Remédio usado por Joice é ligado a relatos de apagão de memória e até acidentes

Valéria França e Cláudia Collucci
FolhaPress

Uma discussão sobre os efeitos colaterais do zolpidem, substância hipnótica usada para induzir o sono, ganhou espaço nos últimos dias após o incidente relatado pela deputada federal Joice Hasselmann (PSL-SP), que disse ter acordado em seu apartamento no último dia 18 com fraturas e hematomas pelo corpo.

Após o caso, que está sob investigação em Brasília, surgiram inúmeros depoimentos de pessoas que tiveram crises de sonambulismo, acompanhadas de apagões de memória e até a ocorrência de acidentes de carro, após o uso do medicamento. Joice não descarta ter sofrido um atentado.

A parlamentar disse que, na noite anterior, estava assistindo a uma série com o marido e tomou seu “remedinho para dormir”. Segundo Joice, ele foi para o quarto, e ela continuou a ver TV, mas não se lembra do que ocorreu depois. No dia seguinte, acordou no chão, machucada, sem saber o que aconteceu.

Segundo sua assessoria de imprensa, “os médicos descartaram a possibilidade de uma queda acidental” ter provocado as escoriações.

As câmeras de segurança do prédio onde fica o apartamento funcional da deputada não registraram a entrada de nenhuma pessoa estranha entre os dias 15 e 20 de julho, segundo perícia da Polícia Legislativa, que apura o caso. Laudos também apontam que ela não deixou o apartamento no período.

O inquérito sobre o caso foi enviado para o Ministério Público Federal, que pediu novas diligências. A Polícia Civil do Distrito Federal também fez perícias no local.

Joice negou que as fraturas no rosto e na coluna, um dente quebrado e os hematomas no corpo sejam resultado de supostas agressões cometidas por seu marido, o neurocirurgião Daniel França. O casal disse que processará pessoas que espalharem o que chamou de ilações sobre violência doméstica.

A deputada revelou em entrevistas fazer uso do Stilnox, remédio à base de zolpidem, há cerca de 20 anos.

Desenvolvida há 30 anos, de início para regular o jet lag de pessoas que fazem viagens internacionais, a substância é considerada segura pelos médicos desde que usada de acordo com as indicações da bula, na dose certa e por tempo adequado.

Entretanto, cerca de 5% dos pacientes que fazem uso do hipnótico zolpidem estão sujeitos a diminuição ou perda total da memória (amnésia), especialmente nas quatro primeiras horas após a ingestão, quando a medicação ainda está na corrente sanguínea.

O paulistano especialista em marketing Ciro Nardi, 57, está dentro do pequeno grupo de 5%. Ele, que vive em São Paulo, começou a ter insônia ao iniciar um trabalho pela internet com uma empresa de Portugal, país com diferença de fuso horário de quatro horas com o Brasil.

“Passei a dormir como um bebê com a nova medicação, mas, depois de um tempo de uso, percebi que estava com problema de memória recente. Minhas filhas diziam, por exemplo, que eu entrava durante a noite no quarto delas para brincar, e eu não me lembrava”, conta Nardi.

Até que, no início deste ano, ele acordou ao bater o carro em um poste de madrugada. “Eu despertei com a batida. Não entendi nada. Não me lembrava de ter saído da cama, me vestido, aberto a garagem e dirigido ao longo de 12 quadras.” Por sorte, ele não se machucou.

A avaliação foi a de que Nardi estava em um estado de semiconsciência, também chamado de crepuscular, que se parece com o estágio de transição do sono para a vigília.

“A pessoa pode fazer e vivenciar coisas, que não ficam retidas na memória”, afirma o psiquiatra Mauro Aranha. Nessa situação, mesmo parecendo estar acordado, o indivíduo não tem os mesmos reflexos nem o mesmo raciocínio.

Segundo o psiquiatra, se a pessoa acordar durante as quatro horas em que o fármaco circula na corrente sanguínea, ela pode não se lembrar do que fez. “Mas, se despertar quando a substância não está mais circulando no corpo, provavelmente já estará consciente dos próprios atos”, explica.

A bula do medicamento alerta sobre “as propriedades farmacológicas do zolpidem, que podem causar sonolência, diminuição dos níveis de consciência —levando a quedas e, consequentemente, a lesões severas—, sonambulismo ou outros comportamentos incomuns (como dormir na direção e durante a refeição), acompanhado de amnésia”.

