Acreano é a 1ª pessoa no Acre a ter a identidade de gênero não-binária na certidão de nascimento

“Eu não consigo imaginar um mundo binário. Eu, pelo menos, não posso falar pelos outros, mas eu não me vejo em nenhum mundo binário", disse o acreano

Ariel Sebastos Nascimento Silva, de 46 anos, é a primeira pessoa não-binária do Acre a ter sua identidade de gênero reconhecida na certidão de nascimento, a partir de decisão do Tribunal de Justiça do Acre (TJAC) e de uma articulação da Defensoria Pública do Estado (DPE). A história do acreano é uma vitória a ser comemorada neste 28 de junho, data em que se celebra o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAPN+.

Acreano de 46 anos é a primeira pessoa não-binária no Acre a ter identidade de gênero na certidão/Foto: Arquivo pessoal

Natural de Sena Madureira, no interior do Acre, Ariel diz que se identifica como uma pessoa não-binária desde a infância, mesmo sem ter conhecimento do termo, que foi formalizado ainda na década de 1990.

A não-binariedade refere-se à identidade de gênero de pessoas que não se identificam exclusivamente como homem ou mulher, estando fora do espectro binário de gênero masculino/feminino. É um termo guarda-chuva que engloba diversas identidades que não se encaixam em categorias tradicionais, como gênero fluido, agênero, gênero queer, entre outras.

“Eu me sinto uma pessoa não-binária desde que sou criança, mas eu não tinha acesso a esse termo naquela época, porque as discussões sobre isso são recentes. Eu não me identifico nem como homem, nem como mulher. Não entendiam quando tentavam me explicar que tinha banheiro de homem e de mulher. Não entendia essa separação, eu só queria urinar”, disse Ariel, em entrevista ao ContilNet.

O agente de segurança privada conta que nunca conseguiu se encaixar nas nomenclaturas que usavam para defini-lo. Uma experiência traumática, vivenciada na casa de uma tia, fez com que Ariel compreendesse algumas coisas a respeito de sua própria identidade.

“Na minha época nem existia o termo lésbica, nem gay. Era só viado, e o termo para lésbica era macho e fêmea. Ou chamavam viado de boiola, era assim. Então, tipo assim, quando eu vi que eu era diferente foi aos 12 anos, quando a gente vinha passar férias na casa da minha tia aqui em Rio Branco, porque nós morávamos em Sena. E aí chegou a hora do banho, meu pai disse que todo mundo ia tomar banho porque o almoço estava pronto. E aí que eu entrei junto com as minhas primas para tomar banho, minha tia me puxou pelos cabelos e disse que eu não ia tomar banho com as meninas. Eram quatro primas e eu. Fiquei sem entender por que eu não podia tomar banho com as minhas primas, e depois eu entendi. Ela foi falar para o meu pai que não queria uma ‘macho e fêmea’ tomando banho com as filhas dela, tipo isso. Depois daquele dia, entendi que eu era uma pessoa diferente”, pontuou.

Ariel tem 46 anos/Foto: Reprodução

Ariel disse que não era compreendido e que, se houvesse psicólogos em sua infância, ele precisaria ter sido atendido para conseguir se conhecer. As experiências em grupo demonstravam isso:

“Se naquela época existisse mais essa questão de psicólogo, eu teria que ter frequentado, porque eu não me identificava, nunca me identifiquei com nenhum gênero. Eu nunca coube dentro dessas caixas, assim. Tinha reunião dos jovens na igreja e tinha separação dos meninos, quando era grupo, e das meninas. E eu sempre quis ficar com os meninos, porque as minhas brincadeiras sempre foram mais pesadas. Mas também tinha coisas das meninas que eu gostava. Então, eu nunca escolhi um lado nem outro”, pontuou.

O acreano diz não se identificar dentro do aspecto binário de gênero — quando são considerados apenas masculino e feminino.

“Eu não consigo imaginar um mundo binário. Eu, pelo menos, não posso falar pelos outros, mas eu não me vejo em nenhum mundo binário. Eu sei que existe essa lógica no mundo, mas, assim, no meu mundo mesmo, meu mundo Ariel, não existe a binaridade. Isso de mulher fazer apenas um tipo de serviço e homem fazer outro não existe. Esses papéis no nosso mundo não existem, eles foram criados. Essa coisa de cruzamento de perna pra homem e cruzamento de perna pra mulher… Eu acho isso uma bobagem”, continuou.

Ariel chegou a brincar com uma situação e disse que pode performar os traços de gênero que quiser.

“As pessoas às vezes vêm entrar no meu apartamento e dizem que parece um apartamento de uma donzela ou uma casa de boneca. Mas eu posso ser uma donzela se eu quiser também”, disse, sorrindo.

Para ele, existe muita confusão em torno da não-binariedade, mas é possível que haja compreensão a partir do respeito.

“Pras pessoas que estão de fora é muito difícil, e até complicado pra nós explicarmos, e difícil pras pessoas entenderem. Porque cada um entende o seu próprio mundo e há pouco esforço para compreender o do outro. Mas o respeito é uma chave que muda isso tudo”, enfatizou.

Certidão de nascimento

A identificação com a não-binariedade surgiu há cerca de três anos. Desde então, Ariel luta para obter o reconhecimento de sua identidade de gênero na Certidão de Nascimento — direito que foi garantido pela Justiça acreana.

“Para fazer a atualização, como eu sou de Sena Madureira, eu precisaria pedir ao fórum de lá, ao cartório de lá, a atualização. E aí, quando eu entrei para fazer a atualização, eu comecei a pesquisar, até com os meninos mesmo do nosso grupo, porém eles não queriam esperar, porque é uma burocracia. E aí eles me informaram que os juízes ainda não estavam liberando a não-binaridade na certidão”, contou.

A conquista de Ariel foi possível graças à atuação da DPE:

“Eles queriam me colocar como um homem trans e eu falei que não. E nisso, como eu trabalho como segurança, dia sim, dia não, eu não tinha tempo de correr atrás disso. E aí, foi quando eu entrei de férias, agora em fevereiro, e aí eu procurei a Defensoria, que me ajudou no processo e me ajudou no passo a passo”, acrescentou.

A decisão veio da Justiça, por meio da juíza Luana Cláudia de Albuquerque Campos, que autorizou o cartório a emitir a nova certidão de Ariel.

“É bem verdade que a sua condição biológica é de pessoa do sexo feminino. Entretanto, manter seu nome [de origem] e o sexo feminino no registro civil é mantê-lo aprisionado a uma situação de gênero que não lhe corresponde, é torná-lo submisso a uma situação biológica que lhe ofende de forma direta”, escreveu a magistrada na decisão.

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