25 de maio de 2024

Especial 88 anos da Aviação no Acre: conheça a saga pela integração aérea com o Brasil e o mundo

Da chegada do primeiro avião ao surgimento de uma rota estratégica

Em 5 de maio de 1936, uma terça-feira, o então Território do Acre recebia o primeiro avião da sua história, um hidroplano Junkers pilotado por alemães que pousou nas águas do Rio Acre onde hoje é o Bairro Taquari

Famílias inteiras ludibriadas pelo fascínio de um louco interventor, arregimentadas para arrancar, literalmente pela raiz, samaúmas e cumarus-ferro para a construção de um campo de pouso; crianças balançando bandeirinhas com a suástica nazista à espreita de um avião alemão a surgir a qualquer momento nos céus de Rio Branco; uma festa com pompas para a primeira aeronave a pousar na capital, no Estirão do Bagé, na calha do Rio Acre, onde hoje é o Bairro Taquari.

Avião Taquary no momento da sua chegada, no Estirão do Bagé, entre o Bairro do 15 e a outra margem que passou a se chamar Taquari; era 5 de maio de 1936. Foto: Acervo do jornalista José Chalub Leite/Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural da FEM

Se você acha isso surreal, pois saiba que mesmo se parecendo um conto de realismo fantástico do gênio escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez, aconteceu de verdade, no Acre dos anos 1930, um tempo épico em que o mundo assistia à expansão, cada vez mais rápida do transporte aéreo, e que inseriu nestas bandas de cá um sistema de malha aérea, acredite se quiser, ligando Rio Branco a polos internacionais como Santiago do Chile, no extremo sul do continente sul-americano.

Na reportagem especial do ContilNet, conheça mais sobre a história da aviação no Acre, que neste domingo (5) completa 88 anos com a chegada do primeiro avião ao então Território Federal do Acre.

Nos anos 1930, Rio Branco era uma cidade em que a energia elétrica era privilégio de algumas poucas localidades e desligada por quase todo o dia. A comunicação à distância era feita pela radiotelegrafia e, nas poucas ruas, se viam apenas os Jeeps Aero Willys, a Rural e os Simca Chambords.

Avenida Getúlio Vargas, na altura da Praça Plácido de Castro, também conhecida na época por Praça Rodrigues Alves, no centro de Rio Branco; o espaço foi construído no governo de Hugo Carneiro (1926-1930). Foto: Américo de Mello/Acervo IBGE

Nos rios, os barcos eram movidos a vapor. E se tudo isso, à época, era considerado como um mínimo de modernidade, imagine então se houvesse a possibilidade de uma ligação aérea com os grandes centros do Brasil e do exterior, encurtando meses de viagem de barcos entediantes por rios sinuosos da Amazônia. Esse foi o pensamento de um homem visionário no Acre Território, o interventor federal Manoel Martiniano Prado, uma espécie de governador daqueles tempos.

 Tripulação e políticos da época posam para a foto sobre as asas do Junkers F13 Taquary, no dia 5 de maio de 1936; ao fundo o vapor Benjamin, que levava meses navegando até chegar a outras capitais do país. Foto: Acervo do jornalista José Chalub Leite/Acervo Digital do Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural – FEM

Conta o historiador Marcus Vinicius das Neves, um dos maiores especialistas em História do Acre, que foi por meio de Prado que se iniciou a construção do primeiro campo de pouso no então território. “Foi ele, basicamente, o grande facilitador para que a primeira aeronave chegasse por aqui: o Taquary, que deu origem ao nome do Bairro Taquari que conhecemos hoje”, explica.

A aeronave, um Junkers F-13 produzido pela empresa Alemã Junkers, foi o primeiro avião totalmente metálico. Possuía um motor Mercedes D.III e tinha quatro assentos. Sua autonomia de voo era de 1.400 km e uma velocidade de cruzeiro de 160 km/h.

O Junkers F13 da Syndicato Condor era igual a este aqui; foi a primeira aeronave a pousar no Acre em 1936.

Marcus Vinícius ressalta que, depois de sucessivos contatos por radiotelegramas com as autoridades aeronáuticas do sudeste do país, Prado recebeu o aval de preparar um campo de pouso para o primeiro avião no Acre.

Manoel Martiniano Prado, visionário para uns, perverso para outros

Martiniano Prado era uma figura emblemática. Ao mesmo tempo em que pensava grande, também era perverso e aproveitador da mão de obra barata dos trabalhadores da época.

“Então, ele teve a ideia brilhante, mas não muito digna para as famílias, que foi a de recrutá-las para arrancar árvores centenárias na chibanca. E a cada uma delas, foi dado um pedaço de terra como recompensa. De modo que quem mais evoluía no trabalho era homenageado no Jornal O Acre da época”, frisa Neves.

