Há exatamente dez anos, o STF (Supremo Tribunal Federal) reconheceu por unanimidade a união entre pessoas do mesmo sexo.
Mas, muito além do “sim” de papel passado, a decisão colocou os direitos de gays e lésbicas no mesmo patamar que os dos heterossexuais e passou a reconhecer como família a união entre dois homens ou duas mulheres.
De lá para cá, mais de 21 mil casais homoafetivos registraram uma união estável no Brasil, e outros 54 mil se casaram, segundo levantamento feito com exclusividade para Universa pela Anoreg (Associação dos Notários e Registradores do Brasil).
Em 2013, o casamento homoafetivo também foi reconhecido pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
Universa conversou com cinco casais para saber como foi o processo de dizer o “sim” de papel passado:
a cantora Daniela Mercury e a jornalista Malu Verçosa; a publicitária Angel Pinheiro e a jornalista Beatriz Sanz; a fotógrafa Jaqueline Santos e a produtora-executiva Nayda Rodrigues; o presidente da Aliança Nacional LGBTI, Toni Reis, e o tradutor David Harrad; o arquiteto Jill Castilho e o advogado Éder Serafim.
Para todos, o dia 5 de maio merece ser celebrado porque significa segurança, reconhecimento e cidadania para a população LGBTQIA+ (Lésbicas, gays, bissexuais, trans e travestis, queers, intersexuais, assexuais e demais existências de gêneros e sexualidades).
Eles também dizem que a eleição de Jair Bolsonaro (sem partido), em 2018, influenciou na decisão de legalizar a união. Desde que era deputado federal, Bolsonaro faz comentários homofóbicos e chegou a dizer que preferia ter um filho morto do que um filho gay.
Ostentar o estado civil de casadas, dizem Daniela Mercury e Malu Verçosa, “é educativo para deixar claro que somos um casal e que nossa família é igual às outras”.
Angel e Beatriz: “A gente nunca se viu casando. Até as eleições de 2018”
A gente nunca se viu casando, era para ser uma coisa mais “vamos morar juntas”, bem informal mesmo. Aí chegaram as eleições de 2018, o medo de perder direitos que estão garantidos, e fizemos tudo do dia para a noite. O segundo turno foi no final de outubro e, em novembro, a gente estava se organizando para casar.
Não foi um pedido romântico, mas as palavras que a Angel usou me marcaram muito: ‘A gente não sabe o que vai acontecer daqui para a frente, mas independentemente do que for, eu quero passar com você’. Aí caiu minha ficha: ‘Eu preciso casar com essa mulher’
Na nossa cabeça, a gente ia assinar o papel e pronto, mas quando contamos para as nossas amigas, elas fizeram questão de planejar uma festa. Mas a gente não tinha dinheiro naquele momento, então vários amigos começaram a escrever dizendo que iam ajudar a bancar. No final, foi tudo feito por elas: a comida, a música, a decoração, até as nossas roupas elas ajudaram a escolher.
Casamos no cartório em dezembro de 2018 — quase não tinha mais data disponível; a gente casou na penúltima sessão do ano, em 27 de dezembro.
E a festa aconteceu em janeiro, com uma cerimônia inter-religiosa, porque nenhuma de nós segue uma religião, mas nossas famílias são cristãs e também quisemos homenagear nossos ancestrais, casando no candomblé.
A festa foi linda, e acabou com a gente pulando na piscina e depois lavando o chão do salão com a ajuda dos nossos amigos. Foi um dos dias mais felizes da nossa vida.
Eu sou muito defensora do casamento. A gente vive uma pandemia com quase 400 mil mortes no país e não dá para ter certeza que eu não vou ser a próxima. Se acontecer, sei que a Angel não vai ficar desamparada. E essa segurança é muito importante, principalmente para casais como a gente, que ainda não são plenamente reconhecidos.
Antes de casar, achei que não ia me acostumar a chamá-la de esposa, em duas semanas era “minha esposa” pra cá, “minha esposa” pra lá. Entendo que para casais héteros essa palavra pode ter uma conotação de posse e que, por isso, algumas pessoas têm resistência. Mas, para nós, é diferente, não tem nenhum traço pejorativo, opressor.
