Ney Latorraca era um ator gaiato. Com certa frequência, antes de subir aos palcos dos teatros em que se apresentava, fazia as vezes de bilheteiro — enquanto os ingressos iam sendo vendidos — e avisava ao público que ele estava um tanto borocoxô. Na sequência, fazia um pedido especial: para que tivesse um pouco mais de ânimo, as pessoas deveriam aplaudi-lo com entusiasmo toda vez que estalasse discretamente os dedos em cena. Este seria um código secreto estabelecido com os espectadores. A artimanha funcionava muitíssimo bem, e a plateia logo enchia a sala com palmas repentinas assim que o gesto, snap!, era realizado no tablado.
A traquinagem desvela um dos maiores trunfos do ator, que manteve uma sintonia afiada e afinada com o público — no teatro, na TV e no cinema — ao longo de mais de seis décadas de carreira. Filho único de uma vedete e um crooner, e afilhado de Grande Otelo (1915-1993), o paulista da cidade de Santos dizia que a primeira frase que aprendeu a pronunciar, ainda bebê, foi a seguinte pergunta: “É capa?”. Sim, ele sempre quis aparecer nas primeiras páginas de jornais e nas capas de revistas. E, não, não escondia isso de ninguém. Viver era algo “muito intenso” para Ney Latorraca, e o ator não conseguiria “ficar só contemplando” o mundo, como o próprio justificava.
— Sou uma pessoa regateira, vaidosa — afirmou, numa de suas últimas entrevistas ao GLOBO, em 2022.
Os personagens mais marcantes da carreira de Ney Latorraca
Ironia como marca
Rosto popular entre um público diverso no país, Ney se notabilizou pela constante verve irônica. O estilo sarcástico com o qual o ator esculpia seus personagens — e também a própria persona pública (“Quando me chamam de Seu Neyla, sinto que envelheço 200 anos”, ele brincava, ao citar o apelido que tanto refutava, e que batizou o título de sua peça mais recente, de tom autobiográfico, em 2022) — se transformou numa irreverente e indissociável marca.
Não à toa, o ator ganhou as massas com o bom humor. Em atrações da TV Globo, chamou a atenção com tipos inesquecíveis, como o velhinho beiçudo Barbosa, do programa “TV Pirata” (1988-1992), e o Conde Vlad, vilão atrapalhado da novela “Vamp” (1991). Aliás, no folhetim de Antonio Calmon, o papel de chefe de uma fictícia turma de vampiros foi apresentado, originalmente, como uma figura mais próxima da ideia de um galã. O personagem só apareceria nos nove capítulos iniciais. Até que… Numa passagem importante da trama, em que Vlad mordia o pescoço da mocinha Natasha (interpretada por Claudia Ohana), Ney soltou um sonoro “gotoso”, com os dentes afiados à mostra, e olhando diretamente para a câmera. A palavra virou um bordão, o vampiro torto caiu nas graças do público, e Ney foi alçado ao grande rosto da narrativa, que se transformou numa febre no país, sobretudo entre crianças e adolescentes. O sucesso o levou a encarnar outro vampiro na televisão, em “O beijo do vampiro” (2022).
A versatilidade exibida na profissão — com interpretações que embaralhavam drama e comédia por meio de um deboche fino — foi algo desenvolvido no berço. Os pais de Ney, que atuavam como artistas de cassinos no Brasil, perderam o emprego dois anos após o nascimento do menino devido à proibição das casas de jogos de azar no país, em 1946. Mais ou menos nesse período, o casal se mudou para uma pensão que não aceitava crianças. À noite, ao saírem para cumprir os trabalhos e bicos que encontravam, os adultos pediam para o pequerrucho, então com 4 anos, ficar quietinho no quarto, para que não fosse descoberto. “Sonhe, meu filho, porque que é na mente que as coisas acontecem”, a mãe aconselhava o garoto. Ele seguia a orientação à risca e descortinava, de um jeito próprio, um universo particular.
— Aprendi a representar para sobreviver — lembrou em entrevista ao GLOBO.
