Como há em todo o Estado um ditado popular segundo o qual “quem toma água do rio Acre não sai mais daqui ou acaba voltando”, na região do Juruá há um equivalente com base no principal produto de exportação da região, a farinha de mandioca. De acordo com o ditado local, quem prova da farinha de mandioca regional, jamais a esquece.
Também pudera: torrada e crocante, cheirosa e saborosa, podendo acompanhar praticamente todos os pratos da culinária local, a farinha se torna quase indispensável na hora das refeições, mesmo no café da manhã, quando pode ser transformada numa suculenta e nutritiva farofa de ovos fritos. Enfim, a farinha ou a farofa está presente no churrasco, como complemento do tradicional feijão com arroz, no pirão escaldado da caldeirada de peixe ou da galinha caipira. Por isso, é tão inesquecível para quem já a provou. Afinal, segundo a neurociência, paladar também é memória.
Por falar em memória, há estimativas de que a farinha de mandioca seja fabricada desde a época dos povos pré-colombianos. Há registros de fabricação de pilões que os historiadores estimam que tenham sido feitos há pelo menos dois mil anos.
De acordo com pesquisadoras como Valéria Saldanha Bezerra, autora de um estudo intitulado “Farinhas de Mandioca Seca e Mista”, publicado em 2006, pela Embrapa, em Brasília, ou Lúcia Gaspar, de estudo semelhante pela “Fundação Joaquim Nabuco”, os primeiros registros da farinha de mandioca datam de dois mil anos, segundo os primeiros vestígios de pilões para moagem de mandioca no que seria o Brasil. Já em 1551, o padre jesuíta Manuel da Nóbrega, escrevendo sobre sua visita a Pernambuco, referia-se ao beiju e às farinhas fabricados pelos indígenas.
No período colonial, a farinha de mandioca tornou-se parte da alimentação dos escravos e criados das fazendas e engenhos, além de usualmente compor o farnel dos viajantes portugueses. Em algumas regiões, objetivando tornar o alimento menos perecível, misturava-se a farinha de mandioca com a farinha de peixe seco, socada em pilão.
Daí em diante a farinha de mandioca passou a ser ingrediente usado na fabricação de vários alimentos, entre os quais o já citado beiju, conhecido pelos índios como mbyú, farofa, pirão e em uma grande quantidade de receitas da culinária brasileira.
A tecnologia de transformação de raízes de mandioca em farinha é tradicional e se mantém sobretudo na região Amazônica, por influência dos nordestinos que colonizaram a região, no início do século passado, mas ultrapassou as fronteiras regionais e hoje é um dos componentes essenciais da dieta da população brasileira, notadamente das regiões Norte e Nordeste.
A partir da raiz da mandioca (Manihot esculenta), são produzidas as farinhas seca, d’água e mista; a goma ou fécula; o tucupi; e a farinha de tapioca. O processamento da raiz da mandioca é, frequentemente, realizado segundo métodos tradicionais, herdados dos indígenas, que foram os primeiros cultivadores da espécie. No entanto, a transformação industrial vem aumentando e, no Acre, começa a dar os primeiros passos para a industrialização. O que era uma produção realizada em pequenas unidades artesanais rurais, conhecidas como casas de farinha, com a utilização de equipamentos rústicos e mão de obra familiar ou de colaboradores locais, deverá ceder lugar à modernidade.
As casas de farinha tradicional consistem em espaços artesanais compostas de sistema de ralação, de prensagem e forno. Depois da colheita da raiz, a mandioca é levada do roçado para a casa de farinha, onde é descascada ou raspada para retirar a pele escura e suja. Em seguida, é triturada ou ralada em pilão ou no ralador, também conhecido por caititu, equipamento responsável por um sem número de acidentes em que o operador, em trabalho manual, acaba perdendo parte dos dedos das mãos.
Ralada, a massa da mandioca vai caindo em um cocho, sendo depois prensada no tipiti, originário da língua tupi guarani para designar o ato de espremer o líquido, para a retirada de uma substância venenosa chamada manipuera ou manipueira, vulgarmente chamada água-de-mandioca, que é resultante da fermentação. Isso permite também o enxugamento da massa, pronta para a torrefação.
Já a massa da mandioca, o amido, que decanta durante a pubagem – a fermentação, é utilizada como goma, para passar roupas, ou para a fabricação de alimentos, como mingaus, papas, sequilhos, bolos e tapioca. É a fécula, podendo ser utilizada na indústria química e na da construção civil.
No trabalho artesanal, a farinha é feita geralmente em adjunto da família e de amigos. Dia de farinha é também dia de reunião, de celebração. Na casa de farinha, as tarefas são divididas: geralmente, os homens são responsáveis pelo processo de arrancar a mandioca da roça e transportá-la para a casa de farinha.
As mulheres e as crianças raspam os tubérculos e extraem o amido ou polvilho. O trabalho se estende pela noite, quando acontecem as chamadas farinhadas. Aparecem os sanfoneiros, violeiros, dançadores e entre goles de cachaça, café com beiju e muita alegria, o trabalho continua a noite inteira.
Mas este trabalho artesanal pode estar com os dias contados no Acre, principalmente no Juruá, cuja região, a partir de Cruzeiro do Sul até os municípios de seu entorno, Rodrigues Alves, Mâncio Lima, Porto Walter e Marechal Taumathurgo, tem pelo duas mil dessas casas de farinha artesanais instaladas.
Esses locais têm pelo menos 500 famílias de produtores de farinha, segundo o cadastro da Central das Cooperativas do Juruá. Isso significa uma produção de pelo menos 300 toneladas anuais do produto, mesmo que feito de forma artesanal.
