Pelo menos três vezes por ano, e há muitos anos seguidos, um comerciante de pedras preciosas sai do interior do Paraná, onde vive, e vem ao Acre, mais precisamente a Rio Branco, para garimpar os produtos que o fazem um homem rico, um dos mais ricos no segmento de sua atuação profissional. Mas sua garimpagem está longe de ser do tipo tradicional, em que garimpeiros escavam e revolvem a terra nas áreas onde há notícia da presença de minerais metálicos ou não metálicos que apresentem valor comercial, como é o caso do ouro e da prata.
No caso do misterioso garimpeiro e homem de negócios do Paraná, o produto que o interessa, muito mais valioso que o ouro nos dias atuais, não está sob a terra. Está acima, nos campos de pastagem, mais precisamente na barriga dos animais. Além do valor, o que faz deste produto algo tão especial é a sua raridade: afinal, não são todos os animais que carregam esse tesouro escondido em suas próprias vísceras. Em cada grupo de cem animais abatidos, o produto será encontrado nas vísceras de um ou no máximo dois animais abatidos.
![](https://contilnetnoticias.com.br/wp-content/uploads/2021/09/bois-bovinos.png)
De cada cem animais abatidos, são encontradas entre uma ou duas pedras biliares que têm alto valor no mercado/Foto: Globo Rural
O tesouro encontrado nas vísceras de alguns animais, depois de abatidos nos matadouros, é conhecido como pedra de fel – na verdade, um cálculo biliar que se forma nas entranhas do intestino dos animais. Veterinários especialistas ouvidos pela reportagem dizem tratar-se de uma anomalia que ocorre quando o fígado dos animais ruminantes está desequilibrado e não funcionando adequadamente. “É por isso que essa pedra não é encontrada em qualquer boi. Em animais de corte de rebanho de alta qualidade quase não se registra essas ocorrências. Isso ocorre mais com bois e vacas chamados gado tucura, de raça e valor inferior”, disse um desses veterinários ouvidos pela reportagem do ContilNet.
![](https://contilnetnoticias.com.br/wp-content/uploads/2025/01/WhatsApp-Image-2025-01-28-at-11.43.11.jpeg)
O tesouro encontrado nas vísceras de alguns animais, depois de abatidos nos matadouros, é conhecido como pedra de fel/Foto: Reprodução
Dom Galo, o homem que gritava “Olha a Panelada”, vivia de vender vísceras de bois
Por isso, no Acre, principalmente em Rio Branco, acabou-se o tempo em que as vísceras bovinas eram descartadas nos abatedouros. Aliás, foi graças ao descarte das vísceras, que, nas décadas de 1980 e 1990, o acreano Raimundo Nonato Balbino, conhecido como “Dom Galo”, hoje com 73 anos, ganhava a vida para sustentar a família com a venda desta parte dos animais que praticamente não tinha valor de mercado para os grandes abatedouros de boi acreanos.
Ele recolhia as vísceras nos matadouros, limpava o produto, cortava e embalava para a venda. Montado numa bicicleta, de segunda a sábado, no início de cada noite – após passar o dia limpando o produto às margens de igarapés ou em casa, ele saia de bicicleta a rodar a cidade, sempre aos gritos de “Olha a Panelada”.
A panelada é um prato típico brasileiro, originado no Nordeste, feito à base de miúdos de boi, como tripas, pés e estômago, além de também ser acrescentado toucinho, linguiça ou chouriço, para dar aquele toque especial ao preparo. É uma espécie de cozido feito em uma grande panela, com temperos bem fortes, conferindo ao prato um sabor marcante. No Nordeste, é considerada uma refeição saciante. O principal acompanhamento da panelada é o pirão, feito a partir do caldo fervendo em que é acrescentada farinha de mandioca. Porém, é comum que ela seja servida junto com arroz branco, macaxeira e até baião de dois.
Dizer exatamente onde e quando surgiu a panelada é complexo, já que existem muitas discordâncias sobre isso. Enquanto alguns historiadores afirmam que a panelada teve origem em Portugal, onde há um prato chamado “Tripas à Moda do Porto”, outros discordam e contam que é um prato de origem totalmente nordestina. É possível encontrar registros do consumo da panelada desde o século 15 em vários estados do Nordeste, principalmente no Ceará e no Maranhão.