Há relatos de pessoas que ingeriram o remédio para dormir e acordaram no dia seguinte no chão da cozinha.

Um advogado que também toma Stilnox, remédio usado pela deputada, e que pediu à reportagem para não ter o nome revelado disse que relacionou o cenário narrado por Joice a possíveis reações colaterais da substância antes mesmo de ela citar que faz uso do medicamento para dormir.

Nas palavras do advogado, “esse é um remédio que precisa ser tomado na cama e com a luz apagada”, já que há riscos de a pessoa “se levantar no meio da noite e fazer coisas das quais não vai se lembrar no dia seguinte”.

O advogado relata episódios malucos e até perigosos que vivenciou sob efeito do medicamento, como fazer macarrão em uma frigideira, deixar o gás aberto por sete horas e cair no banheiro. Ele diz que só descobriu os fatos no dia seguinte, ao ver indícios como a cozinha revirada e escoriações pelo corpo.

Como outros pacientes, o paulistano especialista em tecnologia da informação Claudio Morales, 54, diz que não leu a bula antes de iniciar o uso do remédio. Segundo ele, “quem lê bula não toma nenhum remédio, porque todos têm inúmeras restrições e contraindicações”.

“Tomei o zolpidem por indicação de um amigo”, diz Morales. Estudo realizado pela Sleep Up, startup focada no tratamento de insônia, mostrou que 35% das pessoas entrevistadas revelaram que tomam medicamento para dormir sem prescrição médica.

O profissional de TI apelou para o remédio depois de uma série de problemas de família —a morte do pai, vítima de um câncer, a separação conjugal e a demissão do trabalho—, além da pandemia de Covid-19.

“O zolpidem me devolveu o sono e aplacou minha ansiedade. Já tive ataque de pânico. É horrível”, afirma ele, que atualmente toma quatro doses diariamente, duas de dia e duas à noite. “Eu fiquei dependente”, admite Morales, que procurou um médico para se tratar recentemente.

“O zolpidem é mais adequado e leve que os benzodiazepínicos no tratamento da insônia, mas isso não quer dizer que possa ser tomado sem indicação médica”, diz o neurocirurgião Pedro Pierro. Segundo ele, o remédio “causa menos adição, mas também leva à dependência química, se administrado por longo tempo”.

Ainda de acordo com Pierro, muitos pacientes não querem resolver a causa da insônia e acabam apresentando resistência à mudança de hábitos, que poderia levar a uma rotina com menos estresse e mais saudável, condição fundamental para a qualidade do sono.

“Querem resolver o sintoma com uma pílula”, resume o médico. Muitas vezes, no entanto, a situação foge do controle e o remédio parece ser a única saída para aguentar a pressão, afirma Pierro.

Em seu primeiro mandato como deputada federal, Joice foi eleita em 2018, na onda bolsonarista, após conquistar fama com sua atuação como jornalista e ativista ligada a movimentos de direita. Participou de manifestações em defesa da Lava Jato e escreveu uma biografia de Sergio Moro, ex-juiz da operação.

No ano passado, disputou a eleição para a Prefeitura de São Paulo e terminou em sétimo lugar na disputa, com 1,84% dos votos válidos.

A parlamentar foi líder no Congresso do governo do presidente Jair Bolsonaro (eleito pelo PSL e atualmente sem partido). Depois, rompeu com o presidente e hoje integra o grupo de desafetos do Planalto e da base bolsonarista —ela defende, inclusive, o impeachment do mandatário.

Após prestar depoimento na Polícia Civil, no último dia 26, Joice disse acreditar que o responsável pelo suposto atentado que sofreu é alguém que a “odeia muito” e que quis dar um susto nela.

“Eu já sofri muitas ameaças para parar, ameaças verbais, de estupro. Talvez tenha sido um recado mais duro, tipo ‘somos capazes de ir além’”, afirmou ela a jornalistas.

“O recado foi entendido, mas eu não vou fazer o que eles querem. Eu não vou me acovardar”, prosseguiu. “A única coisa que eu descarto é uma tentativa de assalto, porque eu tinha um computador que vale quase 30 mil reais, eu estava com os brincos, anéis e bolsa com cartão de crédito e dinheiro.”

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