A comparação entre a postura da Polícia Militar nos protestos do último sábado, contra Bolsonaro, e na manifestação do final de semana anterior, a favor do presidente, traz um alerta preocupante para as eleições de 2022: o de que o bolsonarismo enraizado nas polícias e a insubordinação contra governadores de oposição ao presidente possa provocar ainda mais conflitos num ambiente político já polarizado e conflagrado.
Na motociata a favor de Bolsonaro, no Rio de Janeiro, havia mais de mil policiais militares, mas a única pessoa agredida foi um jornalista – e pelos próprios manifestantes, hostis à presença da imprensa.
No ato em Recife, a escaramuça começou sem motivo aparente, e foi desencadeada pela própria PM – contra a orientação do chefe da polícia, o governador Paulo Câmara (PSB), que recomendava apenas acompanhar a manifestação e evitar excessos.
Imagens registradas pelos manifestantes mostram que o ato transcorreu pacificamente até o final do trajeto, quando os policiais passaram a disparar balas de borracha e spray de pimenta sobre as pessoas.
Nas apurações preliminares, os PMs disseram ter disparado balas de borracha porque os manifestantes não se dispersaram no local combinado e seguiram caminhando por mais um trecho.
Nos dias anteriores à manifestação, o Ministério Público estadual notificou o governo para que o ato não fosse permitido, mas a decisão final foi de autorizá-lo.
Na confusão, ao final do protesto, a vereadora do PT Liana Cirne foi derrubada com um jato de spray de pimenta. E duas outras pessoas que nem sequer participavam do protesto – Daniel Campelo da Silva, 51 anos, e o arrumador Jonas Correia de França, de 29 –, foram atingidos no rosto por balas de borracha disparadas por policiais militares. Daniel perdeu a visão no olho esquerdo e Jonas, no olho direito.
O governador afastou os comandantes da operação, abriu um procedimento disciplinar e já determinou que as vítimas da PM sejam assistidas e indenizadas. Paulo Câmara também gravou vídeos em que repudia a ação violenta da PM. Mas não dá entrevistas, por exemplo, para não melindrar a polícia mais do que o que considera que seria razoável.
Câmara tem diante de si um desafio pelo qual já passaram seus colegas de São Paulo, João Doria (PSDB), do Ceará, Camilo Santana (PT), e da Bahia, Rui Costa (PT) – todos de oposição ao presidente da República.
Em maio de 2020, atos pró e contra Bolsonaro convocados para o mesmo dia em São Paulo terminaram com conflito entre a PM e manifestantes contra o governo federal.
Antes dos protestos deste final de semana, porém, Doria reuniu o Conselho de Segurança Pública de São Paulo e deu ordem expressa aos comandantes das polícias para que não houvesse agressão aos manifestantes. Desta vez, funcionou.
A preocupação de especialistas e de governadores é que o caldo de insatisfação e de politização das tropas Brasil afora provoque ainda mais conflitos à medida que as eleições se aproximarem, com mais manifestações contra e a favor do governo.
“As polícias militares são hoje um barril de pólvora”, diz Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor do Departamento de Gestão Pública da FGV-EAESP. “Os policiais estão à flor da pele. Eles gostariam de estar reivindicando melhores salários, mas para fazer isso teriam que bater no Bolsonaro, porque os salários estão congelados por ação do governo federal”, explica Lima.
Uma pesquisa publicada pelo Fórum no ano passado mostrou que 35% dos oficiais e 41% dos praças de todo o Brasil interagem em redes sociais bolsonaristas. Em geral, se posicionam de forma favorável ao presidente, que desde a pandemia alimenta conflitos com os governadores em torno da necessidade de isolamento social.
“Essa contradição só aumenta a tensão na tropa”, explica Lima.
No Ceará, em fevereiro de 2020, PMs fizeram um motim e pararam durante 13 dias por melhores salários.
Situação semelhante aconteceu na Bahia, em março deste ano, quando um policial militar foi abatido depois de passar cerca de quatro horas dando tiros para o alto e gritando palavras de ordem no Farol da Barra, um dos principais pontos turísticos de Salvador. Na ocasião, houve ameaça de greve, mas a paralisação acabou não acontecendo.
Nos dois casos, os governadores ameaçaram punir os policiais, mas até hoje não foi divulgada nenhuma punição.