Atualmente, a panelada é uma das comidas mais tradicionais do sertanejo cearense, sendo um dos maiores ícones culinários do Ceará. Cintudo, é comum encontrar pratos muito parecidos em todo o país, como a chamada buchada, também conhecida como dobradinha. Panelada e buchada são dois pratos muito parecidos, feitos com miúdos e com a mesma origem no Nordeste brasileiro. No entanto, são pratos distintos e a diferença é bem sutil: enquanto a dobradinha leva feijão, a panelada é feita só com caldo. Outro detalhe importante é que, na maioria das vezes, a dobradinha é feita usando apenas tripas, já a panelada usa outros tipos de miúdos.
Alheio ao modo de preparo, Balbino ou Dom Galo, como ele prefere ser chamado, se limitava a vender o produto por quilo. Havia dias em que, segundo ele, vendia mais de 50 quilos numa noite. O melhor dia de venda era às sextas-feiras, porque, ele deduz, as famílias se banqueteavam com os pratos no fim de semana. A atividade o deixou famoso ao ponto de “Dom Galo”, muitas vezes, ser parado nas ruas para tirar fotos ou dar autógrafos. Numa antiga entrevista, ele revelou como começou na atividade de vendedor de panelada aos 12 anos de idade. “Tinha um matadouro ali na Corrente (rodovia AC-40) e foi de lá o primeiro lugar que eu comecei a vender. Depois fui para a BR-364 e depois lá pro matadouro do Seu Osvaldo Português”, conta.
Mas não era o trabalho de vendedor ainda a principal motivação daquele menino pobre morador do Bairro 15, na localidade conhecida como Rabo da Besta, onde viveu parte da adolescência e juventude, no 2º Distrito de Rio Branco. Foi o pai da primeira namorada de Raimundo Balbino que o colocou para trabalhar. “Como eu queria conquistar a menina, eu topei. Aí ganhei uma bicicleta e fui vender panelada”, rememora.
Raimundo Balbino trabalhou como vendedor de panelada durante 50 anos. Nesse período, possuía 14 bicicletas. As duas últimas, que ele tinha como relíquias, entre elas uma cargueira que já durava 20 anos e que ele cuidava com zelo, foram roubadas. Dom Galo hoje vive de uma pensão do INSS no valor de um salário mínimo.
Com o dinheiro que ganhava das vendas, sem saber que poderia estar carregando uma fortuna entre as carnes que vendia, mal conseguia o sustento próprio e da família. “Conseguia com dificuldade sustentar a família. Mas hoje não tenho mais coragem de sair por aí e vender panelada. É perigoso.”
O Acre abate até 40 bois e vacas por dia, mas, de cada cem, pedras são encontradas no máximo em dois
Perigoso e difícil porque os donos de frigoríficos no Acre já não descartam as vísceras. De 22 frigoríficos no Acre, há pelo menos 19 em perfeito funcionamento, e o número de abate varia entre 35 a 40 cabeças por dia, de segunda a sexta-feira, informa o pecuarista Nenê Junqueira, diretor-executivo do Sindicato das Indústrias de Frigoríficos e Matadouros do Estado do Acre (Sindicarnes/AC).
Sobre as pedras, o executivo evita falar, justificando o mistério e os segredos que envolvem este comércio no Acre. Disse ter conhecimento de que, em alguns frigoríficos, já foram encontradas algumas pedras, mas minimizou a quantidade, embora admita que as pedras, “quando de qualidade”, valem mais que o ouro.
Por isso, além de não descartar, as vísceras bovinas nos matadouros agora são dissecadas sob muito cuidado e total vigilância. Em cada matadouro já há um operário responsável por abrir a vesícula biliar em uma sala altamente segura, na parte de trás do matadouro, isolada por barras de metal e sob a vigilância de várias câmeras de segurança. Um desses operários diz que normalmente encontra pelo menos um cálculo biliar entre cerca de cem animais que são abatidos.
Embora a maior parte do dinheiro das pedras vá para os donos dos matadouros, ele embolsa uma pequena comissão com cada pedra que encontra, contou, pedindo para não ser identificado por medo de ser roubado. “Às vezes ganho mais que meu salário mensal”, disse ele, acrescentando que as menores tendem a ser as mais puras e valiosas. “É muito perigoso. Quando as retiramos, vão direto para o cofre.”
Na verdade, a busca por cálculos biliares no gado se tornou tão frenética que alguns produtores recentemente quiseram saber como produzir cálculos biliares em seu gado. Mas, ao que tudo indica, não há técnica para isso.