O casamento não é maior ou melhor que qualquer outra relação, não se trata disso, mas dá uma segurança jurídica enorme para pessoas como a gente.
Quando a Marielle Franco morreu, todo mundo se referia a Mônica Benício como companheira, mas ela não era companheira, era esposa.
É algo que nos foi negado por tanto tempo que eu não vou admitir que ninguém diga que a Angel é qualquer coisa que não minha esposa.
*A jornalista Beatriz Sanz e a publicitária Angel Pinheiro moram em São Paulo e são casadas há dois anos.
David e Toni: “Venha quem vier, não voltaremos para o armário”
Quando estava na Inglaterra, em 1990, encontrei o amor da minha vida. Conversamos, conversamos e quando chegamos no portão do meu apartamento, ele disse que viria me visitar. Chegou na sexta-feira com um litro de vinho tinto, um pacote de espaguete, uma carne moída e um tomate — aquela foi a refeição mais gostosa da minha vida. Estamos casados há 31 anos e até hoje fazemos o mesmo prato toda sexta-feira, agora com nossos filhos.
Em 2011, quando o STF aprovou a união estável, nós procuramos quatro cartórios e ninguém queria fazer nossa união estável, porque não sabiam nem como. Precisamos de dois advogados e fomos um dos primeiros casais a usar esse direito no Brasil. Foi uma alegria sem tamanho.
É uma coisa tão simples, mas que a gente demorou tanto para ter. Quando eu estava em Londres, eu não era cidadão britânico, então não tinha acesso a alguns direitos. Quando voltei para o Brasil, continuei com essa sensação de ser um cidadão pela metade, sabe? Cidadania é quando você tem os direitos garantidos. Hoje eu me sinto um cidadão completo. Somos uma família, e o Estado nos reconhece assim
A gente estava feliz com a união estável e não sentimos necessidade de transformá-la em casamento quando isso foi possível [em 2013] — até 2018, quando Bolsonaro ganhou a eleição. A gente estava morrendo de medo de perder o direito de casar, de ir preso, sei lá, e por isso resolvemos casar na Igreja Anglicana.
O arcebispo topou fazer o casamento. Eu entrei com a marcha nupcial, tivemos madrinhas, damas de honra, jogamos os dois buquês. Meu filho mais novo disse que foi um dos dias mais lindos da vida dele. Aproveitamos e trocamos os nomes também: agora eu sou Antonio Luiz Harrad Reis e ele é David Ian Harrad Reis.
Quando eu era adolescente, pensava que nunca ia poder ter filhos, nunca ia poder ter uma família. Sabe quando você vai no mercado e vê uma criança deitada no chão gritando? Quando eu via essa cena, pensava: ‘Meu Deus, que sonho ter crianças para fazer isso comigo’. E hoje eu tenho uma família muito legal, do jeito que eu sonhava.
Na Idade Média os religiosos nos queimavam na fogueira, depois o Estado nos tratava como criminosos ou doentes. Hoje nosso casamento pode até ser pecado para algumas pessoas, mas é reconhecido pela Suprema Corte
Agora, a gente saiu das páginas policiais, ou das páginas de saúde [por conta do HIV], e estamos nas de política, de cotidiano, de cultura. Pode vir Bolsonaro, pode vir quem for, a gente não vai voltar para o armário.
*O tradutor David Harrad e Toni Reis, presidente da Aliança Nacional LGBTI, estão juntos há 31 anos — há dez, assinaram a união estável, e há três, a certidão de casamento
Daniela e Malu: “Nosso casamento foi um ato político”
Antes mesmo de tornar nossa relação pública, fizemos uma troca de alianças em Paris. Foi o início da decisão mais difícil e importante que tomamos: a de que queríamos ficar juntas para sempre. Uma semana depois, em outubro de 2013, anunciamos que estávamos juntas e nos casamos.