A incursão mais séria nas artes se deu aos 6 anos, numa radionovela da rádio Record. Ainda na infância, inspirado pelas músicas que ouvia o pai cantarolar e a mãe dedilhar ao violão, Ney formou uma banda, o Conjunto Eldorado, com amigos de escola. Durante as apresentações, o menino torcia o nariz se a plateia dançasse enquanto ele soltava a voz. Isso porque o moleque queria, afinal, todas as atenções voltadas só para si.
Fada madrinha
O salto mais significativo na carreira aconteceu após ele se mudar para a capital paulista, onde se formou na Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo, a USP. Nesse período, ao longo da década de 1960, enturmou-se com figurões do teatro, como Maria Della Costa, Flávio Rangel, Cacilda Becker e Walmor Chagas, e foi escolhido para o elenco de “Reportagem de um tempo mau”, peça de Plínio Marcos censurada pela ditadura, e que teve só uma encenação, no Teatro de Arena.
Aos trancos e barrancos, revezando-se entre pontas em novelas como “Beto Rockfeller” (1968) e “Super Plá” (1969), ambas da TV Tupi, e um breve e forçado retorno a Santos, onde trabalhou em banco e lojas de joias e roupas, Ney concluiu a faculdade.
No dia da formatura, Marília Pêra, madrinha profissional do artista, teve que repetir um juramento: “Se não conseguir emprego para Ney, vou morrer com a boca cheia de formiga”, afirmou . Dali em diante, o artista enfileirou trabalhos de destaque com diretores como Ademar Guerra, Luiz Sérgio Person e Antunes Filho. Em 1970, entrou para o elenco de coro da primeira adaptação brasileira do musical “Hair”, que projetou nomes como Sônia Braga e Antonio Fagundes. Tempos depois, substituiu Armando Bógus no papel principal e passou a estrelar a montagem.
Em 1974, fundou a trupe Royal’s Bexiga Company — com Jandira Martini, Eliana Rocha, Ester Góes e Francarlos Reis —, que levou à cena peças embebidas por uma linguagem tropicalista e pela contracultura, algo que serviu de embrião para o estilo jocoso característico do ator.
Um recorde
Ao lado de Marco Nanini, Ney cristalizou a mais longeva e bem-sucedida montagem na história do teatro brasileiro. Em temporadas consecutivas de 1986 a 1997, “O mistério de Irma Vap” arrebanhou quase três milhões de espectadores pelo país. O besteirol dirigido por Marília Pêra — em que a dupla de atores interpretava um sem-número de personagens, com trocas de figurino realizadas em três ou quatro segundos — entrou para o “Guinness” como a peça que ficou mais tempo em cartaz com o mesmo elenco. E o fenômeno teve a ajuda, por que não?, da tal estaladinha de dedos.
“Marco Nanini e Marília Pêra falavam assim para mim, na época: ‘Ney, você tem uma presença impressionante, né?’ Você está sozinho no palco e o teatro faz assim: ‘Óóó’ (com aplausos efusivos). E aí eu dizia: ‘Pois é, não sei, fazer o quê? É a vida, né’”, rememorou ele, aos risos, numa entrevista a Jô Soares, ao revelar a gaiatice combinada com o público.
Consagrado como um dos mais populares atores do país, Ney Latorraca enfileirou dezenas de outros trabalhos bem-sucedidos. A lista inclui títulos como as novelas “Escalada”, sua estreia na TV Globo (1975), “Um sonho a mais” (1985), em que interpretou cinco personagens, e “O cravo e a rosa” (2000), na qual deu vida ao ingênuo Cornélio; a minissérie “Anarquistas graças a Deus” (1984), adaptação do romance de Zélia Gattai; e os filmes “Anchieta, José do Brasil” (1977) e “O beijo no asfalto”, em que ele e Tarcísio Meira estrelaram uma das primeiras cenas de beijo entre homens registrada no cinema brasileiro.
O ator morreu na última quinta-feira (26) aos 80 anos, em decorrência de um agravamento de um câncer de próstata. Ele estava internado, há seis dias, num hospital na Zona Sul do Rio de Janeiro, e foi vítima de uma sepse pulmonar. O artista — cujo velório acontece nesta sexta-feira (27), das 10h30 às 13h30, no foyer do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em cerimônia aberta ao público — deixa o marido, o também ator Edi Botelho, com quem vivia desde 1995.