A corrida ao “fato do boi” tem explicação: nos últimos dias, enquanto o quilo do ouro estava cotado em R$ 530 mil, o 1 quilo da pedra fel estava em R$ 800 mil. Isso no Brasil. Para o local para onde as pedras são revendidas, não se sabe o valor. Mas não é pouco. Este segmento envolve tanto dinheiro ao ponto de o prestigiado jornal The Wall Street Journal, diário internacional em língua inglesa sobre notícias econômicas, com sede em Nova York, Estados Unidos, se ocupou do assunto numa longa reportagem, dizendo que os pastos brasileiros guardam fortuna potencial em cima dos cascos dos bois e revelou que, “na calada da noite, em um matadouro no cinturão agrícola na região Sudeste do Brasil, um grupo de homens salpicados de sangue se reuniu em torno das entranhas de uma vaca para ver se encontravam ouro”.
“Basta olhar para o tamanho disso”, disse um trabalhador, que pressionava a carne do animal em uma peneira, revelando um caroço laranja escuro endurecido, quase tão grande quanto uma bola de golfe, brilhando sob a luz fluorescente, revelou o jornal; era um cálculo biliar.
O produto tem alta procura no mercado da medicina tradicional chinesa. Os interessados veem os cálculos biliares bovinos como algo tão valioso que se mostram dispostos a pagar até US$ 5.800 a onça — o dobro do preço do ouro — pelas pepitas de bile endurecida.
As informações dão conta de que os fitoterapeutas usam o ingrediente no tratamento de derrames cerebrais. O produto ganha ainda mais valor frente ao momento de aumento da hipertensão, da obesidade e de outras condições conhecidas no Ocidente. Essas doenças agora estão generalizadas na China após meio século de rápido desenvolvimento e mudança na dieta que o acompanharam. A crescente demanda por cálculos biliares desencadeou uma caça ao tesouro global nas principais regiões produtoras de carne bovina do mundo, lugares tão distantes quanto o Texas e a Austrália, e especialmente o Brasil, maior exportador de gado do mundo.
Trabalhadores de matadouros no Brasil e em Queensland, o principal estado produtor de carne bovina da Austrália, também foram presos nos últimos anos por furtar as pedras durante o trabalho, às vezes escondendo-as em suas galochas.
Por causa das pedras, os frigoríficos dos locais onde há essas ocorrências passaram a ganhar reforço na segurança e na vigilância, a fim de evitar o furto das pedras. Nos aeroportos do país, a Polícia Federal também redobrou a vigilância em relação ao produto para evitar o contrabando das pedras através de compradores de Hong Kong, Xangai e Pequim. Já houve registros de apreensões das pedras nos aeroportos brasileiros.
Um comércio que movimenta R$ 60 bilhões na China, na área da medicina, diz The Wall Street Journal
Costa que a medicina chinesa está cada vez mais focada na hipertensão e nas doenças cardíacas concentradas na população chinesa idosa. A medicina tradicional da China é agora uma indústria de US$ 60 bilhões anuais, de acordo com a Organização Mundial da Saúde. O governo e a mídia estatal incentivaram seu uso como fonte de orgulho nacional, especialmente durante a recente pandemia de Covid-19, quando cientistas chineses se esforçaram para desenvolver vacinas e testar tratamentos mais convencionais.
Pequim também promoveu a medicina tradicional no exterior para complementar seu esforço de desenvolvimento de infraestrutura mundial, construindo clínicas em países como Emirados Árabes Unidos, Espanha e Ilhas Maurício para incentivar os habitantes locais a adotá-la. No mês passado, o governo anunciou planos para treinar cerca de 1.300 profissionais de saúde para serem enviados a países envolvidos na iniciativa de transporte e porto do projeto Cinturão e Rota da China.
Os conservacionistas culpam a medicina tradicional chinesa por um aumento alarmante no tráfico de vida selvagem. Os governos têm lutado para conter o comércio de partes raras de animais, desde chifres de rinoceronte até escamas de pangolim e pênis de tigre. Embora a coleta de cálculos biliares bovinos em si levante poucas preocupações entre os conservacionistas, a substância é frequentemente misturada a partes de espécies ameaçadas de extinção. Por exemplo, uma pílula usada para tratar derrames é feita de uma combinação de cálculos biliares e chifres de rinoceronte.
“O rápido crescimento da indústria da medicina tradicional chinesa nas últimas décadas exacerbou a pressão sobre a vida selvagem ameaçada na Ásia e além”, disse a Agência de Investigação Ambiental, com sede em Londres, que acompanhou a exploração da vida selvagem pela indústria nas últimas décadas.
A venda de cálculos biliares não é ilegal no Brasil, mas o comércio das pequenas pedrinhas cor de ferrugem floresceu basicamente na ilegalidade, com traficantes sonegando impostos e regulamentações e gangues armadas surgindo para caçar o tesouro.
