Queimadas no Pantanal e Covid-19 potencializam tragédia no Norte e Centro-Oeste

Cuiabá registrava, no final de dezembro, 918 casos de síndrome respiratória aguda (SRAG) por 100 mil habitantes, mais de duas vezes a média da região, tornando-se a capital da Amazônia Legal com a maior taxa do problema em 2020.

Em 18 de janeiro, a cidade de 612 mil habitantes já tinha mais de 44 mil casos confirmados de Covid-19 e mais de 1.250 óbitos, tragédia diária que permanece no cotidiano da população há quase um ano.

Por lá, a sobreposição da pandemia de Covid-19 e a densa fumaça das queimadas do desmatamento – problema anual crônico na cidade – causaram sintomas que confundiram seus habitantes e os profissionais de saúde.

Luciano Barco, de 39 anos, relata a experiência que sofreu ao descobrir o diagnóstico de Covid-19 no dia 29 de junho e ver seu quadro piorar muito ao longo do mês de julho do ano passado. No mesmo período, Cuiabá já estava debaixo de uma densa fumaça trazida pelo início das queimadas no Pantanal e em regiões do cerrado e parte da Amazônia Legal brasileira.

“Estava muito difícil respirar aqui perto de Cuiabá, as queimadas estavam no auge, a fumaça estava bem densa, então posso afirmar que as queimadas tiveram um impacto no meu quadro. Nos primeiros 15 dias em isolamento, meu pulmão foi de 15% de acometimento a 70% de acometimento por Covid-19”, conta o professor de tecnologia na Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat).

Em meados de julho, Barco, que trabalha também na Superintendência de Tecnologia de Informação da Secretaria de Saúde do Mato Grosso, ficou internado por sete dias e a oxigenação de seu organismo chegou a 89% – em condições normais, o número deve ficar entre 95% e 100%. “Houve uma evolução drástica do vírus no meu organismo, mesmo eu tomando todos os cuidados”, relembra.

Ao mesmo tempo, a esposa e a filha do professor chegaram a ter muita dificuldade para respirar por conta do cheiro e da ardência da fumaça na capital mato-grossense – as duas também testaram positivo para o coronavírus. “Sempre teve fumaça em Cuiabá, seja pelas queimadas no Pantanal ou na Chapada dos Guimarães, porque estamos em uma depressão geológica. Mas nunca foi tão denso e duradouro”, explica Barco, que até hoje tem cerca de 10% dos pulmões inflamados.

Com diversos artigos publicados sobre o assunto, o professor do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Ageo Mário Cândido da Silva pesquisa há pelo menos uma década o efeito das partículas de queima de floresta na saúde respiratória da população amazônica. Com o início da pandemia que afeta principalmente o sistema respiratório, ele já previa que a sobreposição de coronavírus e queimadas poderia ser desastrosa.

“Cuiabá ficou quase um mês debaixo de fumaça. É um efeito atmosférico que pega todo mundo de uma maneira ou outra, mas principalmente quem já sofre com doença pulmonar crônica, asma, rinite sofreu bastante nesse período”, diz.

O pesquisador afirma que o aumento de internações por doenças respiratórias em geral no estado é sazonal e depende da intensidade da fumaça. Em 2020 não foi diferente. Os serviços de saúde do Mato Grosso atenderam números maiores de pacientes com doenças respiratórias durante o período de queimadas no estado. “Podemos supor que esse efeito pode ter sido de interação da gravidade da Covid e da gravidade das partículas presentes no ar, então supomos, sim, esse agravamento dos quadros de Covid-19”, afirma.

“As pessoas com Covid-19 que atendi pioraram com a fumaça”, diz médico

Também no Mato Grosso, a cidade de Rondonópolis sofreu com os efeitos das queimadas. O médico Kléber Julio Amorim da Silva já trabalhou em todas as pontas da rede assistencial do município e desde o início da pandemia trabalha na linha de frente do combate à Covid-19. “Atendo de mil a 2 mil pessoas por mês e com certeza todas as pessoas que atendi e tiveram Covid-19 tiveram o quadro agravado pela fumaça nesse período. Isso porque a Covid já gera uma lesão pulmonar, um quadro respiratório que piora muito com a fumaça”, afirma.

No final de dezembro, o município registrava 547,5 casos de SRAG por 100 mil habitantes, acima da média da Amazônia Legal. Com 232 mil habitantes, a cidade registrava, em 18 de janeiro, mais de 13 mil casos de Covid-19, com 481 óbitos.

Rondonópolis é a segunda maior economia do Mato Grosso, e sua produção é baseada no agronegócio – soja, algodão e gado. Além da fumaça que vem de longe, o município sofreu com queimadas na sua própria zona rural – com dois focos que atingiram a Terra Indígena Tadarimana, do povo Bororó.

