Em um mundo onde o presidente da nação vai ao Twitter chamar uma mulher de “cara de cavalo”, parece inútil pedir “civilidade”; sugiro então que a gente comece por um nível menos exigente que, quem sabe, consiga alcançar: vamos parar de ameaçar um ao outro de morte.
Na semana passada, tive de escrever para um jovem colega do movimento ambiental. Ele trabalha na América do Sul, vem recebendo ameaças nas redes sociais e estava apavorado – e com razão. Pude lhe dar uns conselhos, já que eu também, de vez em quando, e desde há muito, recebo alguma. Por outro lado, não pude ajudar muito; afinal, o que se deve dizer além de “Tenha cuidado, lembre-se de que é, de certa forma, um tributo à sua eficiência, e não pense duas vezes em se ausentar, se necessário”?
Eu tinha a idade dele quando comecei a ser ameaçado, com a coisa ficando pior com o passar dos anos, conforme as campanhas que ajudava a organizar contra oleodutos e pelo desinvestimento em combustíveis fósseis ganhavam corpo. Eu me lembro de um policial que me disse que “quem escreve para você não é quem atira”, o que achei reconfortante durante quinze segundos – até pensar nas implicações da frase.
O que eu faço é simplesmente deletar todas as ameaças da caixa postal porque, se não o fizer, volta e meia volto a lê-las; imagino (e torço) que o principal objetivo de seus autores seja me distrair. Se vai ser um para-raios, então o preço a pagar serão algumas fagulhas.
Uma hora depois de ter escrito para o rapaz, aconteceu uma coisa que me fez pensar nisso com mais cuidado. Começou na semana passada, quando The Los Angeles Times publicou um artigo meu descrevendo um julgamento em Minnesota onde alguns manifestantes – agindo pacificamente, sem ameaçar ninguém e tendo informado à empresa contra a qual estava protestando – mexeram nas válvulas de intercepção emergenciais, forçando a empresa a suspender temporariamente o fluxo de petróleo das areias betuminosas do Canadá para os EUA.
Ameaçar matar ou estuprar alguém não deveria ser coisa banal; deveria chocar qualquer um que se deparasse com tamanha violência
O caso contra o grupo foi indeferido com base no fato de não ter causado nenhum dano; na minha matéria eu tentava explicar por que a desobediência civil não violenta ajudava na luta por um clima viável.
Nem todo mundo concordou com minha opinião. De fato, horas depois de publicado o texto, um site chamado Watts Up With That? subiu um ataque direto a ele. Essa empresa – que se diz o blog mais lido do mundo em questões ambientais, alegando receber de três a quatro milhões de visitas por mês – se dedica a provar que não temos nada a temer com a mudança climática. O autor da postagem, David Middleton, me chamou de desajustado e fez referência ao meu “peito afundado”. Sim, claro, que seja. Infelizmente, parece que é assim que a política passou a ser feita na era Trump.
Mas aí começaram os comentários. Um disse: “Alguém tem o endereço da casa do Bill McKibben? Vamos ver como ele realmente se sente em relação à desobediência civil se ela aparecer à sua porta.” O segundo foi além: “Dá um totó nele por mim.” Um ou outro tentavam acalmar o grupo, mas então veio esse comentário, de alguém chamado “gnomish”: “Tem um bom protocolo que vale a pena seguir: é o S.S.S (em inglês), ou seja atirar (“shoot”), enterrar (“shovel”) e ficar de bico calado (“STFU”, abreviação que significa “Shut the fuck up”). Espero que ajude.”
Esse “protocolo” era reminiscente da luta do pessoal de direita contra as leis de espécies ameaçadas de extinção. Se, digamos, um pica-pau protegido estivesse em suas terras, a “doutrina dos três Ss” ensinava que você deveria matá-lo, enterrá-lo e não abrir a boca sobre o ocorrido. Aqui, nesse caso, era uma convocação pública para alguém me matar. Não demorou muito para que a pessoa que se escondia atrás do pseudônimo “Carbon Bigfoot” desse o meu endereço residencial.
Tudo isso me deixou gelado.
