O “Eterno Meio Dia” de Cecília Beraba

Aos 30 anos de idade, a “Tijucana”, também carioca da Usina, de família mineira misturada com “Carioca”, uma “mineiroca”, portanto – é um desses seres que já nasceu artista. Um desses seres que, antes ou imediatamente após se perceber no mundo, já sabia o que iria fazer nele e na própria vida. Cantar, criar, acontecer…

No caso de Cecília Beraba, nossa personagem na entrevista a seguir, quase simultaneamente ao vir ao mundo, ela já sabia que seria cantora. E que cantora! Voz aguda, firme, ténue e forte, ela também compõe e, para usar uma frase de lugar comum, é dessas que também cantam e encantam.

E, como quem tivesse vindo com sua alma já acompanhada, ela juntou-se, faz pelo menos cinco anos, a ninguém menos que o lendário Jorge Mautner, judeu austríaco nascido no Brasil logo após a chegada de seus pais ao país na fuga do holocausto da Segunda Guerra Mundial.

Do alto de seus 80 anos de idade, 50 a mais que Cecília, Jorge Mautner parece ter voltado aos tempos em que escreveu seu primeiro livro, “Deus da chuva e da morte”, aos 15 anos de idade. O livro foi publicado em 1962 e compõe, com Kaos (1964) e Narciso em tarde cinza (1966), a trilogia hoje conhecida como Mitologia do Kaos.

Jorge Mautner e Cecília Beraba

O garoto que publicou aos 15 anos, não parou mais. E não só na literatura. Escreveu músicas e fez parcerias com praticamente todos os grandes nomes da música do Brasil – como com Caetano Veloso, Maracatu Atômico (Gilberto Gil e Chico Science & Nação Zumbi), Lágrimas negras (Gal Costa), Samba dos animas (Lulu Santos) Rock Comendo Cereja e Samba Jambo com (Jonge), para ficar só entre os mais populares.

Mas, faz cinco anos, encontrou-se com Cecília Beraba. E, como sempre acontece a sua volta, o encontro resultou em arte, na obra musical “Eterno Meio-dia”, nome de uma música cujos versos retratam bem esses dias de horror e de pandemia, nos quais, mesmo em meio a tanta dor, é preciso haver poesia.

E ela chega na bela voz de Cecília Beraba. A seguir, os principais trechos de uma entrevista da cantora sobre sua obra e a parceria com o poeta, escritor e tantas outras coisas Jorge Mautner.

Quando você se descobriu artista e cantora?

Cecília Beraba – Na primeira memória que tenho de mim mesma já queria ser cantora. Desde menina, dentro de mim, guardei esse sonho, como quem guarda um tesouro, uma estrela guia. Mas se quer uma marco, penso que foi quando comecei a fazer aula de canto, com 8 anos.

Como se define. Qual seu estilo musical?

Me defino como uma compositora e cantora de Música Popular Brasileira.

 

Poético, o “Eterno Meio Dia” quer dizer o que, concretamente falando?

Retirei essa expressão da última parte da letra de “Sagrada é a Família”, 11ª faixa do disco. Nela Jorge diz que “todos os entes queridos que foram embora / Estão unidos, batucando agora, juntos / Sambas de alegria, carinho e amor / Cantando no calor do ardor / Do sol de eterno meio-dia”. Então, “Eterno Meio-dia” é para mim uma espécie de campos Elísios, um Orun. Antes de o Sol ter a simbologia numinosa apolínea que trata da razão, do masculino, para os antigos, havia uma forte conexão entre o sol e os ritos de passagem, como um psicopompo, era uma ponte para o mundo dos mortos.

“Me defino como uma compositora e cantora de MPB”

Como está sendo lançar um disco em plena pandemia do coronavirus?

Lançar um disco em um momento de tamanha crise, tamanha tragédia humana, é muito delicado. Quis que ele trouxesse toda a dor de saudade, a reverência aos que se foram, ao mesmo tempo que buscasse nesse amor, nesse grande coração coletivo partido, força para seguirmos não só sobrevivendo, mas vivendo. Honrando essa saudade, tentando construir com “fé no amor, fé no futuro e fé na humanidade”, como bem escrever Jorge em seu primeiro livro, uma sociedade compromissada com ela mesma, um amanhã melhor para se existir.

Como e quando conheceu o Jorge Mautner?

Jorge é meu grande ídolo. Quando já havia lido tudo o que ele escreveu, de trás pra frente, de frente pra trás, tocava a maior parte de sua obra e fazia shows com esse repertório, resolvi tomar coragem e convidá-lo para uma participação em uma canção que eu estava gravando na época. Jorge é muito generoso, muito acessível. Cheguei mais cedo em um show dele, com o disco “árvore da Vida” embaixo do braço, na fé de que ele autografasse. O encontrei sentadinho esperando a hora de entrar, me agachei ao seu lado, falei de minha admiração e fiz o convite. Ele pediu que eu mandasse o material por email, eu o fiz. Ele respondeu me convidando para uma conversa em sua casa, eu fui e ali tivemos uma conversa de grande afinação energética. Quando acabamos de falar ele me disse: “As estrelas te mandaram. Daqui até o fim de minha vida nos encontraremos pelo menos uma vez por semana para que eu vá te passando o que acho importante e depois, quando eu morrer, eu volto para te assombrar”. “Mais” eu redargui rindo. Ele buscou um livro, o primeiro que queria que eu começasse a ler imediatamente, me passou uma lista com mais uns três para que eu buscasse antes do nosso próximo encontro semanal e nos despedimos.

