mais de R$ 109,4 mil inicialmente. Entre 2016 e 2017, aumentou para pouco mais de R$ 658,3 mil e, de 2018 a 2019, foram pagos R$ 714,5 mil. O governo do Estado também é obrigado a fazer uma contrapartida de cerca de R$ 100 mil por ano.
Guardiões das floresta, jovens analisam comportamento dos bichos
Pelo menos até este momento, na ausência de uma política econômica sustentável consolidada para as famílias, uma das alternativas mais interessantes para geração de renda com compromisso ambiental é o projeto que utiliza os jovens como monitores do meio ambiente. Eles são ao menos 10 garotos e garotas que trabalham como verdadeiros guardiões da floresta, observando eventuais mudanças no comportamento da fauna e da flora que possam indicar algum dano ambiental, por exemplo.
“Eles, inclusive, aprendem a manusear equipamentos, como as câmeras automáticas de observação de animais que são fixadas nas árvores, em pontos estratégicos da mata, para monitorarmos os seus comportamentos”, afirma o biólogo Luiz Henrique Medeiros Borges, 30 anos, coordenador do Monitoramento da Biodiversidade do Parque Estadual Chandless.
Doutor em Ecologia, Luiz Borges está há nove anos dentro da Floresta do Chandless, apoiando a pesquisa científica de jovens e auxiliando na conservação da área. Pelo serviço, os jovens ganham uma bolsa de R$ 600 paga pelo programa Arpa.
Hilton Peres Nunes, de 18 anos, é um dos monitores. Um de seus serviços é o de observar o comportamento das diferentes espécies de borboletas. Ele entende que enquanto alguns indivíduos – cada espécie identificada pelo colorido e formato de suas asas -, são predominantemente de ambientes mais abertos, de clareiras, outros são mais de selva fechada.
“Desse modo, quando percebemos que há mais borboletas de clareiras que de floresta fechada num mesmo local, é provável que ali esteja acontecendo um desequilíbrio, talvez um desmate ilegal ou algo parecido. Então, por essa observação que fazemos e comunicamos, os coordenadores do parque podem tomar alguma providência”, explica o jovem.
As observações se estendem também a antas, pacas, cutias, tatus e outros animais característicos da fauna do Chandless.
Atividades como estas, além de estimular a curiosidade desses moradores, os capacitam a cuidar da floresta e a buscar uma formação científica no futuro, mesmo com todas as adversidades da moradia no interior da selva.
Homem que perdeu 6 filhos em dois naufrágios, 20 anos depois salva mais um de ataque de onça
Pedro Vasquez Gonçalves costuma dizer que tem duas idades: a do dia em que quase foi devorado por uma onça – 11 anos atrás -, e a idade biológica, 24 anos. Ele mostra a cicatriz das mordidas do felino sob os cabelos da cabeça, e atrás da orelha direita, resultado de uma manhã de infortúnio numa pescaria com o pai, Antônio Iunbato Gonçalves, de 70 anos.
Estávamos pescando rio acima de nossa casa, umas quatro horas de rabeta [canoa com motor simples, muitas vezes de potência menor que lanchas ‘voadeiras’]. Eu deveria estar a uns 200 metros do Pedro, conferindo a rede no meio do rio – conta o pai, Antonio.
– A onça desceu do barranco pela outra margem, a uns 30 metros do meu filho, atravessou o rio e foi na direção dele. Gritei muito pra que ele corresse, mas não me ouviu – completa o ancião.
O animal, de acordo com os relatos de quem o estuda, costuma surpreender suas presas quando elas estão de costas. Foi assim que aconteceu com Pedro. Com uma vara de pescar numa mão e espingarda calibre 16 a tiracolo, ele só virou de frente para o animal há poucos metros para o ataque.
Eu fiquei nervoso e resolvi atirar. Mas não esperei ela chegar mais perto para que o disparo a atingisse. Então o tiro realmente não a atingiu por estar ainda muito longe – narra o jovem Pedro Gonçalves.