De acordo com o médico, o avanço do agronegócio tem favorecido progressivamente a devastação do meio ambiente pelo fogo. “Todos os anos, em períodos de queimadas, temos um aumento muito grande de hospitalizações por doenças respiratórias, principalmente entre crianças e idosos. Mas dessa vez, na chegada ao hospital, a gente tinha que tentar entender se o sintoma era relacionado à fumaça ou à Covid-19”, explica.

O médico conta que durante o período de queimadas a temperatura em Rondonópolis chegou a bater nos 50 ºC. A condição climática extrema, segundo Kléber, fez com que as pessoas demorassem mais para procurar o hospital quando estavam infectadas com coronavírus, acreditando estar apenas reagindo ao clima: “Com sintomas também trazidos pela fumaça, como coriza, tosse e até uma evolução para falta de ar grave, uma dispneia”, conclui.

De acordo com o também médico Daniel Pires, além do adoecimento agudo, a presença constante da fumaça vinda da queima de biomassa pode levar ao desenvolvimento de doenças a longo prazo, principalmente o câncer. “A exposição à fumaça a longo prazo pode causar também outros problemas crônicos graves”, resume Pires, como bronquite, agravamento de asma e outras doenças pulmonares, além da exacerbação de doenças cardiovasculares, como insuficiência cardíaca.

Em 2020, Cuiabá foi a região da Amazônia Legal com mais registros de SRAG: 918 casos por 100 mil habitantes

 

Mato Grosso lidera casos de SRAG na Amazônia Legal
Segundo levantamento da Pública , a partir da plataforma Sivep-Gripe, do Ministério da Saúde, o Mato Grosso foi o estado da Amazônia Legal com a maior incidência de SRAG ao longo de 2020.

Até o final de dezembro, eram 749,6 casos por 100 mil habitantes, sendo a média na região cerca de 406 casos por 100 mil habitantes – crescimento de 184% em relação à média. Além disso, das dez cidades da Amazônia Legal com maior incidência de SRAG, oito estão localizadas no Mato Grosso.

Mas, apesar de liderar o número de registros de SRAG, o Mato Grosso é somente o quinto estado com maior incidência de Covid-19, entre os nove da Amazônia Legal, segundo dados disponíveis no Painel Coronavírus do Ministério da Saúde. Em 18 de janeiro, o estado registrava 5.712 casos de Covid-19 a cada 100 mil habitantes, abaixo de Roraima, Amapá, Rondônia e Tocantins.

Questionada sobre a diferença nos dados, a Secretaria de Saúde (SES) do Mato Grosso não se pronunciou até a publicação.

O estado também teve o segundo maior número total de focos de queimada na Amazônia Legal, com 20.648 registros até o final de dezembro. Proporcionalmente à área, o Mato Grosso teve a quarta maior incidência de focos de incêndio entre os estados da Amazônia Legal.

“Não conseguia ver minha mão de tanta fumaça”

Canarana, a 630 km de Cuiabá, registrou cerca de 598 casos de SRAG por 100 mil habitantes no ano passado, 147% acima da média da Amazônia Legal no mesmo período

. No município, que tem 52% do seu território na Amazônia e outros 48% no cerrado, as queimadas tiveram um primeiro pico entre março e abril e um segundo em agosto, com os efeitos das queimadas visíveis a olho nu pelos moradores.

“De manhã eu andava e estendia o braço e não conseguia ver minha mão de tanta fumaça. A cidade ficava totalmente tomada pela fumaça”, conta Ludmila Rattis, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).

“Canarana amanhece como São Paulo amanheceu naquele dia de agosto de 2019. Todo ano tem aquilo. Só que não vira notícia porque Canarana tem 20 mil habitantes e fica no Mato Grosso”, diz.

Em março do ano passado, quando a pandemia estourava no país, ela acabara de chegar à cidade para um período de pesquisas.

“Quando a pandemia começou, Canarana não tinha leito de UTI, não tinha nenhum respirador. O único meio de tratar pessoas graves era saindo de lá de avião e indo para Cuiabá ou Goiânia”, relata. Com cerca de 21,5 mil habitantes, o município tinha 1.155 casos confirmados de Covid-19, segundo o boletim epidemiológico da prefeitura de 18 de janeiro.

Pará: “Todo ano a gente só espera a fumaça”
Em meados de agosto passado, os profissionais de saúde da Unidade de Saúde da Família (USF) Carlos Barreto, no bairro de Morada Nova, em Marabá, no Pará, saíram às ruas procurando idosos de casa em casa para tentar convencê-los a deixar o local por um tempo. O município amazônico no sudeste do estado paraense enfrentava a Covid-19 quando começou a temporada de queimadas na região.

Afastado do centro, Morada Nova foi atingido por uma nuvem de fumaça, que agravou o quadro de saúde respiratória dos seus moradores. É o que contou à reportagem a enfermeira Betânia Nunes da Silva, que há 20 anos trabalha na Carlos Barreto. Naquela manhã, quando ela deixou a proteção dos consultórios da unidade em busca de pessoas no grupo de risco da pandemia, acabou prejudicando a própria saúde. “No dia do pico da fumaça, quando estava fazendo as visitas domiciliares, tive a ressintomatologia”, ou seja, passou a sentir sintomas parecidos de quando estava com Covid-19.

