Após um debate que durou quase cinco horas, a Câmara dos Comuns do Reino Unido, o equivalente à Câmara dos Deputados, votou nesta sexta-feira a favor de um projeto de lei que prevê a legalização da morte assistida para pacientes adultos com doenças terminais, dando o primeiro passo em um debate histórico. Com o aval dos deputados, o texto agora seguirá sob um intenso escrutínio e análise dos parlamentares ao longo dos próximos meses antes de virar lei. A votação sobre o tema é a primeira em quase uma década: em 2015, um projeto similar foi rejeitado.
O Projeto de Lei para Adultos com Doenças Terminais (Fim da Vida) recebeu 330 votos favoráveis e 275 contrários. A proposta permite o suicídio assistido na Inglaterra e no País de Gales para adultos com uma doença incurável, que tenham uma expectativa de vida de menos de seis meses e que sejam capazes de ingerir a substância designada para causar a morte. A escolha teria que ser consentida por um juiz e dois médicos.
O projeto segue agora para a fase de comitê, na qual os legisladores podem apresentar emendas, um processo que provavelmente será complicado. Em seguida, a legislação deve passar por outras votações na Câmara dos Comuns e na Câmara dos Lordes (equivalente ao Senado). O processo provavelmente levará meses — só voltará aos parlamentares em abril, informou o jornal britânico The Guardian. Se for aprovado e se tornar lei, haverá um período de implementação de dois anos.
A autora do projeto, a parlamentar trabalhista Kim Leadbeater, descreveu a votação desta sexta-feira como “respeitosa e compassiva”, segundo a rede britânica BBC. A parlamentar observou que todas as questões levantadas, como cuidados paliativos, os direitos das pessoas com deficiência, e o Serviço Nacional de Saúde britânico (NHS), devem ser protegidos. A parlamentar acrescenta que haverá um comitê robusto para examinar o projeto de lei e torná-lo “o melhor possível”.
A presidente do Comitê de Saúde, a liberal Layla Moran, descreveu esta sexta como um “dia de muito orgulho para o Parlamento”. A parlamentar disse à BBC que ficou “satisfeita com a aprovação”, mas observou também o número significativo de colegas que votaram contra.
— As preocupações que as pessoas levantaram merecem ser levadas extremamente a sério, e agora é o momento de nos engajarmos de boa-fé e continuarmos a ter essas discussões muito respeitosas — afirmou.
Ao abrir o debate às 9h30 (6h30 em Brasília), Leadbeater afirmou que a mudança na lei daria às pessoas com doenças terminais “escolha, autonomia e dignidade no fim de suas vidas”. Em entrevista ao jornal britânico The Guardian, a parlamentar comparou a luta pelo tema ao movimento das mulheres por acesso ao aborto. Os dois ativismos, observou, falam sobre o direito à escolha sobre o próprio corpo.
Duas pesquisas de opinião divulgadas na semana passada indicaram que a maioria dos britânicos apoia a mudança da lei, que faria com que o Reino Unido seguisse o rastro de vários países europeus e de outros continente. O projeto britânico é mais rígido do que as leis de morte assistida de outros países vizinhos, incluindo uma proposta que sob consideração na França. Apoiadores argumentam que permitir o suicídio assistido tornaria algumas mortes menos dolorosas.
‘Cuidar, não matar’
Mas nem todos enxergam o tema da mesma forma. Opositores do projeto se reuniram do lado de fora do Parlamento para pedir aos deputados que votassem contra. Eles seguravam cartazes com os dizeres “Mate o projeto de lei, não os doentes” e “cuidar, não matar”. O grupo Care Not Killing, que reúne organizações e indivíduos, lamentou a aprovação. Mas reconheceu também em nota que ficaram “muito encorajados”.
“Quanto mais os parlamentares ouvem sobre suicídio assistido e eutanásia, mais eles se voltam contra a mudança da lei e querem, com razão, que o governo se concentre em consertar o falido sistema de cuidados paliativos do Reino Unido”, argumentaram.
O tema encontra bastante resistência principalmente entre os líderes religiosos. No último fim de semana, quase 30 lideranças assinaram uma carta conjunta afirmando que estavam “profundamente preocupados” com a proposta. Os críticos insistem que a legalização poderia conduzir algumas pessoas a se sentirem pressionadas a pôr fim à própria vida, enquanto outros argumentam que o sistema de saúde não está pronto para uma mudança tão marcante.
Os parlamentares tiveram liberdade de voto, o que significa que era praticamente impossível prever o resultado. Trabalhistas, conservadores, liberais democratas e reformistas se dividiram internamente. Apenas os verdes votaram favoravelmente de maneira unânime, observou a BBC.
‘Direito de escolha’
O texto de Leadbeater é um projeto de lei dos membros privados, isto é, quando os textos são apresentados por parlamentares e lordes que não são integrantes do governo. Apesar disso, segue a promessa do primeiro-ministro Keir Starmer, antes de assumir o poder em julho, de permitir que o Parlamento revisitasse a questão. O premier britânico votou a favor da permissão do suicídio assistido em 2015, mas com salvaguardas “robustas”. De acordo com o The Guardian, Starmer votou a favor do projeto de lei debatido nesta sexta.
Shabana Mahmood, a política muçulmana mais graduada do país, argumentou em uma carta recente aos eleitores que “o Estado nunca deve oferecer a morte como um serviço”, ao mesmo tempo em que observou que baseava sua posição em sua fé. A radialista Esther Rantzen, que tem uma doença terminal e liderou a campanha por uma mudança na lei, pediu na véspera que outros parlamentares fossem honestos quanto a sua fé ser a base de qualquer oposição.
— Eles têm o direito de escolher, mas, por favor, sejam honestos quanto à sua real motivação — disse à rádio LBC.
Enquanto isso, o conservador e ex-premier Rishi Sunak votou favorável ao projeto. Em artigo de opinião, ele argumento que “o projeto de lei […] reduzirá o sofrimento”. O também ex-primeiro-ministro David Cameron, que se opôs à mudança da lei de 2015, revelou que havia mudado de ideia sobre o tema. “Como os ativistas argumentaram de forma convincente, essa proposta não se trata de acabar com a vida. Trata-se de abreviar a morte”, escreveu no jornal The Times na quinta-feira.
No entanto, outros ex-premiers — incluindo Liz Truss, Boris Johnson, Theresa May e Gordon Brown — disseram ser contrários à proposta.
Atualmente, o suicídio assistido é proibido na Inglaterra, no País de Gales e na Irlanda do Norte, e acarreta uma pena máxima de 14 anos de prisão. Na Escócia, que tem um sistema jurídico separado e poderes delegados para definir sua própria política de saúde, não se trata de um crime específico. Mas pode deixar a pessoa exposta a outras acusações, inclusive homicídio.