17 de junho de 2024

Em áudio, empresário reclama de repasse a desembargador: “Valor da p*”

Sem saber que era gravado, empresário fez desabafo sobre suposta partilha de valores em processo bilionário que se arrasta desde 2014

Em áudios gravados durante uma reunião, empresários e políticos reclamaram do “alto valor” que seria cobrado por promotores e desembargadores do Tribunal de Justiça de Alagoas. A conversa foi registrada por um dos presentes, sem o conhecimento dos demais, dentro da Câmara Municipal de Coruripe (AL). Nela, o grupo detalha a suposta partilha dos valores oriundos da venda da safra de cana-de-açúcar para a massa falida de uma agroindústria local.

Em um dos áudios, o empresário Raimundo José Paranhos Reis, dono da RP Mecanização Agrícola, em Teotônio Vilela (AL), conversa com Joaquim Beltrão, ex-deputado federal e ex-prefeito de Coruripe, sobre a quantidade de pessoas “comendo” dinheiro com o bilionário processo de falência da Laginha AgroindustrialA empresa é avaliada em R$ 3 bilhões e tem dívida fiscal e trabalhista de aproximadamente R$ 4 bilhões. A massa falida da indústria, que pertencia ao empresário e ex-deputado federal João Lyra, morto em 2021, reúne três usinas de açúcar e etanol.

Getty Images

“Às vezes, sem querer o cabra consegue umas coisas, um negócio a favor. Aí sobre isso todo mundo ficou ‘peixe’, ninguém foi atrás do promotor, ninguém foi atrás de nada, ficou ali. Eles têm o poder da caneta. Se eles quiser [sic] moer essa cana todinha, aí eles mói. Só que tem um problema: fica com medo de a gente tocar fogo em tudo, nem a gente nem eles”, diz Joaquim Beltrão, no áudio ao qual a coluna teve acesso.

“É como o Joaquim e o Alfredo disseram aí, agora há pouco, que é caro demais, agora é porque também é muita gente comendo”, diz Raimundo Paranhos. “É… não é porque… é gente comendo, também, os caras querem muito”, responde Beltrão.

Raimundo, então, completa: “É caro por isso. Muita gente comendo demais. É o promotor, é o administrador, é o povo de São Paulo, aí é Sandro, aí é desembargador, é filho de desembargador. Quando soma, é um valor da p*rra. É por isso que fica caro”. Na conversa, o empresário não cita os nomes dos desembargadores e promotores que seriam contemplados.

Em dezembro, a Procuradoria-Geral de Justiça do Estado de Alagoas nomeou dois promotores para apurar o conteúdo da gravação.

Os áudios datam de 21 de outubro de 2022 e foram juntados ao processo de falência da Laginha, que se arrasta no TJ alagoano desde 2014. A cada ano, como forma de arrecadar dinheiro para amortizar as dívidas, os administradores da massa falida vendem a cana produzida nas terras da Laginha a outras usinas, uma vez que as unidades ligadas ao grupo estão inutilizadas pela falta de manutenção.

Desembargadores voltam atrás

Recentemente, o caso chamou a atenção depois de 13 dos 17 desembargadores do Tribunal de Justiça de Alagoas se declararem impedidos de atuar no processo. Após a possibilidade de a ação migrar para o STF, porém, quatro magistrados voltaram atrás e, agora, dizem estar aptos a julgar o bilionário processo de falência.

Entre os desembargadores que haviam se declarado impedidos e mudaram de ideia estão: Domingos de Araújo Lima Neto, Elisabeth Nascimento, Fábio José Araújo e Paulo Barros da Silva Lima. Com isso, o TJ-AL definiu que a ação seguirá com o Judiciário alagoano.

Invasão

O ponto central está na ocupação ilegal das terras, abandonadas após a falência do grupo. O ex-prefeito Joaquim Beltrão e um grupo de empresários do litoral sul de Alagoas são acusados de invadir as terras da Usina Guaxuma, hoje desativada, pertencentes à Laginha.

Em setembro de 2022, a administração da massa falida da Laginha lançou edital para venda da cana produzida nas terras da Usina Guaxuma. O edital previa a venda de 229 mil toneladas de cana produzidas em uma área de 2,9 mil hectares, cerca de 77 toneladas por hectare. A estimativa de receita da operação era de R$ 34,7 milhões.

O valor do repasse para a Laginha estabelecido no edital foi de R$ 12,5 milhões, considerando o preço da tonelada da cana na época. Desse montante, seria descontado o custo referente a “corte-carregamento-transporte” (CCT) da cana.

