“Cada um carrega consigo marcas da sua própria história”, disse a servidora pública Dryelem Alves, de 32 anos, em postagem nas redes sociais. Quem lê somente esta parte da legenda de 25 linhas, pode até pensar que é somente alguma frase motivacional para complementar a foto ou algo do tipo (e talvez até possa cumprir este papel também), mas para Dryelem, que vive com bolsa de colostomia há quase 4 meses pela segunda vez na vida, isso significa muito mais.
A jovem está nesta condição em decorrência de negligência médica durante o período gestacional. A ostomia – ou estomia –, é uma cirurgia realizada para que haja um caminho alternativo para a eliminação de urina e fezes, bem como auxílio na própria alimentação e respiração. Ou seja, ela redireciona o trajeto destes excretos para uma bolsa acoplada na barriga através de uma fita adesiva. Estima-se, segundo o Ministério da Saúde, que mais de 400 mil pessoas vivem com uma bolsa de ostomia no Brasil. Dryelem é uma delas.
De acordo com relatos da servidora, que costuma contar os dias em que está com a bolsa, ela começou a sentir um caroço na barriga e procurou por diversas vezes os serviços de saúde, onde não teve o atendimento que era necessário ao caso. Além disto, contou que sempre relatava aos profissionais que havia nascido com o ânus imperfurado e que isto lhe levou a usar bolsa de colostomia quando pequena durante algum tempo. No entanto, eles acabavam passando apenas laxantes.
“Em um desses hospitais, a médica veio me questionar se eu estava fazendo o planejamento familiar, e antes de responder que meu marido iria operar, que minha gestação era de risco e que isso me impedia de ficar saindo de casa, ela disse ‘mas até quem é da colônia se opera, só se opera quem vai atrás’”, disse.
CIRURGIAS
Após o nascimento prematuro da filha, Dryelem buscou profissionais da gastroenterologia, fez tomografia, colonoscopia e raio-x e acabou descobrindo que o motivo das fortes dores era uma espécie de fitobezoar no intestino, que é caracterizada por um acúmulo de fibras que não estavam saindo de forma natural, devido ao processo de calcificação.
Isto a levou para a mesa de cirurgia de emergência do Pronto Socorro de Rio Branco. No entanto, acabou abrindo uma fístula (que é a conexão entre um vaso sanguíneo ou órgão com outra estrutura que não estão conectadas normalmente). Após outra cirurgia de limpeza, dois dias depois da primeira, os médicos retiraram 22 centímetros de intestino necrosado e colocaram a bolsa.
“EU NÃO CONSEGUIA ACEITAR, FOI DURO DEMAIS”
Por conta deste procedimento, muitas vidas que são acometidas por várias doenças como câncer ou doenças intestinais inflamatórias como a Doença de Crown, conseguem ser salvas. No entanto, ainda há um problema que estes pacientes costumam enfrentar, de forma diária, após o convívio com a bolsa: a baixa autoestima e a vergonha de mostrá-la.
“Foi um choque, eu não conseguia aceitar, foi duro demais para mim. Além disto, infelizmente, alguns profissionais de saúde não estão capacitados para lidar com uma pessoa recém-ostomizada, não sabiam me repassar informações sobre, apenas me colocavam medo. Não queriam fazer a limpeza da bolsa alegando que em casa eu quem teria que fazer. Foi tudo muito traumatizante, eu me sentia no fundo do poço, só imaginando que a minha vida não seria mais a mesma”, contou.
Ter que esvaziá-la, trocá-la, adesivá-la, higienizá-la e, por vezes, deixá-la à mostra acaba sendo um desafio e gerando um desconforto enorme para pessoas ostomizadas. Além disto, o medo de passar por constrangimento ou olhares de julgamento e desdém em decorrência do barulhinho do líquido na bolsa também vira um verdadeiro bicho-papão na vida destas pessoas.
“O choro era constante, eu via meu filho pedindo colo e eu não podia dar, minha caçula tomando fórmula por eu não poder amamenta. Eu tive que buscar forças de onde não tinha, e graças a Deus eu tive uma rede de apoio excelente, minha mãe, meu esposo que nunca mudou o jeito de me tratar, meus familiares e amigos que foram verdadeiros irmãos”, complementou.
SUS
É importante frisar que as pessoas ostomizadas possuem direitos resguardados tanto por lei federal, como pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que garante as bolsas coletoras e adesivos. Além disto, o SUS também fornece o Serviço de Atenção às Pessoas Ostomizadas através da Portaria nº 400, de 16 de novembro de 2009, que são unidades especializadas em prestar atendimento a pessoas com estoma, e incentivo à autonomia e à qualidade de vida. Inclusive, a partir da data desta portaria, foi estabelecida o “Dia Nacional dos Ostomizados” pelo Ministério da Saúde, para que informações e estigmas relacionados a esta condição sejam desmistificadas.
O Decreto de nº 5.296, de 02 de dezembro de 2004, estabelece a ostomia como uma deficiência física, que resguarda a este público direitos como: fila preferencial, política de cotas, benefício de prestação continuada, direito ao tratamento gratuito sem necessidade de comprovação de renda e gratuidade no transporte coletivo.
BOLSA TEMPORÁRIA
A servidora disse que apesar de o estado fornecer o apoio para a progressão no tratamento, alguns modelos de bolsas acabam não satisfazendo o tipo de estoma do paciente, e os adjuvantes (que são produtos para passar ao trocar a bolsa), por sua vez, não são fornecidos de forma gratuita.
“Em outros estados, os ostomizados recebem a bolsa conforme seu estoma, às vezes é necessário usar a plana ou a convexa, e aqui só é feita a distribuição de uma. Se não for a que o paciente precise, ela terá de comprar outra. Busquei informações com o presidente da Fundação Hospitalar do Acre (Fundhacre) e com um deputado para ver se não tinha como melhorar, mas até agora não obtive retorno”, destacou.
Dryelem complementou que a bolsa de colostomia é temporária e que tem que ficar com ela por, no mínimo, 8 meses, mas ainda assim guarda certo receio pois o exame que o médico pediu sequer foi marcado. “A moça disse que tem gente aguardando por ele há quase um ano, e isso me preocupa pois é óbvio meu desejo de fazer logo a reversão”.
ENSAIO FOTOGRÁFICO
Depois das cirurgias de alto risco que Dryelem passou, ela começou a alimentar a ideia de fazer um ensaio fotográfico para que a autoestima dela fosse recuperada, e para que sua história reverberasse e inspirasse outras pessoas. Ela começou a buscar apoio e a compartilhar experiências com outras pessoas ostomizadas Brasil afora, fez algumas leituras esclarecedoras sobre as reais condições dela, onde chegou à conclusão de que eles podem, sim, ter uma vida normal.
“Eu saí de lá (hospital) como se eu estivesse grudada na bolsa e com o tempo, percebi que ela que estava grudada em mim. Conforme o pós-operatório foi passando, e eu fui tendo domínio do meu corpo, passei a me arrumar. Eu tenho uma característica de sempre buscar me reinventar para me adaptar a situações difíceis e dessa vez não foi diferente”, enfatizou.
No ensaio, ela disse que passou um filme na cabeça, sobre tudo o que ela havia enfrentado para estar onde estava: em um estúdio fotográfico. “Isso me ajudou a fazer clicks maravilhosos. Creio até que em quesito aceitação não foi tão difícil, o que não consegui aceitar até hoje é o porquê de eu não ter sido ouvida quando busquei ajuda. Fazer esse ensaio foi uma forma de mostrar que não é fácil calar quem não nasceu para ser silenciada”, finalizou.