O projeto de transformação e automação das casas de farinhas tradicionais para verdadeiras pequenas indústrias, com equipamentos modernos e que diminuem ou quase zeram o contato da mão humana na preparação do produto, começaram a chegar à região. Pelo menos cinco dessas casas modernas já estão em funcionamento.
Trata-se de um projeto da Secretaria de Indústria e Tecnologia (Seict) do Governo do Estado, em parcerias com instituições como Bird (Banco Interamericano de Desenvolvimento), Sebrae e Embrapa, Sepa (Secretaria e Produção e Agronegócio, Emater, Cooperfarinha (Cooperativa de produtores de farinha) e Central das Cooperativas do Juruá. “Nesse processo de automação, estamos buscando um padrão de excelência do produto”, disse o secretário de Estado de Indústria, Ciência e Tecnologia, Assurbanipal Barbary de Mesquita, que dirige o projeto. Segundo ele, além de melhorar a qualidade do produto sem alterar sua textura, cheiro e sabor originais, a automação das casas de farinha vai reduzir o tempo de produção, o que permitirá aumentar a produção e com isso melhorar o preço de mercado.
Mas, a parte todas essas vantagens, o melhor é que as casas de farinhas de farinhas automatizadas ou pequenas indústrias passam a ganhar um selo de qualidade da Vigilância Sanitária e de outros órgãos de vigilância em saúde como áreas de produção de alimentos livres de risco de bactérias capazes de causar infecções em quem consumir sua produção. O piloto do programa já está em funcionamento com cinco dessas casas de farinhas automatizadas na região do Ramal do Pentecostes, em Cruzeiro do Sul.
A implantação, no entanto, foi recebida com algum receio pelos produtores tradicionais, como afirma o representante da Emater na região do Juruá, o agrônomo Murilo Matos. Segundo ele, inicialmente foi difícil quebrar a resistência dos produtores tradicionais e convencê-los das vantagens da automação das casas de farinha.
“Eles pensavam que ia acabar com a qualidade da farinha de Cruzeiro do Sul. A verdade é que, com a automatização, a farinha melhorou mais ainda”, disse o agrônomo, segundo o qual os órgãos envolvidos com o projeto levaram no mínimo quatro anos para o processo de convencimento dos produtores.
Um deles, José Járissom, da região do Pentecostes, garante que hoje produz mais com menos tempo e ainda mantém a qualidade do produto. “Antes, para 10 sacas de farinha, começava às 2h da madrugada e a gente só ia terminar no fim da tarde, com cinco pessoas. Hoje, a gente começa às 5 da manhã e vai até 12:30h, com duas pessoas, fazendo o mesmo tanto ou mais de farinha”, disse.
Outros produtores, como Maria José Maciel, conhecida como “Veia”, e Sebastião Nascimento, lideranças do movimento de produtores de farinha no Juruá, também destacam as vantagens do projeto implantado para automação da atividade. Ambos destacam que as mudanças melhoraram a estrutura do trabalho do produtor, que definiram como uma atividade próxima da escravidão, no sistema anterior. “Era bom se cada um em sua comunidade tivesse uma casa de farinha com uma estrutura dessas. Aí a gente não precisaria mais trabalhar de madrugada. Estamos conseguindo produzir mais em menos tempo”, disse Véia.
A melhoria na qualidade de higienização do produto também melhorou o preço, pela agregação de valor. De acordo com Sebastião, anteriormente uma saca era vendida em média por R$ 130,00 e agora conseguem vender de R$ 170,00, uma melhora significativa social e econômica aos produtores.
A casa de farinha de Maria José, a Véia, hoje é a única que atende aos critérios de especificação técnica de produção automatizada de farinha com a insigne da Indicação Geográfica da Farinha de Cruzeiro do Sul, outra conquista dos investimentos e melhorias no setor, destaca o secretário Assurbanipal Barbary de Mesquita.
A Indicação Geográfica, conhecida pela sigla IG, é uma proteção jurídica que inclui a área geográfica do Juruá, incluindo os municípios de Cruzeiro do Sul, Rodrigues Alves, Mâncio Lima, Porto Walter e Marechal Thaumaturgo, como a região produtora. Sem a sigla IG, ainda que automatizada, a farinha não poderia sair das cercanias do Juruá ou do Acre, sendo vedada sua exportação. Com a identificação da localização geográfica, além do selo de qualidade da Vigilância Sanitária, o produto poderá ser inclusive exportado para o restante do Brasil e até para outros países.
“Existe um conselho regulador que garante a utilização das normas de especificação técnica para verificar como é que funcionam as unidades de fabricação e critérios avaliados para que essa farinha seja caracterizada como Identificação Geográfica (IG)”, explicou o secretário Barbary.
Ele destaca que a criação de Agroindústria para o beneficiamento de farinha é uma ação concreta do governo e parceiros na geração de emprego e renda. “Estamos tendo a satisfação e felicidade de entregarmos uma ação concreta da geração de emprego na Indústria e no Campo, em especial, aqui no Juruá. Essa oportunidade que está sendo concebida neste momento, ela vai alavancar muitos negócios com esses produtos aqui na região. O que nos resta agora é replicar esse modelo para demais produtores, para que todos assimilem. Não é um trabalho fácil, muitas coisas devem ser feitas ainda, mas, tenho certeza que com os primeiros resultados de negócios dessas 5 casas de farinha, todos os outros empreendedores desse segmento vão correr atrás e vão adotá-los”, disse.