No Uruguai, que abriga o maior número de bovinos per capita do mundo, um casal de irmãos foi condenado à prisão em setembro por traficar mais de US$ 3 milhões em cálculos biliares bovinos para Hong Kong sem declará-los às autoridades, de acordo com a Interpol.
Na maioria dos países, as pessoas passam a vida tentando evitar cálculos biliares. A bilirrubina, o composto laranja escuro produzido durante a degradação natural dos glóbulos vermelhos, é normalmente excretada do corpo. Mas, quando se acumula e forma cálculos biliares, a condição pode ser prejudicial e até fatal para o gado, para os humanos ou para qualquer vertebrado.
Contudo, aqui no Brasil, os olhos dos fazendeiros agora se iluminam quando falam sobre o tamanho dos cálculos biliares que viram, olhando para a barriga irregular de seu gado com novo interesse.
Muitos produtores operam ilegalmente, enviando as pedras escondidas em tudo, desde potes de geleia até brinquedos infantis, para evitar regulamentações onerosas, de acordo com a polícia e os exportadores. Em casos raros, os fraudadores adicionam tijolos finamente moídos ou injetam açúcar no centro das pedras para aumentar seu peso.
Com grandes áreas do mercado ainda operando fora da lei, os dados sobre a escala da indústria são escassos. Mas os números que mostram as exportações do Brasil para Hong Kong, o ponto de entrada mais comum para a China, sugerem uma expansão dramática do mercado nos últimos anos, de acordo com um relatório do Escritório de Comércio Agrícola dos EUA divulgado em abril passado.
As importações de cálculos biliares bovinos em Hong Kong quase triplicaram de valor, indo de US$ 75,5 milhões em 2019 para US$ 218,4 milhões em 2023, embora os pesquisadores acreditem que o tamanho real possa ser muito maior, apontou o jornal norte-americano especializado em finanças.
O Brasil foi o principal fornecedor de pedras para Hong Kong em 2023, respondendo por cerca de dois terços de todas as exportações para aquela cidade, seguido por Austrália, Colômbia, Argentina, EUA e Paraguai.
“Nos últimos anos, e particularmente em 2024, o Escritório de Comércio Agrícola recebeu consultas de importadores locais em busca de cálculos biliares bovinos dos EUA — sinalizando uma demanda subjacente por esse subproduto em Hong Kong”, escreveu a agência, incentivando os produtores americanos a conquistar uma fatia mais ampla do mercado.
Praticada há milhares de anos, a medicina tradicional ainda é amplamente utilizada na China, muitas vezes em conjunto com a medicina ocidental, e preparar a bile endurecida para consumo é uma arte. Uma vez colhidos, os cálculos biliares são cuidadosamente limpos e postos para secar por semanas antes de serem triturados. Na China, o pó é normalmente misturado com outros ingredientes, desde chifre de búfalo em pó até realgar, pedra preciosa avermelhada contendo arsênico, e prensado na chamada pílula Angong.
Muitos dos outros supostos benefícios dos cálculos biliares bovinos — desde a redução da febre até o tratamento de infecções — têm pouca base na ciência, mas estudos experimentais recentes descobriram que as pílulas de Angong podem ajudar a ganhar tempo no tratamento de derrames.
Outro estudo recente com ratos na Universidade de Hong Kong encontrou evidências de que as pílulas de Angong podem retardar os efeitos de um derrame isquêmico, o tipo mais comum de derrame, em que um coágulo interrompe o fluxo sanguíneo para o cérebro.
Os pesquisadores descobriram que vários ingredientes da pílula protegiam a membrana que envolve o cérebro, potencialmente dando às vítimas de derrame 30 minutos extras para chegar ao hospital antes de sofrer danos cerebrais irreversíveis e, em alguns casos, fatais.
Isso fez do pó de cálculos biliares bovinos um item cada vez mais procurado na China, onde a OMS diz que os derrames se tornaram a principal causa de morte. Cerca de 178 pessoas em cada cem mil morrem de derrame todos os anos na China, mais de três vezes a taxa dos EUA. Os pesquisadores culpam o consumo desenfreado de tabaco no país, lar de quase um terço dos fumantes do mundo, bem como o rápido envelhecimento da população e fatores ligados ao aumento da renda, como o aumento da obesidade nas áreas rurais. Estima-se que 330 milhões de chineses sofreram de doenças cardiovasculares em 2023, contra cerca de 230 milhões em 2007, de acordo com o Centro Nacional de Doenças Cardiovasculares da China.