Trabalhadores arregimentados pelo interventor Martiniano Prado nas obras do primeiro campo de pouso do Acre, o Aeroporto Salgado Filho. Foto: Acervo Digital do Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural – FEM

Já quem não trabalhava bem no seu projeto era tachado de preguiçoso e mal visto por não contribuir com os esforços dos federalistas “no progresso dos transportes”.

Na década de 1930, a empresa aérea Lufthansa, em operação até os dias de hoje, criou um sistema de cooperação inovador para o transporte aéreo na época, com outra empresa, a Syndicato Condor. A ideia era ligar Stuttgart, na Alemanha,a Buenos Aires, na Argentina. Começava a aproximação dos alemães com as cidades brasileiras. Cinco anos depois, em 1935, a companhia Condor seguia seu modelo expansionista, segundo muitos pesquisadores, numa forma disfarçada para preparar terreno para a eclosão da 2º Guerra Mundial. O objetivo era, sutilmente, conquistar aliados na América do Sul, unindo-os aos esforços de guerra alemães.

 Imagem promocional da frota de aviões da Condor embarcando pessoas, em algum lugar da América do Sul; para alguns especialistas, modelo expansionista tinha relação com o que viria a ser a 2ª Guerra Mundial.

Foi em 1935, um anos antes de chegarem ao Acre, que os aviões Junkers F13 saíram do Rio de Janeiro com destino a Santiago do Chile, cruzando as Cordilheiras dos Andes, num gesto mais de heroísmo que propriamente uma operação de linha aérea regular.

E no dia 5 de maio de 1936, a companhia Condor chegava por aqui, pela primeira vez, com o monomotor Junkers F13, o mesmo que havia cruzado os Andes na rota Rio/Santiago (Leia o texto do Jornal O Acre, a publicação oficial semanal do Governo do Território Federal, sobre como foi este grande dia).

Avião Junkers F13 no Estirão do Bagé; aeronave inaugurou rotas para o Acre. Foto: Acervo do jornalista José Chalub Leite/Acervo Digital do Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural – FEM

Antes, porém, após o campo de pouso ser construído às custas de muito suor dos trabalhadores, dias se passavam e a viagem inaugural marcada, embora nada de o avião surgir. “Esta situação gerou um clima de paranoia para a população, que a qualquer sinal de uma aeronave nos céus do Acre, ou até um urubu, que surgisse no horizonte, ficavam eufóricas”, acrescenta Marcus Vinicius da Neves.

O relato na íntegra do Jornal O Acre sobre o dia 5 de maio de 1936

A chegada

Terça-feira ultima, 5 do corrente, a população riobranquense viveu instantes de um sentimento novo, mixto de admiração e entusiasmo, quando, cortando os ares virgens do céu acreano, evoluia sobre a cidade o hydro-avião “Taquary”” da Syndicato Condor, que, em viagem de exploração e estudos para estabelecimento da navegação aérea neste Território, chegava a esta Capital

Momentos antes, ás 10 e 50 minutos, hora local, a sereia da “Usina Central Electrica” e a espoucar de foguetões annunciavam a alvicareira nova da decollagem do “Taquary” em Porto Velho, no visinho Estado do Amazonas, com destino ás paragens acreanas.

O movimento da cidade era indescriptivel; verdadeiro borborinho de uma multidão em azáfama, dominava o ambiente.

Não exaggeremos affirmando que cerca de duas mil pessoas enchiam as ruas da nossa metropole demandando ao local escolhido para a aquatisagem do apparelho.

Ás 13 horas, mais ou menos, descortinava-se no horizonte o Taquary rumando em direcção á cidade e depois ao estirão do “Bagé’, onde airosamente aquatisou e veio deslizando até o porto de Aprendizado Agrícola

Prédio do Antigo Aprendizado Agrícola, onde hoje é o Centro Lydia Hammes, no Bairro Aeroporto Velho; aeronave alemã pousou no Estirão do Bagé e singrou o Rio Acre até ancorar às margens do prédio. Foto: Acervo Digital do Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural – FEM

O desembarque

Após as manobras de atracação, desembarcaram da garbosa aeronave os senhores Dr. Frederico Hoepken, technico e engenheiro chefe da Companhia e da expedição, Guido Kleinat, pilto-mechanico e Durval Barros, radiotelegraphista, que foram recebidos no porto pela comissão composta dos senhores Raymundo Vieira de Sousa, director da educação e representante do Sr. Interventor Federal; Virgilio Esteves de Lima, prefeito municipal, em comissão; Dr. Flávio Baptista, presidente da Ordem dos Advogados no Acre; Dr. Achylles Peret, director do Aprendizado Agricola; Felippe Meninéa Pereira, director da Impressa Official, em comissão, Nelson de Lemos Basto, agente do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Maritimos; e capitão André Anastácio de Queiroz, da Força Policial do Territorio.

