“Aqui quem come arroz e feijão já está no lucro”, diz pastor do Acre em missão na África

Conheça a história de Aymar Roger Watinou, chefe de uma missão de evangelização acreana em Moçambique

Às 3h30 da madrugada do último domingo, (9), horário do Acre, o congolês naturalizado brasileiro Aymar Roger Watinou, 50 anos, começava a primeira transmissão ao vivo do dia, desde o continente africano, em língua portuguesa: a celebração de mais um culto evangélico a partir de uma plataforma de vídeo na internet para o povo moçambicano.

Há seis anos e quatro meses, ele lidera, com a esposa Márcia, uma missão evangélica acreana em Moçambique, organizada por uma das mais significativas instituições evangélicas do Acre, a Igreja Batista do Bosque, com sede em Rio Branco. No país, ela se chama Igreja Batista do Bosque de Moçambique, na cidade de Beira, a 11 mil quilômetros da capital acreana, na parte mais austral da África, banhada pelo oceano Índico.

Aymar Roger Watinou, de 50 anos/Foto: Reprodução

ContilNet conversou por telefone com o médico veterinário de formação, que morou no Acre por 17 anos e que ainda tem residência fixa em Rio Branco, onde tornou-se pastor evangélico, casou-se com a riobranquense Márcia, e com ela teve a Beatriz e o Rafael. Aqui, ele narra os desafios de pregar o Evangelho numa das regiões mais pobres do mundo, em Beira, cidade de pouco mais de 530 mil habitantes.

Watinou relembra os momentos de tensão vividos em março de 2019, quando o país foi devastado pelo ciclone Idai, deixando pelo menos 446 mortos e 128 mil desabrigados. Na ocasião, mesmo com a sugestão da direção da Igreja de retornar ao Acre, ele optou por ficar na África com a família, enfrentando então um dos maiores desafios da sua vida, mas sem deixar de assistir as famílias locais que precisavam do apoio da igreja acreana.

O pastor em missão na África/Foto: Cedida

Depois que passou a infestação da Covid-19 pelo continente, a dinâmica do trabalho evangélico continuou nas redes sociais, e fisicamente, no templo, já que boa parte dos membros não tem internet em casa. Nesses casos, os grupos de WhatsApp e os serviços de mensagens via SMS também ajudam neste trabalho.

Confira os principais trechos da conversa:

ContilNet: Como é o desafio de falar de Jesus Cristo para centenas de famílias pobres, num dos continentes mais espetaculares do planeta, mas ao mesmo tempo tão carente de infraestrutura?

Aymar Watinou: Com a pandemia e a igreja fechada fisicamente, nós utilizamos muito a plataforma do Youtube para evangelizar. Depois que tudo passou, continuamos normalmente, mas os serviços de auxílio aos mais necessitados e de evangelização olho no olho prosseguiram até hoje. Também usamos recursos como o SMS e o WhatsApp.

ContilNet: Além do português, você fala o francês, sua língua materna, o inglês, o espanhol e uma dezena de dialetos regionais. Também conhece muito sobre a África e a sua geopolítica. Ainda assim, é fácil coordenar uma igreja evangélica num país que ainda é muito carente de tudo?

Aymar Watinou: Não. Não é tão fácil como parece ser. A cidade de Beira é a segunda maior de Moçambique, que já foi um dos países mais pobres do mundo. Já melhorou muito com a ajuda de organizações humanitárias também locais, que tentam ajudar o país e o seu povo. O custo de vida aqui é alto e lidar com a classe média baixa é uma situação que não é fácil. A realidade do Acre não se compara com a realidade local em termos de facilidades aí. Aqui, para muitos, a Igreja, talvez, seja a única porta de saída para uma vida mais segura, não apenas espiritual quanto material mesmo.

Historicamente, Moçambique precisou muito de ajuda humanitária, e o setor evangélico não fica atrás. Muitos missionários têm ajudado, mas não é só trazer a palavra, senão também o sustento: o alimento propriamente dito. É criar também um meio para que eles possam ter, até uma Educação pré-escolar, por exemplo. Então, você percebe um cenário bem precário. Tem família que faz uma refeição por dia.

Dizer pro acreano que ele vai comer só arroz choca. É difícil, e aí temos que ter pelo menos um complemento, um ovo que seja. Então, aqui, se você oferece a eles feijão e arroz já é muito. Já está no lucro quem comer. Mas mesmo com as condições bem precárias, em meio a tudo isso, Deus tem nos dado graça para que possamos continuar propagando o Evangelho neste lugar.

ContilNet: Como é a sua relação com Deus?

Aymar Watinou: Quando a gente quer algo de Deus, geralmente, a gente só busca-o quando queremos alguma coisa, porque entende assim: ‘eu vou para perto Dele e Ele vai me oferecer, tanto coisas materiais quanto coisas que você não pode tocar’. E hoje, a maioria das pessoas vai atrás de coisas palpáveis Mas devemos entender que o mais importante são as coisas que você não pode tocar. A felicidade, a paz, a alegria, a esperança, o amor. São coisas que não temos nas mãos, mas que Deus sempre tem à disposição para cada um de nós.

Então, você não deve buscar a Deus por uma necessidade momentânea. A Bíblia diz que quando estávamos sendo gerados no ventre de nossas mães, Deus já tinha um propósito para as nossas vidas. Desse modo, o mais importante é que você possa encontrar o seu verdadeiro propósito com Deus.

Hoje nós [a minha família] estamos no lugar em que Deus queria que estivéssemos. Eu acredito que o mais importante é quando o ser humano consegue isso e aí você começa a viver a plenitude de Deus na sua vida. A gente experimenta isso hoje. E torço para que realmente, possamos cumprir essa missão com sucesso, não para [satisfazer] o homem, mas para Deus.

ContilNet: E como é a reação dessas pessoas humildes diante da necessidade de confiar na Igreja?

Aymar Watinou: Toda mudança de liderança gera um impacto muito grande no modo como a igreja trabalha. O trabalho de se adaptar a uma nova liderança, que no nosso caso, já era a terceira, gera uma dificuldade imensa. E nós sabíamos que precisávamos reconquistar a confiança das pessoas.

Quando o ciclone nos atingiu, as pessoas pensavam que iriam ficar sozinhas, que iríamos voltar para casa e deixá-las à própria sorte. O fenômeno climático que enfrentamos foi devastador. Acabou com tudo e as pessoas ficaram perplexas. Ele varreu a nossa igreja, derrubou o nosso templo, mas serviu para ficarmos de pé com essas famílias, para mostrar-lhes que estaremos sempre ao lado delas, aconteça o que acontecer.

E ficamos para que depois não duvidassem que nosso trabalho é o de cuidar de todos para Deus. De que todas as coisas cooperam para Ele e que precisávamos estar unidos.

Foi um despertar. A tragédia nos deixou ainda mais unidos e nos trouxe coisas positivas também. Quando passou, tudo tinha sido destruído, mas meu carro estava intacto. Nenhuma telha sequer caiu sobre ele. Então, eu fui ajudar no socorro às pessoas. Eu sou feliz por ter tido a oportunidade de ficar com as pessoas, mesmo podendo voltar para o Acre, se quisesse.

No fundo, entendi a velha máxima dos grandes líderes que são os últimos a deixarem o campo de batalha. Graças a Deus por isso. Então foram sete meses de caminhada juntos para que pudéssemos desfazer uma igreja dispersa. E hoje, para a honra e glória de Deus, crescemos como igreja, com mais cultos e um número maior de pessoas.

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