Eu pensava ser imune à violência das redes sociais, mas aquilo era algo totalmente novo; uma discussão pública muito calma sobre como me encontrar e o que fazer comigo. Ninguém deletou o comentário do tal “gnomish”; pelo contrário, a coisa só foi ficando mais intensa.
Sei que é muito pior para as mulheres; eu me encolho só de pensar no que deve ter virado a caixa postal de Christine Blasey Ford ultimamente. Conheço a história norte-americana bem o bastante para saber que, para as pessoas de cor, a consumação se segue à ameaça com uma constância assustadora. Sei também que é muito pior em outros lugares: 207 ambientalistas ou defensores foram mortos no ano passado ao redor do mundo. Não tenho a menor ideia se essas pessoas querem realmente me matar, embora seja desconcertante imaginar quem, entre os milhões de visitantes que o site recebe, vai ler esses comentários, pegar o carro e vir até a minha casa.
Mas, tirando o meu próprio medo – e agora estou instalando câmeras de vigilância porque percebi que ameaças públicas de morte diminuem a proteção psíquica que o privilégio dá –, o que me incomodou mesmo foi a trivialidade da coisa toda. O que diz sobre uma sociedade o fato de as pessoas sugerirem que se mate aqueles com quem não concordam? Você deve ter notado que o tal “gnomish” abreviou a expressão chula porque os palavrões são proibidos no site – mas, pelo visto, a ameaça passou batida aos moderadores.
Ameaçar matar ou estuprar alguém não deveria ser coisa banal; deveria chocar qualquer um que se deparasse com tamanha violência. E essa era uma coisa que nem precisava ser dita – exceto que tem de ser dita, sim, com uma frequência cada vez maior, em um mundo em que um presidente diz que tem saudade dos tempos em que manifestantes arruaceiros eram tirados de cena “de maca”. É um alento com requintes perversos ver que o suposto assassinato do jornalista Jamal Khashoggi parece ter interrompido esse estado de coisas. Tamanho choque e revolta são cruciais porque em um mundo onde dissidentes são esquartejados não há muita esperança de mudança. A possibilidade de ser morto por causa do que se diz torna a discussão essencialmente impossível. Uma sociedade na qual os críticos temem ser mortos é uma sociedade com menos críticos e, consequentemente, menos chances de mudança.
Leia também: Fake news: espaço para o ódio e o controle da política (artigo de Eduardo Faria Silva, publicado em 20 de fevereiro de 2018)
Nossas convicções: A dignidade da pessoa humana.
Eu considero a não violência talvez uma das invenções mais sensacionais do século XX, principalmente porque, acima de tudo, abre a possibilidade de diálogo, e não de dominação. E esse foi o ponto da minha matéria, a que me rendeu a ameaça de morte. O fato é que devemos praticá-la de formas pequenas, e não só grandiosas; dramáticas, sim, mas também prosaicas.
No caso do Watts Up With That, fiz um esforço para me desarmar. Há alguns anos, eu estava escalado para dar uma palestra na cidadezinha californiana onde o proprietário do site, Anthony Watts, mora. Assim, entrei em contato com ele e o convidei para um drinque. Eu sabia que não mudaria sua forma de encarar a mudança climática e ele sabia que eu continuaria a achar que seu trabalho envolvia a destruição do planeta, mas sempre parece uma ideia mais humana pelo menos oferecer a mão ao outro.
E foi bem. Tomamos umas cervejas geladas, ele escreveu um resumo do nosso papo para o site e a maioria dos seguidores dele nos parabenizou pela iniciativa (foi tão estranha que ganhou até cobertura do New York Times). Entretanto, dado o mundo político em que vivemos, um mundo dividido em tribos cujos membros não perdem a oportunidade de sair batendo no peito, não demorou muito para que tudo voltasse ao que era antes.
Não quero que o site seja desativado; não quero que as pessoas que escrevem ali sejam processadas. Com certeza não quero que sejam mortas. Para marcar o comecinho remoto de algum tipo de retorno à civilidade, eu só quero que as pessoas parem de fazer ameaças. A mim parece que é o mínimo a pedir uns dos outros.
Bill McKibben, fundador do 350.org, é professor de Estudos Ambientais no Middlebury College e autor do inédito “Falter: Has the Human Game Begun to Play Itself Out?”.