Oficializar a união foi muito importante para a nossa família, principalmente para as nossas filhas. Mudou tudo, começando pelos sobrenomes, que passamos a carregar uma da outra. Depois, passamos a usufruir dos mesmos direitos civis de todos os casais héteros.
Antes, parecia impossível nós nos casarmos oficialmente. Quando ouvimos a frase do juiz, demoramos para ter certeza que era real. Todos estávamos muito emocionados, entendendo a importância do que estava acontecendo ali
Nosso casamento foi um ato político. Trouxe o tema para a mídia, para as novelas e para dentro das casas das famílias, que puderam conversar sobre isso. Colocamos esse assunto definitivamente na agenda do Brasil, com repercussão internacional — três anos depois, fomos convidadas pelo alto comissariado para fazer a primeira campanha internacional da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre direitos LGBTQIA+. Demos o primeiro beijo lésbico dentro da sede das Nações Unidas, em Nova York.
Ostentar o estado civil de casadas é educativo para deixar claro que somos um casal e que nossa família é igual às outras
Em 2019, casamos em Portugal oficialmente, na Ilha do Faial, como uma forma romântica de renovar os nossos votos e reforçar a luta por direitos. Ainda não temos planos para fazer uma quarta celebração, mas acho que ainda renovaremos muitas vezes nossos votos.
Ter nossa união reconhecida pelo Estado é fundamental para igualarmos nossos direitos aos de todos os cidadãos. Sem essa lei, estaríamos marginalizados: os casais estariam em risco, não teriam direito à herança, aos planos de saúde, enfim, aos direitos civis a que todos os casais héteros têm.
O Brasil ainda é o país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo. Temos nossos direitos questionados sistematicamente até por instituições que deveriam nos proteger. Precisamos de mais proteção do Estado e de políticas públicas e afirmativas para educar a sociedade e melhorar o acesso das pessoas LGBTQIA+ à justiça, à educação e ao trabalho. Temos que fazer valer cada conquista até agora e não deixar nenhum direito apenas no papel. Enquanto um de nós não tiver os direitos respeitados, estaremos todos sem direitos.
*Daniela Mercury, cantora, e Malu Verçosa, jornalista, são casadas desde 2013 e vivem em Salvador (BA)
Éder e Jill: “Ao dizer que duas pessoas podem se casar, elas existem”
Nós nos conhecemos no Réveillon de 2008 para 2009. Três meses depois, fomos morar juntos e assim estamos há quase 13 anos. Sempre tivemos vontade de formar uma família, a ideia era adotar, mas antes queríamos casar. Isso aconteceu em 2010, com festa para cem pessoas, cerimônia, presença dos nossos pais e tudo.
Como a união civil ainda não era reconhecida, fizemos um contrato entre a gente, como se fosse de sócios de uma empresa, só que a empresa era o nosso casamento. O problema é que ele só garantia alguns direitos ligados aos bens materiais e poderia ser contestado.
De toda forma, foi muito importante para as pessoas à nossa volta entenderem que era um casamento, que a gente queria virar uma família. Teve convidado que foi à festa achando que era uma brincadeira, não era sério, porque nunca tinha visto um casamento entre dois homens.
Quando o STF reconheceu a união entre pessoas do mesmo sexo, a gente ficou muito feliz, porque aquilo validou o nosso relacionamento e trouxe direitos como adotar, formar uma família, que vinham de encontro aos nossos desejos. Assim, nos casamos em 2014 e entramos na fila para a adoção em 2015.
A nossa família é constituída graças ao nosso amor e à nossa coragem, mas também foi muito importante nesta trajetória o reconhecimento judicial. Quando você diz que duas pessoas podem se casar e ter uma família, você diz que elas existem
Quando fomos conhecer nossos filhos [três irmãos biológicos], em 2016, o abrigo em Minas Gerais estava um pouco resistente porque éramos dois homens — isso não foi dito, claro, mas ficou nas entrelinhas. Eles dificultaram a nossa aproximação, e nós passamos mais de dois meses fazendo esse trajeto de 700 quilômetros.