Ao pisar em terra foram os bravos e destemidos aviadores delirantemente acclamados pela grande massa do povo que atenciosamente os aguardava, e vivamente cumprimentados pelas autoridades e pessoas de destaque social que se achavam presentes, tendo, por essa ocasião o representante da Interventoria e o governador da cidade apresentando-lhes votos de boas vindas com a affirmação de que passavam a ser hospedes da cidade.

Em seguida transportaram-se todos ao Aprendizado Agricola onde demoraram cerca de uma hora enquanto, por gentileza do director daquelle modelar estabelecimento lhes foi servido um ligeiro lunch.

Multidão prestigia chegada do avião Taquary, no Estirão do Bagé, entre o Bairro do 15 e a outra margem que passou a se chamar Taquari; era 5 de maio de 1936. Foto: Acervo do jornalista José Chalub Leite/Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural da FEM

É uma palpitante realidade a linha aérea Corumbá-Acre

Concretiza-se um acalentado ideal acreano com a chegada do hydro-avião “Taquary”, da Syndicato Condor.

Até que afinal tomou-se uma explendida realidade a aspiração dos habitantes deste Territorio, que sempre ardentemente almejaram a sua ligação aérea com os grandes centros civilizados do paiz.

Após varios dias de espera em que por sucessivas vezes foi transferido por motivos varios, eis em fim realizado o vôo victorioso do hidro-avião “Taquary” da Syndicato Condor, enchendo de legitimo enthusisamo a população e inscrevendo na historia do Acre o nome dos seus arrojados e competentes conductores.

Para esse estraordinario acontecimento contribuiu decisivamente a energia moça e forte do Exmo. Sr. Dr. Manoel Martiniano Prado, preclaro Interventor Federal, que, com a sua proverbial operosidade administrativa, trabalhou intensamente junto ás altas autoridades da Republica e das companhias de navegação aérea, para a concretização desse anceio acreano. Justo, portanto, se lhe consagre gratidão pelo grande beneficio, quiçà, um dos maiores, conquistado graças ao seu esforço, patriotismo e amor por esta terra que procura engrandecer, enveredando-a na senda Larga do progresso.

A S. Excia, o Sr. Dr. Manoel Martiniano Prado, a nossa homenagem respeitosa, e effusivas congratulações pela execução da promessa que solemnentemente assumiu perante os acreanos.

(Reportagem do ‘Semanário Official: O Acre”, do dia 10 de maio de 1936)

A disputa Condor x Panair do Brasil às vésperas da 2ª Guerra Mundial

No final da década de 1930, a proximidade da 2ª Guerra Mundial deteriorou a relação da Alemanha com parte da Europa e dos Estados Unidos. A Condor então passa a ser um instrumento importante para os futuros planos do Eixo – a Alemanha, a Itália e o Japão – que via o Brasil como um futuro e poderoso aliado. Por isso que os investimentos na interiorização do país, incluindo igrejas, escolas, conventos e mosteiros no Acre, eram financiados sem qualquer restrição pelos alemães.

Aeronave Super Constellation da Panair do Brasil, fabricada pela americana Lockheed; ideia é que a subsidiária da Pan Am atrapalhasse o crescimento da Condor alemã no país: Foto: Domínio Público

Paralelo a isso, a companhia aérea Panair do Brasil, então empresa subsidiária da norte-americana Pan Am, recebia importantes somas em dinheiro para impedir o crescimento da Condor no Brasil.

Apoiada pela Embaixada dos Estados Unidos, a Panair do Brasil iniciou um movimento para operar as mesmas linhas da concorrente, por meio de um lobby político poderoso.

Ainda assim, a Syndicato Condor investia em novas aeronaves. Em 1943, numa tentativa de mostrar que se tratava de uma empresa brasileira, mudou seu nome para Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul, na qual teve nos seus quadros de comandantes Raimundo Ribeiro e o radiotelegrafista Rubens Saab, os dois acreanos de Brasileia e de Xapuri, respectivamente.

Aeronave Focke-Wulfe 200, de fabricação alemã, da Syndicato Condor; empresa não se intimidou no Brasil com a tentativa da Panair de atrapalhar a sua expansão no mercado interno. Foto: Domínio Público

Por muitos anos na década de 1970, a Cruzeiro do Sul operaria no interior do Acre, fazendo voos entre Cruzeiro do Sul, Tarauacá e Rio Branco, por exemplo, com seus aviões DC-3 e Curtiss Comando C-46. Mas aí já é outra história.

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