Assim foi e assim tem sido nos últimos cinco anos. No mínimo uma vez por semana nos vemos, todos os dias nos falamos, sempre produzindo; músicas, textos… Um grande privilégio o meu.

Como é ter um parceiro nascido quase um século antes do seu?

Calma! Meio século… hahaha.. ele é de 41 e eu, de 90. É maravilhoso. Nos nutrimos de forma complementar. Um “encontro no presente mais que perfeito” como outro dia ele brincou. A amizade e o fascínio poético são atemporais, transculturais, sabe Tião? Fizemos um show certa vez aqui no Rio, que Jorge deu o seguinte título: “A música une aquilo que o tempo tão rigidamente separou”, parafraseando um pedaço de “Ode à Alegria”, poema do Schiller que se encontra na 9ª sinfonia de Bethoven. É isso.

Como define a poesia dele?

Uma poesia de quem se deixa ser com muita coragem e alegria. Poesia de liberdade existencial, de máxima doçura, rascante fúria. Ironia, bom humor, pureza, zero inocência e bastante consciência social. Para usar termos “Mautnerianos”, uma amalgama de paixões humanas, revirando em simultaneidade através de palavras impactantes que se desenrolam em um ritmo muito singular.

Você conhece a Amazônia?

Menos do que gostaria. Fui duas vezes ao Pará, Marajó, estive no Amapá, Macapá e na atordoante Serra do Navio. No Amazonas pude conhecer as Anavilhanas e, recentemente, Manaus, lugar que flechou meu coração e onde fiz grandes amigos. Pensando em Amazônia legal, pude conhecer Tocantins e Maranhão também. Todos lugares encantados, que me sinto muito privilegiada por ter podido ir.

Tenho um sonho muito forte de poder voltar muitas vezes nesse lugares e em outros que ainda não tive a oportunidade de conhecer, como seu iluminado Acre.

O que pensa do Brasil dos dias atuais?

Penso que para quem, como eu, sempre achou que nascer poeta no Brasil é ganhar na loto, está mais difícil do que nunca manter um olhar de fascínio apaixonado por esse pais continente que tem tudo para ser a tal da “terra sem males” tão buscada.

Ao mesmo tempo, sou uma pessoa de laços e histórias. Esse é meu alimento e meu encantamento.

Por isso acho que ai mesmo, na raiz de nossos problemas, está também o unguento, a cura, nossa redenção.

O povo brasileiro, com toda sua fúria e paixão atordoante, como um veneno, pode transmutar seus horrores por conta dessa mesma capacidade de entrega e mergulho desenfreado. Precisamos agora de comida, igualdade social, literatura para todos, educação e a maior exigência de todas, que Jorge Mautner expressa com cintilante clareza e acho inclusive que foi o que mais me atraiu a ele, que a urgente necessidade da “segunda e a real, abolição da escravatura nacional”.

Assim, num salto, transmutaremos o medo e a fúria em consideração e consciência social e ambiental.

Como é ser artista e lançar uma obra em plena pandemia?

Ser artista independente nesse momento de terra arrasada da indústria é ao mesmo tempo muito difícil e muito promissor. Explico; Eu não consigo viver da música, trabalho como autônoma para viver, mas sinto que agora que não existe mais nada do mercado como conhecíamos no passado – esse mercado antiético, injusto com o público e com artistas – poderemos construir algo mais horizontal, mais decentralizado. Ainda não está acontecendo.

Só poucos conseguem investir (e é muito investimento) em algo que não dá retorno, só pela força da sina ou utopia de futuro. Não estou tratando aqui, claro, dos artistas de mainstream. Produto é produto. Dá dinheiro sempre, é feito pra isso. Falo sobre a canção popular independente.

Talvez eu esteja sendo demasiadamente otimista, mas acredito que com muito cuidado, inteligência e entrega, poderemos levantar algo novo em breve.

A pandemia ampliou toda essa estrutura ruída. Os péssimos salários de músicos, técnicos, péssimos repasses. Toda classe mantida sempre por um fio.

Meia dúzia de artistas e produtores ganhando milhões enquanto 90% da classe artística tem que correr atras do cachê do dia para comer naquele mesmo dia e pagar aluguel daquele mês. A faca sempre no pescoço.

E nada disso acontece por disparidade de talento ou qualidade musical. É o habito da ganancia e vaidade e só.

Agora temos que descobrir como ser tudo. No meu caso, eu compus, cantei, paguei, produzi, cuidei de toda a burocracia, divulgação, e preciso agora gravar show com equipe mínima para poder irradiar, preciso também aprender a mexer com as redes sociais, coisa que pra mim tem sido um grande desafio. Gerar conteúdo diário de internet, comunicar, trabalhar no que me da sustento, tocar, montar os projetos que um lançamento de disco exige, cuidar da vida, da casa e existir no Brasil de hoje, tudo ao mesmo tempo, não é simples. Mas acho que ser artista nunca foi simples. E faço com muito amor. Sempre quis ser artista, ser cantora. Realizo o sonho de trabalhar com meu grande ídolo. Vivo como poeta no pais mais poético do mundo. Não posso reclamar, só posso me dedicar a tentar contribuir para que meu ofício e meus colegas de trabalho não sucumbam nesse momento de desmoronamento.

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