O bicho apoiou as duas patas sobre os ombros do menino e cravou suas presas atrás da cabeça, alcançando também parte do pescoço por trás da orelha esquerda.
Eu caí na água com ela, já desmaiado por causa dos ferimentos. Eu fui para dentro do rio, num banco de areia que não dava 30 centímetros de fundura. E neste momento, ela tentava terminar comigo, mas encontrou dificuldade pra abocanhar meu rosto porque toda vez que tentava, entrava água no seu focinho.
A essa altura, o pai se aproximou, assim como moradores de uma casa próxima e a espantaram com pedaços de vegetação seca e um varejão – espécie de vara própria para a navegar com canoa nas áreas rasas do rio.
“Foi um milagre de Jesus”
Retirado da água, conta seu Antonio Iunbato Gonçalves que da cabeça de Pedro o sangue jorrava que nem vertente. Num dado momento, Pedro recobrara a consciência e dissera ao pai a seguinte frase:
Pai, estou passando pela prova.
Eu então coloquei a mão sobre o ferimento, fechei os olhos e pedi para que Jesus fizesse parar aquele sangue. Em nome de Jesus, vai parar agora – narra o idoso. E parou. A forte hemorragia cessou imediatamente pela fé, garante seu Antonio.
Com o rosto inflamado e muita febre, Pedro enfrentou uma viagem de dois dias de barco até a foz do rio Chandless e outro meio dia pelo rio Purus, para Manoel Urbano, município a 220 quilômetros de Rio Branco. Antes, porém, tomou uma pílula de penicilina oferecida por um morador.
Na boca do Chandless, o pai dele pediu ajuda na aldeia Santo Amaro, de indígenas da etnia kulina. Ali, um grupo de enfermeiros da Secretaria de Saúde de Manoel Urbano aplicou-lhe uma injeção de benzetacil. Seu Antonio Gonçalves também ganhou dez litros de gasolina para continuar a viagem para Manoel Urbano. Foram cinco dias do ataque à chegada no Hospital de Urgência e de Emergência de Rio Branco.
Para quem perdeu seis filhos em dois naufrágios, quatro deles de uma só vez no primeiro acidente – quando levava no inverno um carregamento de madeira de paxiúba pelo rio cheio para a nova casa -, vencer a derradeira batalha contra a onça o deixou ainda mais forte para as adversidades de uma das regiões mais hostis e fascinantes do planeta.
O dia em que garimpeiros equipados com GPS e armados invadiram a área
Um grupo de pelo menos 15 homens desembarcou no Chandless numa tarde ensolarada. Rapidamente, subiu o barranco que leva à sede do parque. Um dos indivíduos carregava um celular da marca Iridium, para ligações via satélite. O outro tinha um mapa da região com coordenadas rabiscadas na lateral de pontos marcados no interior da floresta.
Eles cumprimentaram as pessoas que estavam na sede, entre pesquisadores, coordenadores de campo e moradores e não precisaram pedir pela senha do wi-fi local, uma vez que já chegaram com ela.
Também sabiam da existência da pista de pouso, atrás da edificação da sede, construída pelo antigo da fazenda Juçara, além de detalhes como os seus 510 metros de extensão, relativamente curta para um avião a pistão bimotor, mas o suficiente para a aterrissagem de um monomotor do porte de um Cessna Skylane.
“Sim, patrão, chegamos ao local. Realmente deu três dias de viagem. Qualquer bronca, a gente envia um sinal e o senhor manda um helicóptero”, disse um deles, baixinho, barrigudo e com um bigode que o deixou com a aparência do Sargento Garcia, da série de televisão Zorro, de 1957.
A missão dos indivíduos, tão estranhos por aquelas paragens, intrigou os moradores e, de certa forma, até os intimidou quando sutilmente se mostraram armados.
“Descobrimos depois que eles eram garimpeiros de Rondônia e estavam prospectando ouro aqui dentro, o que é crime ambiental”, diz o biólogo Luiz Henrique Medeiros Borges, coordenador do Monitoramento do parque. “Mas os caras saíram daqui do mesmo jeito como chegaram, num piscar de olhos”, completa.