Hoje eles são totalmente diferentes das crianças que a gente conheceu. Um dos meus filhos não conseguia nem falar direito e hoje ele tem uma desenvoltura enorme. Minha filha era super-resistente, eu não podia passar a mão no cabelo dela e hoje é meu xodó. A adoção é uma construção diária. Eles adotaram a gente, e a gente adotou eles.
Ainda não somos aceitos em todos os lugares, por isso vamos sempre aos mesmos shoppings, mesmos restaurantes. Além da homofobia, tem a questão racial, que é ainda mais dura — quando meus filhos chegaram, eu confundia esses dois preconceitos, até entender que são dores que doem de formas diferentes
*O advogado Éder Serafim e o arquiteto Jill Castilho, juntos há 13 anos, e formalizaram a união há 7. Eles vivem em Guapiaçu (SP)
Jaqueline e Nayda: “Quando Bolsonaro ganhou a eleição, ficamos com medo”
Eu sempre quis compartilhar a vida com alguém, mas nunca pensei como seria esse casamento, se teria festa, se eu ia seguir os protocolos jurídicos. Mas eu fotografei casamentos durante tanto tempo que comecei a enxergar a possibilidade. Mesmo assim, nunca tive o sonho de casar de noiva, de branco.
Estamos juntas há quase dez anos e nunca rolou um pedido de casamento oficial — a gente dizia ‘quer casar comigo?’ como uma demonstração de afeto, quase como um ‘eu te amo’. Mas, em 2018, quando o Bolsonaro ganhou as eleições, ficamos com medo
Pensamos em nos casar em dezembro, antes dele tomar posse, mas não queríamos fazer correndo e nem casar só no civil. Queríamos fazer uma festa, comemorar com as pessoas mais próximas, mas também não tínhamos dinheiro naquele momento, então não aconteceu. De toda forma, decidimos: ia acontecer o quanto antes.
Em 2019, sem me falar nada, a Nayda inscreveu a gente no concurso ‘A Maior Festa de Casamento do Mundo’ [organizado por um grupo de empresas, o projeto escolheu cinco casais homoafetivos para dizer ‘sim’ durante a Parada LGBTQIA+ de São Paulo]. Um dia depois, ela soube que passamos para a segunda fase e teve que me contar. Esse foi o pedido oficial de casamento.
Tivemos 20 dias para reunir os documentos, escolher as roupas e chamar a família. Depois da cerimônia, que aconteceu logo cedo, a gente subiu num trio elétrico e passou a Parada toda lá com a nossa família. Foram umas seis horas de festa, no meio da avenida Paulista, recebendo parabéns de gente que a gente nem conhecia.
Agora, a gente quer casar de novo. Dá vontade de comemorar essa união todo ano.
Poder casar, assinar união estável, ainda são opções muito novas para a gente. Eu, por exemplo, não conheço nenhum casal de mulheres mais velhas que a gente que se casou. Conheço um ou outro da nossa idade, mas mais velho não.
Assinar a certidão é um respaldo de que a nossa relação é tão válida quanto qualquer outra. Não é à toa que, só depois do casamento, algumas pessoas passaram a reconhecer a gente como casal. Já estávamos juntas havia oito anos e teve gente que precisou de um certificado assinado para dizer ‘ok, agora eu respeito vocês’
O reconhecimento garante direitos civis, inclusive na hora de ter filhos. A gente não pensa nisso por enquanto, mas são direitos básicos que até pouco tempo atrás eram negados à comunidade LGBTQIA+, e a gente tinha que ficar driblando a lei, encontrando brechas, para sobreviver.
É o caso da Cássia Eller e da Maria Eugênia [quando a cantora morreu, em 2001, sua esposa teve que lutar na Justiça para garantir a guarda do filho das duas, então com 8 anos].
Para a gente, é claro que a Maria Eugênia é mãe do Chicão [Chico Chico, hoje músico], mas enquanto esses direitos de maternidade não são validados pelo Estado, na prática eles não existem.
*A fotógrafa Jaqueline Santos e a produtora-executiva Nayda Rodrigues estão juntas há nove anos e se casaram há dois. Elas vivem em São Paulo