RIO –“Não fiques em casa, vai brincar, vai ler a vida”, era o que Mia Couto costumava ouvir de seu pai na infância. Também escritor, Fernando Couto ensinou ao filho que a poesia não era só um gênero literário, “era um modo de estar na vida”, diz o autor moçambicano ao GLOBO.
Ganhador do Prêmio Camões em 2013, Mia Couto é conhecido pela prosa poética de seus romances, como “Terra sonâmbula”, e contos, como os de “Estórias abensonhadas”. Mas também publicou três livros de poesia: “Raiz de orvalho” (lançado em 1983 e ampliado em 1999), “Idades cidades divindades” (2007) e “Tradutor de chuvas” (2011). Eles são a base da antologia “Poemas escolhidos” (Companhia das Letras), que traz ao leitor brasileiro, pela primeira vez, seus versos sobre a natureza, a infância, a identidade e o amor.
Convidado a participar de um documentário sobre poesia com a cantora Maria Bethânia, que deve encontrá-lo em Moçambique em outubro, Mia Couto recorda nesta entrevista como a descoberta de poetas e compositores brasileiros ampliou sua compreensão da língua portuguesa: “Não sabíamos até então que era possível cantar assim o nosso idioma. Era como ter um brinquedo na mão e descobrir tempos depois que era uma ave e podíamos voar juntos”.
“Poemas escolhidos” reúne textos publicados desde os anos 1980 até a década atual. Como se sentiu revendo sua obra poética? Que relações percebe entre os poemas mais antigos e os mais recentes?
É como se revisse e revivesse as vidas da minha vida. Não é apenas o olhar que mudou. Não se trata apenas de que o mundo agora é outro. Havia um enamoramento adolescente que ainda está vivo, mas de cuja inicial ingenuidade eu tenho uma imensa saudade. Perante poemas dos anos 1960 e 1970 eu me pergunto: fui eu que escrevi isso? Talvez a pergunta devesse ser: quem era eu nessa altura?
O senhor publicou quatro livros de poesia e mais de 20 livros de prosa. Mas sua prosa tem uma veia lírica muito expressiva. Para o senhor, qual é a diferença entre escrever um poema e um texto em prosa? Há algo que só consegue expressar por meio de um poema?
Sim. Apesar de não reconhecer fronteiras entre os dois territórios, a verdade é que elas existem. O que me dá prazer é a transgressão, a desobediência, de modo que ao fazer prosa escrevo poesia e ao escrever poesia deixo entrar a prosa. Mas reconheço que há coisas que apenas se podem dizer em verso. A forma em que me resolvi foi a seguinte: entender que há falas diversas e não existe hierarquia entre elas. Há coisas que só dizemos cantando, outras dançando, outras ficando calados. Como não sei dançar, tento fazer com que as palavras dancem por mim. A poesia fala do que não sabemos. Mas do que preserva em nós o espanto e o encantamento da infância.
Seu pai também escrevia poemas. O que aprendeu sobre poesia com ele? Quais foram suas leituras mais marcantes na infância?
A poesia era para ele não um gênero literário. Era um modo de estar na vida. Digamos que, antes de ler Manoel de Barros, eu já tinha dentro de casa (ou seria dentro de mim?) um poeta que me ensinava o valor das coisas aparentemente sem valor. Com ele li sobretudo poesia. Mas foi um pequeno livro de Juan Ramón Jiménez chamado “Platero e eu” que me mostrou quanta poesia pode haver na prosa. Os livros apenas me mostraram a poesia que estava fora deles, que estava no mundo. Era isso que ele dizia: não fiques em casa, vai brincar, vai ler a vida.
Qual foi a importância de poetas como Noémia de Sousa e José Craveirinha, que participaram das lutas de independência de Moçambique, na sua formação como escritor e como cidadão moçambicano?
Foram essenciais. Vivíamos uma condição de opressão política e de dominação colonial. A poesia era de combate, o verso era militante. Mas era sobretudo poesia. Estava para além do lado funcional e efêmero. Craveirinha e Noémia ensinaram-nos a ter uma pátria que era bem maior que aquela que os nacionalistas nos mostravam.
O senhor costuma citar diversos poetas brasileiros como referências importantes: Drummond, Cabral, Bandeira, Cecília Meireles, Manoel de Barros, entre outros. Quais foram as maiores lições que teve lendo poetas brasileiros?
Aprendi que havia uma outra musicalidade dentro da minha própria língua. Essa relação de pertença e estranheza é vital para que a dimensão poética do mundo se revele. E não foram só os poetas que foram importantes A poesia que vinha das canções de Chico Buarque, de Caetano e do Gil (só para mencionar alguns e sem esquecer Vinicius, é claro) foram uma ponte de inspiração fundamental. Não sabíamos até então que era possível cantar assim o nosso idioma. Era como ter um brinquedo na mão e descobrir tempos depois que era uma ave e podíamos voar juntos.
Maria Bethânia deve ir a Moçambique em breve gravar um documentário sobre poesia com sua participação. Como descreveria sua amizade com a cantora?
Bethânia é uma voz que me acompanha durante anos. Há coisas de que me lembro porque, no momento, era a voz dela que eu escutava. Muito do que sonhei foi deitado em canções dela. Ela não é apenas uma excepcional intérprete. Ela recria as canções que canta, ela transforma-se em compositora. E ela tem feito um imenso trabalho no contrabando entre a poesia e a canção, na migração recíproca das várias línguas portuguesas que há no nosso idioma comum.