No Acre, estado brasileiro com o maior índice de feminicídios proporcionalmente, a cada quatro horas, uma mulher foi vítima de violência em 2020. Foram 1.964 denúncias de um crime que não deu tréguas mesmo na pandemia da Covid-19, quando esta modalidade de crime aumentou em percentuais consideráveis, conforme denuncia a procuradora de Justiça Patrícia do Amorim Rego, do Ministério Público do Estado do Acre (MPAC).
De março a dezembro de 2020, o Acre registrou nove feminicídios. Em quatro meses de 2021, cujos números não foram fechados, não houve registros de mortes, mas as delegacias de polícias de todo o estado estão abarrotadas de denúncias de violência contra mulheres.
Das que foram mortas em 2020, todas eram da cor parda e tinham entre 17 e 50 anos. Os números assustam até mesmo quem tem larga experiência no monitoramento do problema, como é o caso da procuradora Patrícia Rego ou da desembargadora Eva Evangelista de Araújo Souza, decana do Tribunal de Justiça do Acre (TJAC) e coordenadora de um programa do Poder Judiciário que busca combater o problema que faz do Acre um dos estados – senão o maior – que mais agride e mata mulher. E os homens estão matando as mulheres muito mais com o uso de lâminas, as chamadas armas brancas, do que com armas de fogo. E não só no Acre.
Em toda a Região Norte do Brasil, registros policiais nos sete estados apontam que as facas aparecem muito mais do que revólveres e pistolas como instrumentos do ódio. A partir de 11 mil boletins de ocorrência, o Observatório de Violência de Gênero (Ovgam), da Universidade Federal do Amazonas, juntou os relatos de mulheres do interior do Estado para descobrir essa face até então oculta da violência de gênero.
Socos e pontapés são outras formas que os homens encontram para matar mulheres no Norte. Em Tocantins, o ano de 2020 terminou com uma tragédia no movimento indígena. Myriwekwde Karajá, de 36 anos, moradora da aldeia Fontoura, na Ilha do Bananal. Ela foi espancada pelo marido, também indígena. Teve politraumatismo, hemorragia interna e recebeu diagnóstico positivo para a Covid-19. Morreu no dia 10 de janeiro de 2021. Ele fugiu.
Alarmada com as formas de violência e com os números, a desembargadora Eva Evangelista está divulgando uma campanha do Portal UOL, destinado a jornalistas nas redações de todo o país, sobre como os profissionais de imprensa devem abordar familiares de uma vítima de feminicídio durante a apuração de uma reportagem. Que foto usar em matérias sobre denúncias de assédio sexual? Como evitar que uma mulher reviva um trauma durante uma entrevista?
De acordo com a campanha, questionamentos como os feitos no parágrafo anterior, fazem parte do cotidiano de quem trabalha com imprensa e é obrigado a noticiar essa verdadeira guerra como o universo feminino. A campanha foi lançada na plataforma feminina do UOL, em 2018. Segundo levantamento do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), o Brasil ocupa o 5º lugar no ranking dos países com mais mortes violentas de mulheres. Na série Um vírus e duas guerras, feita pelo Portal UOL, que desde março procurou visibilizar, durante a pandemia do novo coronavírus, o fenômeno silencioso da violência contra a mulher e o crime de feminicídio, o Estado do Acre mantém-se como um dos mais violentos do Brasil. Mesmo com reduções proporcionais das denúncias em 2020, elas não anulam o fato de que os números sempre estiveram em um patamar elevado. Os 2.501 casos registrados em 2019 já indicavam que as mulheres acreanas são obrigadas a conviver de perto com a violência.
Nos dois primeiros levantamentos, a série mostrou que de março de 2020, quando foi decretada a pandemia da Covid-19 no mundo, a agosto, o Acre registrou seis feminicídios, mantendo-o entre os Estados que mais matam mulheres no Brasil. No último quadrimestre, de setembro a dezembro de 2020, foram três mulheres assassinadas: duas no mês de setembro e uma em novembro.
Os dados têm como base as estatísticas das Secretarias Estaduais da Segurança Pública. O objetivo do monitoramento é visibilizar a violência doméstica e o feminicídio contra a mulher durante a pandemia. Durante os meses de pandemia, de março a dezembro, 14 estados apontaram aumento no número de feminicídios. Juntos, eles tiveram um aumento de 20% em comparação com o mesmo período de 2019. Mato Grosso e Pernambuco apresentaram a maior elevação em número absolutos: 22 (73%) e 16 (36%) casos a mais, respectivamente, em comparação com o mesmo período do ano passado. Outro destaque é o estado do Amazonas, que elevou o número de feminicídios em 67% neste período.
Nos mesmos meses, dez estados apresentaram queda no número de feminicídios. Os estados que apresentaram as maiores quedas em porcentagem foram o Distrito Federal (- 57%) e Rio Grande do Norte (- 47%) e em números absolutos foram o Rio Grande do Sul, com 29 casos a menos e Minas Gerais e Distrito Federal, ambos com redução em 17 casos.
Em 2020, a taxa média de feminicídios por 100 mil mulheres foi de 1,18. Em 2019, a taxa foi de 1,19. Conforme a análise do monitoramento, 16 estados apresentaram taxas acima da média Estes correspondem a 45% da população feminina dos estados analisados (102 milhões) e foram responsáveis por 61% das mortes ou 735 feminicídios. Os estados que apresentaram as maiores taxas são Mato Grosso 3,56 e Roraima 2,95 – ambos com o triplo da média dos 24 estados e do Distrito Federal). Na contramão, 11 estados apresentaram taxas abaixo da média: Ceará (0,57), Rio Grande do Norte (0,64) e São Paulo (0,74).
Se o ano de 2020 foi particularmente difícil para as mulheres, especialmente as vítimas de violência doméstica, 2021 corre o risco de ser ainda pior porque não há qualquer perspectiva de que o país reverta as crises sanitária, econômica e política que enfrenta simultaneamente.
“É tudo muito preocupante porque, apesar de iniciativas de políticas públicas contra isso, a violência teima em acontecer”, disse Eva Evangelista. “O governo do Acre tem adotado inciativas louváveis, mas é preciso avançar muito mais”, disse.