Há menos de um mês, cientistas de São Paulo se reuniram em torno de um projeto de lei do governo do estado, que previa reduzir recursos estaduais para ciência ainda em 2020.
Agora, os pesquisadores se juntaram novamente por causa de outra proposta da gestão João Doria (PSDB), que pode cortar verba para ciência no ano que vem.
A bola da vez é o Projeto de Lei 627, que define as receitas e despesas do Estado para o exercício de 2021 –e que prevê queda de 30% no valor que deverá ser repassado pelo governo à Fapesp, fundação que financia pesquisa científica no estado.
Isso significa R$ 454,7 milhões a menos nos recursos disponíveis para ciência e tecnologia em instituições paulistas como universidades, institutos de pesquisa e pequenas empresas inovadoras.
Por definição da Constituição Estadual de 1989, a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) recebe 1% da receita tributária do estado –que, no próximo ano, equivaleria a cerca de R$ 1,5 bilhão.
Isso sempre foi respeitado.
O PL 627, no entanto, propõe a redução baseada na desvinculação de receitas prevista na Emenda Constitucional 93/2016. Na prática, isso derrubaria o orçamento anual da fundação para pouco mais de R$ 1 bilhão.
O texto do projeto de lei caiu como uma bomba entre os acadêmicos. “Reduzir 30% do orçamento da Fapesp significa inviabilizar qualquer nova pesquisa, inclusive relacionada à Covid-19”, disse Alicia Kowaltowski, professora do Instituto de Química da USP. “É inimaginável fazer isso em meio a uma pandemia.”
A questão é que o que acontece com a Fapesp afeta a ciência nacional como um todo.
Isso porque as universidades públicas paulistas (estaduais e federais) são responsáveis por quase metade da produção cientifica brasileira, recentemente direcionada a temas ligados à pandemia.
Boa parte dessas pesquisas é financiada pela Fapesp.
Há trabalhos importantes, por exemplo, que se dedicam a compreender o novo coronavírus, a desenvolver testes diagnósticos e a buscar soluções urgentes para acabar com a pandemia, como o desenvolvimento de vacinas e de medicamentos.
“Somos o que somos em São Paulo porque investimos há décadas em ciência, tecnologia e inovação”, diz a biomédica Helena Nader, presidente emérita da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência).
Justamente no mês de outubro, a Fapesp completa sessenta anos.
O PL 627 levou representantes das seis universidades estaduais e federais paulistas a se juntarem em uma “live de apoio à Fapesp”, na última sexta (23), no canal do YouTube da pró-reitoria de pós-graduação da USP.
Alguns cientistas aproveitaram para explicar os trabalhos científicos que estão sendo conduzidos.
O evento teve cara de “déjá vu”: menos de um mês antes, pesquisadores ocuparam o mesmo canal para tratar de outra proposta também de autoria do governo paulista, o PL 529.
Um dos artigos desse projeto de lei tinha como alvo a mesma Fapesp e, também, as universidades estaduais paulistas. Previa recolhimento de superávit financeiro dessas instituições – as “sobras” de recursos no fim do ano usadas para o financiamento de projetos de pesquisa científica de longo prazo. A proposta acabou ficando de fora do texto.
Assim como foi feito na reação ao PL 529, os cientistas paulistas organizaram um abaixo-assinado contra o novo projeto de lei. Novamente, a iniciativa foi encabeçada pela Aciesp (Academia de Ciências do Estado de São Paulo).
Na sexta (23), o documento já contabilizava cerca de 15 mil assinaturas.
Somados, os cortes previstos pelos dois projetos de lei –o que foi modificado e o que está em tramitação– poderiam levar a uma facada de cerca de R$ 900 milhões nos recursos da Fapesp.
“Qual a organização sobrevive a um desmonte dessa magnitude?”, questiona o diretor-científico da Fapesp, Luís Eugênio Mello.
Hoje, a Fapesp fomenta ciência por meio de bolsas (uma espécie de “salário” pago a pesquisadores, por exemplo, de pós-graduação) e de auxílios por meio de diferentes programas.
Uma análise de um deles, voltado à pesquisa em pequenas empresas, mostrou que cada real investido retorna seis reais à sociedade.
“Cada pequena empresa inovadora fomentada pela Fapesp é capaz de gerar duas vezes mais empregos qualificados que a média de empresas semelhantes”, diz Sérgio Salles-Filho, diretor do Instituto de Geociências da Unicamp e um dos responsáveis por uma avaliação recente do programa.
O PL 627 tramita na Assembleia Legislativa e já recebeu sugestões de mudança de deputados estaduais. Como orça a receita e fixa a despesa do estado para 2021, será votado ainda neste ano.
Em nota, a assessoria de imprensa do governo disse que “à ciência não faltarão recursos, já que tem superávits e nem mesmo o orçamento de 2020 foi utilizado. Até julho, dos R$ 1,4 bilhão destinados, somente R$ 400 milhões foram usados.”
A nota também reforça ainda que a Emenda Constitucional 93/2016 permite a desvinculação de 30% das receitas de fundos e fundações da União e de Estados (como a Fapesp). Esse entendimento, no entanto, é controverso.
O repasse constitucional de 1% das receitas estaduais tributárias à Fapesp é entendido por juristas como “destinação” de recursos e não “vinculação”.
O primeiro caso se refere à separação de uma parcela de receitas gerais para um órgão. Já o segundo diz respeito à criação de um elo jurídico entre uma receita e uma despesa predeterminada.
“Não se pode, portanto, utilizar a Emenda Constitucional relativa à vinculação de receitas para cortar 30% do orçamento da Fapesp porque não de trata de desvinculação de receita”, diz Nina Ranieri, da Faculdade de Direito da USP –uma das maiores especialistas em autonomia universitária do país.
Esse foi, inclusive, o entendimento do Supremo Tribunal Federal em julgamento, no início do ano, de ação contra decreto que propôs desvincular 30% do orçamento da fundação que financia pesquisa científica no Rio, a Faperj.
No Estado fluminense, o governo deve destinar 2% da receita tributária para o fomento à ciência.