Turbulência de Gênero: quando ser mulher e estar sozinha vira um “critério operacional”

Recentemente, a atriz Ingrid Guimarães utilizou seu perfil na rede social X (antigo Twitter) para relatar um episódio constrangedor em um voo da American Airlines, com destino de Nova York ao Rio de Janeiro. Segundo o relato, a atriz foi coagida a deixar o assento que havia reservado e pago na classe Premium Economy para ceder lugar a um passageiro que enfrentava um problema técnico em sua poltrona na classe executiva.

Ingrid afirmou que não recebeu explicações claras da tripulação, apenas a imposição de que saísse do lugar. Ao se recusar, foi ameaçada por funcionários da companhia, que disseram que ela “nunca mais viajaria pela American Airlines” caso não obedecesse. Ainda mais grave: os comissários teriam anunciado no sistema de som da aeronave, na frente de todos os passageiros, que o voo estava atrasado porque uma passageira (Ingrid) “se recusava a trocar de assento”.

Um simples deslocamento de lugar se transformou em um espetáculo público de constrangimento, e o motivo alegado para a escolha da atriz — como admitido por um funcionário da própria companhia — foi o fato de ela “estar sozinha”. É a partir desse detalhe, aparentemente técnico, que emerge a discussão: ser mulher e estar desacompanhada ainda é tratado como critério operacional em pleno século 21?

O deslocamento forçado e a lógica de disponibilidade do corpo feminino: Ingrid Guimarães não é apenas uma passageira, é uma mulher pública, articulada, respeitada por seu ofício e por sua voz, e, ainda assim, não foi escutada. O episódio vivido por ela — amplamente exposto e minimizado por alguns como “exagero” ou “mimimi” — revela um problema estrutural: a autonomia feminina, sobretudo quando desacompanhada, ainda é tratada como variável secundária nos espaços públicos e institucionais.

A frase dita por um dos comissários — “ela foi escolhida porque estava sozinha” — evidencia não apenas uma prática cotidiana disfarçada de procedimento técnico, mas uma estrutura de poder que pressupõe que corpos femininos sem acompanhante são mais fáceis de deslocar, de expor e de silenciar.

A mulher sozinha, nesses contextos, não é vista como sujeito de direito pleno, mas como alguém passível de ser remanejada — sem aviso, sem consulta, sem dignidade.

O Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabelece, de forma clara, que todo consumidor tem direito à informação adequada, à escolha e à segurança na fruição de bens e serviços (art. 6º, I, II e IV). No caso de Ingrid, houve clara violação à boa-fé objetiva e à dignidade do consumidor, especialmente considerando o caráter vexatório e discriminatório da abordagem.

Mais do que uma questão contratual, estamos diante de um episódio que escancara como o gênero segue funcionando como marcador de desvantagem nas interações institucionais. O que deveria ser um problema técnico — realocado com transparência e respeito — virou um espetáculo de exposição e ameaça pública, direcionado justamente à mulher sozinha.

Em um país onde feminicídios e violências de gênero ainda se multiplicam, o simples ato de circular sozinha, de ocupar espaços públicos — de aviões a estradas — é um gesto político. A experiência da mulher viajante é, cotidianamente, marcada por dúvidas, julgamentos e riscos.

Julieta Hernández, artista venezuelana conhecida como Miss Jujuba, foi assassinada em dezembro de 2023 enquanto percorria o Brasil de bicicleta com seu espetáculo. Era mulher, migrante, artista e estava sozinha. Sua liberdade de movimento foi punida com violência. Julieta foi morta por ousar circular sem tutela — por existir em trânsito.

Sua morte não foi uma tragédia isolada, mas sintoma de uma cultura que ainda vê com desconfiança a mulher autônoma. E enquanto isso perdurar, todo caso de deslocamento forçado — físico, simbólico ou institucional — precisa ser politicamente denunciado.

A responsabilidade civil nas relações de consumo é objetiva (art. 14, CDC): não depende de culpa. Mas o caso de Ingrid exige mais do que uma reparação pecuniária. O dano que ela sofreu, e que tantas outras mulheres sofrem em silêncio, não é apenas financeiro, é estrutural.

A resposta institucional precisa reconhecer que as mulheres não são “deslocáveis por conveniência”. Elas são consumidoras com os mesmos direitos contratuais, emocionais e simbólicos que qualquer outro passageiro. E quando uma companhia aérea ou qualquer prestadora de serviços transforma a presença feminina em variável de ajuste, há não só quebra contratual, mas também reforço de um sistema de desigualdade de gênero.

“Nos tiram do lugar para nos lembrar que não temos lugar.”
— Cartaz feminista anônimo (SP, 2020)

Ingrid Guimarães representa todas as que já foram tiradas de seus lugares — no avião, na reunião, na fila de atendimento, na escuta institucional. Quando ela vocaliza esse constrangimento, rompe o pacto de silêncio que mantém o desconforto feminino invisível.

Não queremos apenas pedidos de desculpas. Queremos reconhecimento, escuta e mudança estrutural. Queremos garantir que nenhuma mulher precise provar que tem o direito de permanecer onde escolheu estar.

“Quando não somos ouvidas, não é porque não falamos. É porque nunca fomos consideradas parte da escuta.”
— Bell Hooks, in Feminism is for Everybody (2000)

Conclusão: todas a bordo — com voz, com presença, com dignidade

A turbulência que Ingrid viveu não foi causada por vento ou clima, foi gerada pela estrutura ainda tolerante ao machismo institucional. Uma estrutura que transforma mulheres desacompanhadas em alvos fáceis, e que, quando confrontada, responde com constrangimento público, ameaça e silêncio.

Mas, dessa vez, a resposta veio. E veio com força. A turbulência que importa agora é feita de denúncia, de resistência e de exigência. E sim, dessa vez, estamos todas a bordo.

Vanessa Paes

*Vanessa Paes é advogada com atuação nas áreas de Direito Penal, Direito de Família e Direito Civil. Atualmente é Procuradora Jurídica da Superintendência Municipal de Transporte e Trânsito – RBTRANS e presidente da Junta Administrativa de Recursos e Multas. Atua ainda como vice-presidente da Associação Nacional da Advocacia Criminal no Acre, é membra da Associação de Mulheres Juristas do Acre, da Associação de Mulheres de Carreiras Jurídicas e coordenadora nacional de prerrogativas do Movimento ELOS.

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