Artigo: De volta ao inferno

A BR-163, com seus 1,8 mil quilômetros cortando a floresta amazônica entre Santarém, no Pará, e Cuiabá, em Mato Grosso, ajudaria a por fim a uma era de destruição na região. Ao invés de ser uma via de acesso a uma ocupação desordenada e predatória de áreas virgens, com a maior densidade de madeira de alto valor do mundo tropical, como a Belém-Brasília, a Transamazônica ou a BR-164 (Cuiabá-Porto Velho), o eixo dessa estrada seria o campo de manobra para a proteção das florestas do seu inimigo letal: o pioneiro com seu machado ou motosserra.

Em 1990 os sete países mais ricos do mundo se dispuseram a financiar (com meio bilhão de dólares, em valor da época), um programa piloto de proteção da floresta tropical amazônica, através do seu uso sustentável, com bases científicas e rigor técnico, além de acompanhamento em tempo real, pelo uso de tecnologia de ponta.

Mas para os que já declaravam o fim da fronteira selvagem e predatória e a nova era do desenvolvimento sustentável, que poderia levar ao desmatamento zero, um fato inédito, acontecido no dia 7, revelou uma realidade oposta. Pessoas ainda não identificadas, aproveitando-se da madrugada, atacaram uma carreta-cegonha, estacionada num posto de gasolina na localidade de Cachoeira da Serra, distrito de Altamira, no quilômetro 893 da BR-163. Atearam fogo tanto no caminhão quanto nos oito carros que ele transportava.

Por pouco o fogaréu não atingiu o próprio posto de combustíveis. A sabotagem podia ter-se tornado numa tragédia ainda maior. Não só por chegar ao posto. Os atacantes poderiam ter chegado ao segundo caminhão do comboio, que também carregava oito veículos zerados. O motorista deste outro caminhão preferiu a prudência e voltou para local distante daquele ponto.

Foi sabotagem mesmo. A primeira praticada contra o aparato estatal encarregado do meio ambiente no Brasil. Um ato criminoso anunciado. O serviço de inteligência do destinatário dos carros, o Ibama, tinha informações sobre o ânimo de um grupo de pessoas da área de impedir uma melhor fiscalização sobre o alvo da sua cobiça: as terras públicas e a floresta nativa, que o poder público devia proteger, na forma de reservas federais.

O alerta, porém, não parece ter sido suficiente para impedir o ataque, embora já houvesse antecedentes do agravamento das hostilidades contra qualquer coisa que impeça essa intensificada ofensiva sobre o patrimônio natural da nação.

No ano passado, um grupo da Polícia Federal foi tocaiado e tiroteado em São Félix do Xingu, o município que tem o maior rebanho bovino do país (inacreditáveis quatro milhões de cabeças), graças à derrubada de sua portentosa floresta. Algo simplesmente inimaginável no que era tido como o auge da violência no meio rural amazônico, seguido do seu suposto ocaso.

Ledo engano. O que houve foi o fim das categorias humanas perfeitamente identificáveis e distinguíveis por sua singularidade. Não há mais simplesmente posseiros ou peões, de um lado, grileiros, fazendeiros ou madeireiros, do outro, no rígido dualismo do catecismo pastoral da Igreja, protetora dos primeiros personagens, adversária dos segundos. Condenada a um ingênuo voluntarismo esquemático.

Hoje, os papéis sociais se embaralharam, as funções se interpenetraram, a realidade ficou complexa, multifacetada e explosiva. Principalmente por um avanço contínuo e acelerado, ainda que pouco percebido ou revelado, do crime organizado. Suas teias têm sido montadas a partir de indivíduos e situações. Ele criou uma retaguarda que, da passividade, passou à atividade, ao protagonismo, conforme o jargão acadêmico, cada vez mais refinado, cada vez com menor conteúdo de realidade.

O caos, a selvageria e a destruição amazônica não acabaram, como ainda sonham os internautas do desmatamento zero: elas pioraram. Transformaram-se em criminalidade organizada. Seu maior exemplo é justamente o que fazia o Ibama renovar sua frota sobre rodas, substituindo carros com mais de dois anos de uso por veículos novos, a rastrear o ambiente em torno da sua providência e a ser golpeado pelo ataque de madrugada. Se não houve propriamente surpresa, também a informação prévia não impediu que o dano se consumasse. O Estado ficou aquém os bandidos.

Contra ele age uma cornucópia de gente, parte dela conhecida e com sua história repetida há pelo menos meio século na Amazônia. São pessoas humildes, mas determinadas. Querem um lote para si, no qual possam trabalhar e manter a família pelo seu esforço honesto e digno. A busca pela propriedade rural as leva a aceitar qualquer aventura que possa resultar no domínio de uma área ao alcance da sua capacidade pela única forma aquisitiva que têm: o trabalho.

Hoje, grupos organizados promovem essa migração e atraem os seus aderentes com promessa de assentá-los num bom pedaço de terra. Tudo de graça, desde que estejam dispostos a defender seu torrão. Mesmo que esse lote esteja dentro de unidades de conservação do governo federal. Eles são a cabeça de ponte desse avanço belicoso e a bucha de canhão quando a pólvora explode, como aconteceu no dia 7 num território de conflagração que envolve os municípios de Altamira, Itaituba e suas extensões, como o violentíssimo distrito de Castelo dos Sonhos.

O novo capítulo de uma velha novela começou com o bloqueio da rodovia por centenas de manifestantes. O motivo declarado da manifestação é o repúdio ao veto do presidente Michel Temer às medidas provisórias 756 e 758, de 2016, que alteravam os limites da Floresta Nacional do Jamanxim, nos municípios de Novo Progresso, Itaituba e Trairão. Também querem a emancipação política de Cachoeira da Serra e Castelo dos Sonhos, hoje distritos de Altamira, e a legalização de todas as ocupações, a qualquer título.

Em passeatas, os manifestantes cobraram a promessa do governo de enviar ao Congresso um projeto de lei liberando para que sejam entregues aos produtores. E acusam a imprensa, sobretudo a rede Globo. Ela estaria mancomunada com ONGs ambientalistas, tendo por trás multinacionais e mesmo governos interessados em se apossar da Amazônia. O objetivo teria sido forçar Temer a voltar atrás e manter a proteção integral à floresta, prejudicando a economia da região.

O que os manifestantes querem é reduzir em quase metade a extensão da Floresta Nacional do Jamanxim, de 1,3 milhão de hectares. O território a ser abandado continuaria a ser usado para a extração de madeira, a implantação de fazendas e plantio de soja, com a liberação geral do desmatamento. Uma vez esgotado esse primeiro talhão, outra guerra, outra exclusão e mais desmatamento. Até que a paisagem amazônica vire sertão, na mesma progressão de sempre.

No ano passado, 12% do desmatamento, que chegou a 8 mil km2, foi praticado em áreas protegidas. Desse total, 70% das derrubadas aconteceram na Flona de Jamanxim. E os que invadem terras públicas, como não auge da ocupação da Amazônia, a partir da década de 1970, estão com o mesmo ímpeto destruidor, traduzido pelo crescimento de 50% na área desmatada em 2015 e 2016.

A Amazônia está novamente andando para trás na rota da história.

Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Committee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Leia mais aqui. Veja outros artigos do autor.

Fonte: Amazônia Real

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