Uma descoberta arqueológica revela o quanto a Amazônia ainda é desconhecida e pouco pesquisada. E o quanto precisa ser preservada para que se conheça todo o seu potencial. Que vai muito além de abrigar a mais rica biodiversidade do planeta. Depois do aquífero mostrado por Mar Sem Fim, agora pesquisadores estão desvendando construções comparáveis às pirâmides no Egito. São as ilhas artificiais da Amazônia: construções que exigiram saberes complexos de várias áreas do conhecimento. Mas, foram erguidas nos períodos pré-colonial e colonial, no mínimo. Possivelmente, até muito antes disso, acredita o pesquisador Márcio Amaral.
22 Ilhas artificiais na Amazônia
As ilhas artificiais devem quebrar o paradigma de que o conhecimento das populações indígenas era limitado antes da chegada dos europeus. “As evidências corroboram a teoria de que a Amazônia era densamente povoada. E formada por sociedades organizadas e muito complexas, antes da colonização”, diz Amaral. Ele faz parte do grupo de arqueólogos do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, que está à frente dos estudos. Já foram descobertas 22 ilhas artificiais na região no Alto e Médio Solimões. Número que pode ser ainda muito maior, diante do tamanho da Amazônia.
Ilhas, abrigos para fugir das inundações
As ilhas artificiais são parte de um total de 250 sítios arqueológicos registrados em um quadrilátero de 180 mil quilômetros. Desses, 65 mil quilômetros estão associados à distribuição das ilhas. Elas são morros construídos por indígenas em várzeas para servirem como aldeias. Foram erguidas para que as populações pudessem ficar abrigadas na época das cheias. Um período que, segundo a dinâmica de área de várzea, costuma ficar inundado ao menos seis meses durante o ano.
Cada uma tem entre seis e sete metros de altura acima do nível da várzea. A extensão varia de um a três hectares. As ilhas artificiais são conhecidas pelos ribeirinhos como “aterrados”, que também as identificam como “construção de índio”.
Ilhas artificiais na Amazônia, cálculos avançados de engenharia
Próximo a um aterrado sempre existe uma depressão, com dimensões em torno de 25 por 50 metros. São conhecidas pelos ribeirinhos como “cavados”. Era desses locais que os indígenas extraíam terra para a construção. “Ainda hoje tem muita gente que mora nos aterrados”, diz Amaral. “Foi uma resposta complexa das antigas civilizações para sobreviver na época das cheias. E que não envolve apenas o método construtivo.” A construção, por si só, já indica a necessidade de cálculos avançados de engenharia, assegura.
“Uma das maiores ilhas artificiais tem largura de cerca de 220 metros na base e no topo mede 45 metros.” Isso foi calculado para uma melhor distribuição do peso da terra, afirma Amaral, a fim de que as ilhas se sustentassem. O próprio volume de terra movimentado já mostra a necessidade de muitas pessoas atuando. E que era preciso muita organização para que fossem erguidas. “Construir estruturas com essas dimensões, com milhares de toneladas de terra, e sem maquinário, é realmente surpreendente.”
Ilhas construídas em locais estratégicos na Amazônia
Além disso, as ilhas artificiais foram posicionadas em locais estratégicos. Geralmente, próximos a muitos recursos necessários à sobrevivência, como a oferta de proteína animal. “Elas foram construídas ao lado de bocas de paranás e lagos. Locais com fauna rica e diversificada, com muitos peixes, quelônios e jacarés.” O conhecimento dos ribeirinhos também indica, segundo Amaral, a existência de currais de quelônios nessas áreas. O arqueólogo ressalta ainda que a vegetação típica das ilhas artificiais é bem diferente da encontrada nas várzeas.
Ilhas, legado dos antigos povos indígenas
“A cultura de plantação era diversificada, mostrando conhecimento botânico e um tratamento de engenharia genética na escolha dos alimentos cultivados. As mulheres, responsáveis pelas plantações, sabiam escolher quais alimentos cultivar, do açaí ao abacaxi, mais doce, a mandioca, com maior valor energético, até as ervas e plantas medicinais. Elas conseguiram transformar e multiplicar a variedade genética. Esses povos modificaram a paisagem, manejaram os recursos e desenvolveram estratégias de sobrevivência de acordo com o ambiente em que viviam. Esse foi um legado que deixaram para toda a Amazônia, que precisa ser resgatado.”
