A 285 quilômetros da capital, Araraquara foi uma das primeiras cidades paulistas a sofrer um colapso no sistema de saúde em 2021.
A partir da segunda semana de fevereiro, o número de casos subiu vertiginosamente e as enfermarias e unidades de terapia intensiva (UTI) atingiram lotação máxima.
Desde a última sexta-feira (05/03), porém, apareceram os primeiros indícios (ainda bem tímidos) de alívio na pandemia por lá.
O número de novos casos de covid-19 diagnosticados caiu pela metade, apesar de a taxa de internações e mortes ainda estar em alta.
Mas o que o município fez de diferente do resto do Brasil? E o que pode servir de aprendizado da experiência em curso no interior de São Paulo?
A equação do caos
O relaxamento das medidas de prevenção, como o distanciamento social, o uso de máscara e a lavagem das mãos, foi o principal motivo para a pandemia voltar a piorar em Araraquara (assim como no Brasil todo).
Esse cansaço após um ano de controle veio a reboque das aglomerações de final de ano, motivadas por uma sequência de eventos, como as eleições municipais, o Natal e o Ano Novo.
Para ter ideia, no final de 2020 e início de 2021, cerca de 25% dos exames para detectar covid-19 realizados neste município paulista voltavam com resultado positivo. A partir de fevereiro, essa taxa ultrapassou os 50%.
Enquanto os casos subiam de forma preocupante, uma parceria entre a prefeitura local e o Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo descobriu um terceiro fator que ajudava a explicar o cenário, cada vez mais complicado.
“Nós identificamos que mais de 90% de todas as amostras de pacientes infectados que foram analisadas neste estudo eram causadas pela variante P.1 do coronavírus, que havia sido detectada pela primeira vez em Manaus”, relembra a enfermeira Eliana Mori Honain, secretária municipal de saúde de Araraquara.
Pelo que se sabe até o momento, essa nova variante é bem mais infecciosa que as versões anteriores, o que ajuda a explicar em parte a subida nos números de acometidos pela enfermidade.
“De uns tempos para cá, passamos a observar a chegada de pacientes mais jovens, com quadros mais graves e que necessitam ficar mais tempo internados”, percebe a infectologista Ana Rachel Seni Rodrigues, que trabalha e dá plantão em vários hospitais de Araraquara.
A partir da segunda semana de fevereiro, as enfermarias e as UTIs da cidade ficaram absolutamente lotadas.
Por consequência, houve um aumento considerável no número de mortes — a cidade contabiliza até dia 10 de março um total de 264 óbitos por covid-19, sendo que 65% deles foram registrados nos primeiros meses de 2021.
“Nós vivemos no limite e foi muito estressante lidar com a falta de leitos e providenciar soluções de uma hora para a outra”, admite Rodrigues.
‘Remédio amargo’
Sem meios de mitigar a crise sanitária, a prefeitura não teve outra saída e precisou decretar medidas bastante drásticas.
“Fizemos um lockdown de verdade, diferente do que acontece na maioria dos lugares do país”, diz Honain, que também é professora do curso de medicina da Universidade de Araraquara.
A partir de 20 de fevereiro, todos os serviços que não tinham a ver com a área da saúde foram suspensos, incluindo o transporte público e os supermercados (que só podiam funcionar pelo sistema de delivery).
“Parecia uma cidade fantasma, dava até medo”, relata a fonoaudióloga Francine Broggio, do Centro Especializado em Reabilitação de Araraquara.
A especialista, que trabalha no serviço de saúde pública há 13 anos, admite que havia um temor geral em se infectar e não encontrar uma vaga disponível nos hospitais.
“Também existia uma fiscalização muito pesada e as poucas pessoas que estavam na rua sem necessidade eram orientadas e até multadas”, completa.
É claro que o período de maior endurecimento motivou protestos, especialmente das associações de comerciantes, que foram muito prejudicadas pela proibição das atividades.
“Até ocorreram manifestações e carreatas, mas elas não reuniram mais que 20 carros. Tentamos dialogar com todos os setores, mostrar os números e explicar os motivos de nossas decisões”, justifica Honain.
“Sabemos que o lockdown é um remédio amargo, mas na nossa atual conjuntura trata-se da única medida cientificamente comprovada capaz de trazer algum resultado”, completa a enfermeira.
Uma melhora ainda tímida
O fechamento total de Araraquara durou pouco mais de uma semana. Na sequência, a cidade se encaixou na “fase vermelha”, definida pelo Governo do Estado de São Paulo no início de março.
O decreto do governador João Dória, ainda em vigor, criou o “toque de restrição”, que limita a circulação de pessoas entre às 20h e às 5h da manhã, e estabeleceu uma longa lista de exceções para alguns serviços não essenciais continuarem a funcionar.
“Por aqui, mercados, açougues e padarias voltaram a abrir recentemente, mas continuamos a restringir cultos em igrejas e templos e as aulas nas escolas”, descreve Honain.
Como resultado dessa política, Araraquara começa a apresentar uma queda no número de novos casos de covid-19 nos últimos cinco dias.
“Até 5 de março, tínhamos entre 180 e 200 novos infectados por dia. Agora, essa média baixou para 60 a 85”, calcula a secretária de saúde.
Apesar do avanço, as taxas de hospitalização continuam altas e preocupantes: 79% dos leitos de enfermaria e 91% das UTIs estão ocupados no momento.
Honain acredita que esses números (que já baixaram um pouco desde o nível mais crítico do colapso) vão apresentar uma queda maior a partir das próximas semanas.
“Pela evolução natural da doença, sabemos que os sintomas se agravam e requerem assistência a partir do oitavo ou nono dia de infecção. Portanto, com menos gente com exames positivos agora, observaremos em breve uma baixa nas internações mais pra frente” raciocina.
O que o futuro reserva
Por mais que as observações em Araraquara representem uma boa notícia, elas ainda são bastante iniciais e não sinalizam de maneira alguma um encerramento da pandemia ou uma “imunidade de rebanho” pelo contato direto com o vírus.
“Se nas próximas semanas percebermos um aumento considerável no número de novos casos e a taxa de ocupação hospitalar estiver acima dos 85%, vamos tomar medidas mais drásticas de novo”, afirma Honain.
E, mesmo com os avanços recentes, os gestores de saúde do município no interior paulista sabem que o caminho para acabar com a pandemia passa necessariamente pelas campanhas de vacinação contra a covid-19.
“Enquanto não tivermos mais de 70% da população imunizada, e por ora estamos bem longe disso, o lockdown é a medida disponível que dá resultados”, diz Honain.
“Afinal, é melhor fechar as atividades a abrir novas covas”, completa.