A invasão dos garimpeiros ocorreu no segunda quinzena de junho do ano passado, e em julho, o Ministério Público do Acre (MPAC) instaurou procedimento administrativo para investigar o ocorrido. Para isso, os promotores receberam um ofício do Ministério Público Federal no Acre com as informações da incursão. O processo segue em andamento.
Melancias recheadas de entorpecentes na madrugada
Há um consenso entre os moradores do Chandless sobre avistamentos de frotas de barcos mais velozes rio abaixo, sobretudo fora de hora, em direção ao rio Purus, ainda que isso não seja com muita frequência. A rota do Chandless tem pelo menos mais 600 quilômetros por água até entrar em território peruano desde a sede do parque, já nas terras do caucho.
Essa condição geográfica de isolamento total pela densa selva em ambas as margens, no entanto, não é nenhum empecilho para o narcotráfico que alicia guias peruanos conhecedores profundos da região e de poder de persuasão com os moradores locais, quando precisam de acolhida.
A maior rota do tráfico de drogas e de armas desde o Peru está por Santa Rosa do Purus, desde a cidade de Puerto Esperanza, a um dia de barco subindo o rio Purus, do qual o Chandless é o seu afluente principal. No entanto, manobras de homens do 61º Batalhão de Infantaria e Selva, do Exército Brasileiro, sediados em Santa Rosa, não desencorajaram totalmente as ações criminosas pelo Purus, mas já conseguiram dissuadi-las um pouco mais que no passado, fazendo com que o Chandless seja uma alternativa das quadrilhas de narcotraficante, ainda que com pouca frequência.
“Temos relatos aqui de moradores que viram carregamentos grandes de melancias serem preenchidos com cocaína. Em algumas ações, eles mandam na frente um batedor para verificar se está tudo limpo e muitas vezes encostam antes do amanhecer do plantio de melancias para levar uma dezena recheada de cocaína”, afirma o barqueiro F. L. O., 25 anos, que prefere não se identificar.
O Pelotão Ambiental, da Polícia Militar do Estado do Acre, realiza o patrulhamento do Chandless. Mas a vigilância não é recorrente pelas condições da própria região inóspita.
A história da região
A história do Alto Purus pode ser organizada em cinco fases: a primeira é indígena, pré-colombiana e imemorial, durante a qual predominaram relações sociais, culturais e comerciais entre diferentes sociedades que habitavam o Purus.
A segunda fase é de expedições com objetivo de reconhecimento do território e seus habitantes e de investigação científica que ocorreram na segunda metade do século 19, entre 1861 e 1864, organizadas por Manuel Urbano da Encarnação e William Chandless, que fizeram as primeiras descrições a respeito dos grupos nativos que viviam no rio Purus e seus afluentes.
A terceira corresponde à expansão das atividades de exploração da seringueira (Hevea brasiliensis) e do caucho (Castilloa elastica), nas últimas décadas do século 19 e primeiras do século 20, por brasileiros vindos do litoral e peruanos da serra e da selva, que ocuparam as margens do Purus, seus afluentes e tributários, inclusive o rio Chandless, da foz às cabeceiras. Conflitos de fronteira entre caucheiros peruanos e seringalistas brasileiros influenciaram a formação da sociedade regional. Euclides da Cunha, designado para chefiar a Comissão Mista Brasileiro-Peruana, percorreu o Purus até sua foz em 1904 e 1905, e levantou subsídios que resultaram em acordo de limites firmado em 1909 pelo Tratado do Rio de Janeiro.
A quarta fase ocorreu nas décadas de 1960 e 1970 do século passado, período do governo militar e sua política de incentivo à ocupação da região. O rio Chandless foi palco de conflitos entre moradores tradicionais, indígenas e fazendeiros que, de forma fraudulenta, “compraram o rio” e exploraram a madeira, o comércio de peles de fantasia e a pecuária.
A quinta fase corresponde à atualidade, ou seja, à arrecadação das terras do rio Chandless pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra e sua transformação, em 2004, em uma unidade de proteção integral, o Parque Estadual Chandless.