Betânia, conhecida como Beta, foi infectada pelo coronavírus em maio. Cardiopata e com problemas renais, ela chegou a ser internada para receber oxigênio – insumo que atualmente está em falta em regiões do Pará e do Amazonas.

Betânia passou 39 dias afastada do trabalho. Em agosto, voltou a sentir “sintomas muito parecidos com a Covid-19”, apesar de nunca ter tido crises respiratórias durante a anual época de fumaça das queimadas. “Com a Covid-19 a gente fica fragilizado, as plaquetas descem e demoramos a voltar ao normal. Ficamos ofegantes por 60, 90 dias. Vimos que com essa fragilidade ficamos muito mais suscetíveis às crises respiratórias”, explica.

De acordo com ela, os profissionais de saúde de Marabá perceberam uma alta procura dos serviços de saúde durante as queimadas. “A gente entendeu que muita gente que teve Covid-19, que já tava saindo da linha vermelha, voltou com sintomas novamente, principalmente tosse.” Um dos casos mais preocupantes que a enfermeira acompanha até hoje é o de uma menina de 7 anos que ficou internada em junho diagnosticada com o coronavírus. Ela já havia melhorado quando chegou a fumaça.

“Em agosto ela teve que ser entubada, bem na semana da pior fumaça. Ficou mais nove dias internada”, diz. A enfermeira conta que exames identificaram a presença de partículas de fumaça na região pulmonar. A criança, que não tinha nenhuma comorbidade conhecida, ainda carrega uma rouquidão como sequela da doença. “Para nós, ficou como certeza que a fumaça foi muito favorável para que as pessoas com Covid-19 piorassem o quadro clínico”, diz.

Segundo Betânia, após a pior semana de fumaça, houve superlotação de sua unidade, que foi ocupada principalmente com crianças precisando fazer inalação. Ela conta que as queimadas fazem o posto aumentar em média 30% o atendimento de crianças, idosos e gestantes. “Infelizmente, já estamos acostumados a trabalhar com as consequências das queimadas na nossa região. Mas dessa vez os médicos tiveram dificuldade de entender se era Covid-19 ou apenas sintomas da fumaça”, conclui.

Mesmo para as pessoas não diagnosticadas com a Covid-19, o período em que o município ficou debaixo de fumaça causou preocupação. Foi o caso da estudante de história Tifhanny Flor de Lua, de 21 anos, que perdeu as contas das ocasiões em que chegou a ficar em dúvida se estava infectada com o coronavírus ou apenas reagindo à fumaça.

“De uma forma geral, como a gente passou mais de um mês com os efeitos da fumaça, isso abala o corpo humano. Nos primeiros momentos vem um calor absurdo, você fica ofegante com facilidade. Às vezes eu ficava cansada só de subir a escada para o meu quarto, chegava sem ar, me sentia sufocada”, lembra Tifhanny.

Os sintomas não foram sentidos apenas pela jovem. “Eu e meu namorado começamos a ter muita dor de cabeça, algo que nunca sinto. Minhas veias na testa pareciam inchadas, pulsando. Os colegas da universidade comentaram com frequência que só de varrer a casa estavam indispostos.”

Tanto Tifhanny quanto Betânia sabem que a fumaça que chega em Marabá vem do fogo provocado pelos grandes produtores do agronegócio e pelo desmatamento na região. “Todo ano a gente só espera a fumaça, no verão amazônico, auge do calor. Marabá é uma das regiões mais desmatadas, mais destruídas. Aqui você só vê chão e boi andando”, afirma a estudante de história, que vive no município há 15 anos.

Ter a saúde afetada por fumaça é algo que acompanha a história da jovem. Ela nasceu e passou a primeira infância em outro município amazônico afetado pela economia extrativista: Açailândia, no Maranhão. A região é palco das polêmicas usinas de ferro-gusa, que também marcaram o corpo de Tifhanny. “Eu sou de uma comunidade muito conhecida por lá, Piquiá de Baixo, um lugar afetado pela siderurgia, por um derretimento muito tóxico”, conta.

Aos 3 anos de idade, a jovem ficou internada por seis meses após ter desenvolvido uma pneumonia aguda e asma alérgica relacionada à fumaça do ferro-gusa. “Lá muita gente tem problemas respiratórios. A conversão de pó e barras de minério pelos fornos gera uma poluição que deixa os telhados das casas escurecidos, o chão da cidade marrom”, conta.

Ela recorda que na infância tinham que colocar uma lona entre as telhas e a estrutura da casa para barrar parte das cinzas que entravam os cômodos. “Então era algo muito visível, imagina para respirar. Em Marabá há outras problemáticas. Tem a fumaça da queimada de pasto, que é escura, vem com fagulhas de capim e passa mais rápido, e a fumaça de queima de mata, que é branca, mais densa, e perdura por dias no horizonte. O cheiro é diferente também, porém todo ano elas vêm.”

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