Vestígios datam de até mil anos antes de Cristo
Entre os milhares de insumos e vestígios desse conhecimento, está ainda o denominado “pão de índio”. É um material orgânico, que indica técnica tradicional de armazenamento de alimentos de origem vegetal. Existem ainda muitos ossos de peixes e mamíferos, que comprovam a diversificação da alimentação à base de proteína animal nas ilhas artificiais. E dezenas de fragmentos de cerâmicas, além de sementes carbonizadas, entre outros vestígios. Das cerâmicas, foram encontrados fragmentos da Hachurada Zonada. Estilo que, acredita-se, tenha surgido por volta do ano mil antes de Cristo.
Outras, contudo, são do estilo corrugado. Ele é caracterizado por “rugas” nas peças e vasos. Esse estilo, datado dos séculos 15 e 16, é comum a grupos tupis, explica. E na área onde as ilhas estão localizadas viviam os antigos omáguas, povo indígena do tronco tupi. “Acredita-se que os omáguas são ascendentes dos atuais kambebas, etnia amazônica com aproximadamente 1.500 indivíduos em território brasileiro.”
Documentos espanhóis e portugueses relatam ilhas
Além dos vestígios arqueológicos, há documentos sobre esses povos. São relatos em formato de crônicas. Foram feitos por portugueses e espanhóis que navegaram pela Amazônia, entre os séculos 16 e 19. O pesquisador do Instituto Mamirauá lembra que construções similares já foram descobertas na Ilha do Marajó, Pará, e em Llanos de Mojos, Bolívia. O que, segundo o arqueólogo, derruba o mito de que poucas civilizações antigas eram capazes de desenvolvimentos considerados sofisticados para determinadas épocas.
“Não foi apenas nos Andes ou no Egito, com suas pirâmides, como muitos pensam. Há um sistema de vida que teve sucesso ao longo de 13.000 anos aqui no país. O Brasil não começou em 1500.”
Ilhas artificiais na Amazônia estão localizadas em reservas
“Há registros dos omáguas morando em ilhas que datam do século 16, no mínimo. Por isso, essas ilhas podem ser historicamente associadas a eles. Mas, com base nessa data relativa, acreditamos que essas construções possam ser ainda mais antigas. Que essa data possa recuar bastante.” Esses estudos, diz Amaral, foram iniciados em 2015. “Antes, algumas ilhas artificiais já tinham sido registradas na região, mas as investigações começaram nessa data, em abril.”
Desde então, os arqueólogos reconheceram e registraram essas descobertas. O trabalho é realizado na época da seca, quando a logística de deslocamento pela área amazônica é viável. São viagens que levam dias de navegação ou a pé. “Como estão localizados em reservas (Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã e Reserva de Desenvolvimento Mamirauá), contamos muito com a ajuda do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) nos deslocamentos.”
Pesquisadores precisam de investimento
A pesquisa, entretanto, precisa de continuidade, com escavações e datação dos materiais. E ampliar o mapeamento das ilhas artificiais. Um trabalho que pode levar entre cinco a dez anos. Mas faltam recursos. “Estamos reunindo as informações já coletadas para publicar artigos científicos. Mas precisamos de investimento para continuar e dar maior precisão à pesquisa. E o Instituto está de portas abertas para receber patrocínios.” O Instituto Mamirauá é uma Organização Social fomentada e supervisionada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Está localizado em Tefé, a cerca de 550 quilômetros de Manaus.
Resgate da tradição oral
A ideia ainda é investir para resgatar as informações passadas oralmente de geração para geração, típica das civilizações antigas. Foi dessa forma que os pesquisadores chegaram às ilhas artificiais. “A arqueologia precisa se voltar para quem mora nessas áreas porque essas pessoas são as conhecedoras. E têm uma tradição oral que a gente consegue rastrear até há quatro, cinco gerações.”