Os atuais moradores do rio Chandless são descendentes de famílias representativas dos diferentes grupos que ocuparam o rio em cada fase histórica: indígenas das etnias Manchineri e Jaminawa, peruanos descendentes de famílias que vieram na época do caucho e outros que chegaram recentemente, e brasileiros descendentes de nordestinos que também migraram na época da borracha e outros já nascidos no Acre. As famílias atuais resultam de uniões realizadas entre todos os grupos, ou seja, de diferentes origens geográficas e étnicas.
Assim, o Parque Estadual Chandless, visto do ângulo de quem mora na área, é a etapa final de uma longa história, cujo período mais recente tem mais de cem anos, durante a qual ocorreram épocas de prosperidade e outras de confrontos. Primeiro, a demanda internacional por látex tornou a exploração da seringueira e do caucho um negócio muito lucrativo, que levou à ocupação e disputa por territórios, à expulsão, à escravidão e incorporação à empresa extrativista dos povos indígenas que habitavam a região.
Depois, na década de 1970, em decorrência das políticas voltadas à integração da Amazônia ao mercado nacional e internacional pela agropecuária, à destruição da floresta e expulsão de seus moradores.
Nas últimas décadas, a ocupação ribeirinha se consolidou e se expandiu e um aspecto central na história do rio Chandless resulta da peculiar característica dos solos locais, não apropriados ao crescimento da seringueira e da castanheira (Bertholletia excelsa), espécies florestais que viabilizaram a ocupação humana não-indígena na região do Alto Purus durante mais de 40 anos.
No rio Chandless somente encontra-se o caucho, cuja exploração é temporária e itinerante, uma vez que para obter o látex é preciso extinguir a árvore.
Assim, o rio Chandless é um enclave natural no Alto Purus, aspecto que influenciou de forma peculiar a história regional; enquanto a seringueira e a castanheira podem ser exploradas indefinidamente e asseguram a ocupação humana em espaços permanentes como cidades, vilas e colocações, o caucho é explorado por grupos itinerantes que não se fixam a não se pelo curto período de exploração de um conjunto de árvores, e não se organizam em comunidades estáveis nos locais onde obtém o látex.
Esse conjunto de elementos tornou a ocupação do Chandless distinta da ocorrida em todos os outros rios da bacia do Purus, assim como influenciou a composição peculiar da população que ali vive, uma mistura de indígenas, peruanos e brasileiros que desenvolveram uma economia não dependente dos produtos mais típicos da floresta Amazônica ocidental, a borracha e a castanha.
Uma floresta primária, floresta virgem, floresta primitiva, ou floresta nativa, é uma floresta antiga que, nunca tendo sofrido perturbações significativas nem sido explorada ou influenciada diretamente.
(Fonte: Relatório Socioeconômico do Parque Estadual do Chandless – Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Acre)
O Parque Estadual Chandless
De acordo com o plano de manejo da Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Acre, feito ainda em 2010, a área tem 695.304 hectares, representando 4,23% do território do estado do Acre de floresta em grande parte primária, ou seja, floresta virgem, primitiva e também chamda de nativa, por nunca ter sofrido perturbações significativas, nem sido explorada ou influenciada diretamente.
O Parque Estadual Chandless é uma Unidade de Conservação de Proteção Integral. Está localizado no centro-sudoeste do estado do Acre, na fronteira do Brasil com o Peru.
Ele foi criado pelo Decreto 10.670. de 02 de setembro de 2004, com o objetivo de “assegurar a preservação de ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico” (Art. 2º).
A área em que ele está localizado é considerada pelo Ministério do Meio Ambiente como de extrema importância para a conservação da natureza, principalmente pela sua biodiversidade, além de sua localização no “arco do desmatamento”.
Essa Unidade de Conservação localiza-se nos municípios de Manoel Urbano, Santa Rosa do Purus e Sena Madureira. A região em estudo pertence à bacia do rio Chandless, afluente do rio Purus que é afluente do rio Amazonas, pela margem direita.