A única indústria a aceitar a proposta da Laginha foi a Impacto Bioenergia. Ela seria a responsável por plantar e colher a cana nas terras da Guaxuma. Lá, porém, já estariam os invasores. Num acerto informal, a Impacto se comprometeu em comprar a cana produzida pelos invasores, pagando duas vezes – à Laginha e aos invasores – pelo produto.

“O valor que foi estipulado pra pagamento é R$ 12 milhões e meio. Esse valor de 12 milhões e meio, depois de feita a divisão, fica em torno de 16,7 toneladas por hectare. Só que esse não é um arrendamento. O Rui chamou de arrendamento, mas é como se fosse. A cana tem que ir livre pra lá. Quando a gente paga o arrendamento, a gente paga 10 toneladas… a gente paga 10 toneladas livres pra quem vai receber, não é assim? Quem paga o CCT da cana é o dono da cana”, diz um dos empresários, não identificado, gravado na reunião ocorrida em março de 2023, na Câmara Municipal de Coruripe.

“Essa cana tem que ser moída no nome da massa falida. Vamos dizer, se o Alfredo for pagar 2 mil toneladas de cana de uma massa falida, essas 2 mil têm que entrar no nome da massa. E o resto da cana dele no nome dele. Então essas 2 mil pra entrar no nome da massa e o próprio Alfredo pagar o CCT, esse valor tem que ser cobrado a mais”, continua Raimundo Paranhos.

Investigação

No entanto, uma planilha juntada ao processo sobre a venda da cana da safra 2022/2023, que tramita dentro da ação principal da falência da Laginha, aponta que, na verdade, a área de terras da Guaxuma cultivada no período foi quase duas vezes maior que o previsto no edital. A planilha considera os áudios gravados na conversa entre os invasores.

A planilha aponta que a área cultivada foi de 5,6 mil hectares, com a colheita de 439 mil toneladas de cana – contra as 229 mil toneladas previstas no edital. A venda da cana arrecadou R$ 67,3 milhões. O edital de venda da cana estabelecia o repasse de R$ 12,5 milhões à massa falida sem considerar um excedente de arrecadação. Com o desconto de R$ 6,3 milhões referentes ao custo com “CCT”, o valor efetivamente recebido pela Laginha foi de R$ 6,1 milhões.

O restante, R$ 61,3 milhões, teria sido dividido pelo que o grupo de empresários chamou de “gangue”. Na gravação, os empresários citam um “atravessador”, que intermediaria o contato entre o grupo e as autoridades.

“Então esse negócio do arrendamento do contrato ou é feito um trabalho mesmo intenso pra buscar esse contrato, ou então eles vão ficar, com a licença da palavra, na punheta, porque vão ganhar esses doidos de São Paulo, vai ganhar Sandro, vai ganhar A, vai ganhar B, e a gente, ó…. porque esse negócio aqui nós vamos fazer pra você não estar assustado, pra não ter a Justiça, mas isso é uma fortuna que a gente tá pagando”, diz um dos empresários.

Na reunião, Joaquim Beltrão conta como conheceu o intermediário. “Maurício, Raimundo, e não sei quem foi marcou uma audiência com o desembargador nesse aí, amigo, tal, pra ver se podia dar uma ajuda. Quando chegou lá na reunião, tava o Sandro, e esse Sandro era gente boa. A partir daí, eu fui conversar com o Sandro. Ele é conversador, desenrolado mesmo. Ele é muito amigo do filho do desembargador que tá lá entrosado lá”, diz o ex-deputado.

Confronto com a polícia

Nos áudios, os supostos invasores chegam a comentar um confronto com a polícia na safra anterior. Eles também reclamam da demora para o início da moagem da cana. “Depois de todo esse trabalho todinho, aqui no ano passado, nessa época, a gente já tinha o mesmo número de cana moída, com problema ou não, através da massa ou não, a gente já tinha”, diz um empresário não identificado. “Com polícia ou não, já tinha”, responde outro.

“A gente vem passando por um período mais complicado, na minha opinião, que no ano passado. A única coisa que a gente vai ter certeza é saber, já no começo da safra agora, o que cada um vai pagar”, reage o empresário identificado como Raimundo. “E não tem polícia”, retruca outro suposto invasor.

No dia 30 de maio, o Tribunal de Justiça de Alagoas (TJAL) decidiu que o processo de falência da Laginha não será encaminhado ao STF. O pedido de análise da incompetência da Corte foi feito depois que 13 dos 17 desembargadores do órgão alegaram suspeição para atuar no caso.

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