Michele, mulher trans e servidora pública federal, recorreu juridicamente após seu plano de saúde negar-se a cobrir cirurgias do processo transexualizador – que estão incluídas no rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde (ANS) para pessoas transsexuais. Ela entrou com uma ação contra o plano de saúde e agora aguarda pela audiência judicial.
Em decisão da gerência estadual, a GEAP Saúde negou o custeio, alegando se tratar de procedimentos cirúrgicos para fins estéticos e/ou experimentais, e apontando a ausência de previsão no rol de procedimentos da ANS. No entanto, a servidora se enquadra em todos os requisitos necessários para realização das cirurgias do processo transexualizador, afirmando haver uma interpretação errada do rol da ANS por parte do plano de saúde.
Pedido negado
No final de 2021, ela teve o pedido de cirurgia para implante mamário negado pela GEAP Saúde. “Eu fui e fiz com o meu dinheiro. Já estava passando por um momento que não dava mais para esperar. Tive que fazer empréstimo, tive que me prejudicar financeiramente por uma coisa que é um direito meu. A primeira interpretação deles foi errada, falaram que o rol da ANS se refere apenas a cirurgia de redesignação sexual, mas o rol se refere as cirurgias do processo transexualizador, um conjunto de cirurgias, e não apenas cirurgia de mudança de sexo”, explica Michele, que entrou em maio de 2022 com uma ação contra o plano de saúde, pedindo ressarcimento da cirurgia realizada, e o direito do custeio de outras cirurgias do processo transexualizador por parte do plano.
A defesa da paciente havia pedido tutela de urgência na ação, que foi negada duas vezes pela justiça acreana. Agora, a ação seguirá para a audiência judicial, em fevereiro. A defesa leva em consideração decisões favoráveis em outros tribunais, como o Tribunal de Justiça de São Paulo, que em um processo similar, reconheceu que “havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS”.
Morte silenciosa
Na última sexta-feira, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) liberou gratuitamente o Dossiê TRANS 2023 — documento com dados sobre violações de direitos humanos e violências contra pessoas trans referente ao ano de 2022. O dossiê revela que o Brasil continua, pelo 14º ano seguido, sendo o país que mais mata pessoas trans, com 131 assassinatos em 2022.
No entanto, a população trans não é vítima somente da violência física, mas da violência psicológica e da falta de oportunidades no mercado de trabalho, como revelou um levantamento realizado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que mostrou que somente 13,9% das mulheres trans e travestis tinham um emprego formal. Essa soma de fatores, dificulta o acesso desse grupo à garantia de seus direitos – que por vezes também são negados ou dificultados. Mesmo que as cirurgias do processo transexualizador possam ser realizadas através do Sistema Único de Saúde (SUS), o sofrimento da espera de anos leva à procura de realizar esses procedimentos através do setor privado.
“Eu digo que eu sou uma mulher trans privilegiada, porque eu sou uma servidora pública federal há 12 anos, tenho um mestrado, tenho acesso a um plano de saúde. É justamente por ter esse privilégio que eu acionei a justiça, porque nem todo mundo tem condição de pagar uma advogada, e acionar a justiça para que esse nosso direito seja cumprido. Essa ação não vai ser benéfica somente para mim, mas para outras pessoas trans também, daqui cinco, dez anos, que tiverem plano de saúde e quiserem fazer seu processo transexualizador”.
Direito à felicidade
Em 2018, o Supremo Tribunal Federal do país, em julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275, reconheceu, nas palavras do ministro Marco Aurélio, que “o Estado não pode limitar, restringir, excluir, obstar ou embaraçar o exercício, por qualquer pessoa, de seus direitos à identidade de gênero”. Na decisão, o ministro do STF apontou sobretudo, o direito fundamental à busca da felicidade.
O processo cirúrgico transexualizador é entendido como uma forma da pessoa trans adequar o seu eu com sua imagem. “Não são cirurgias estéticas, são cirurgias reparadoras. Essa espera me causa muita dor e sofrimento, é uma transição que eu já iniciei há anos e só agora consegui concretizar. Essa situação que estou passando, outras pessoas trans também estão passando, e o judiciário muitas vezes peca por essa morosidade. Eu estou em dia com meu plano de saúde, minha cirurgia é uma cirurgia reparadora, me enquadro em todos os requisitos exigidos pela ANS. Mas o plano deliberadamente se recusa, alegando que a cirurgia é estética, quando na verdade já existem decisões judiciais dizendo que não é. Eu possuo laudo médico, sou acompanhada por uma equipe multiprofissional por quase três anos, dois anos a mais do que a ANS exige. Eu já mudei meu nome no civil, já mudei meu gênero, já fiz os implantes mamários por contra própria e devido a inércia injustificada do plano. Eu cumpri todos os requisitos administrativos e não há por que ficar nessa celeuma por parte do plano e da justiça”, desabafou Michele.
Em um debate que começa agora a chegar aos tribunais acreanos, a decisão que a justiça acreana tomará no próximo mês impactará na luta pelos direitos das populações trans no estado e na região norte, onde a saúde da LGBTQIA+ ainda não é tão discutida, comparada a outras regiões do Brasil.