As palavras que carregam violências e a isenção de responsabilidade

Apresentação pessoal: Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Acre (Ufac), mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pesquisadora no campo da saúde mental, considerando os atravessamentos de gênero, raça e classe no sofrimento de mulheres e pessoas LGBTQIA+. Atua com atendimentos online e presencial em Rio Branco (AC) para adolescentes e adultas/os/es. Adora poesia, música popular brasileira, séries de comédia romântica adolescente, açaí e amigues, escreve desde criança como forma de existir em espaços que outrora foram negados para suas avós e avôs, mãe e pai.

As palavras que carregam violências e a isenção de responsabilidade

É com muito medo que lanço as primeiras palavras nesse arquivo em Word, olho para a tela do computador e sinto os ombros pesados, escrevo sobre o suor de uma mãe trabalhadora doméstica e de um pai latoeiro, escrevo sobre o cansaço dos avós que migraram das roças de Minas Gerais para terras paranaenses, dos que migraram dos campos agrícolas do Rio Grande do Sul para abrir estradas em meio a Mata Atlântica. Escrevo sobre as mãos daqueles que não puderem ou tiveram de deixar a escrita nos primeiros anos escolares pela sobrevivência.

Acordei mais cedo, estava ansiosa para colocar aqui tudo que transborda, mas ainda sobre um “embrulho” de ontem… mais tarde retorno nesse ponto. Eu sinto que as palavras são assim, elas escorrem pelos dedos e podem tocar outras existências, espaços como esse suscitam, sobretudo, responsabilidade. E é sobre historicidade e responsabilidade que quero, humildemente, tecer o primeiro escrito dessa coluna.

Toda palavra é uma história, que remonta a um lugar, por vezes de privilégios. E aqui quero frisar, privilégios falam sobre uma estrutura social e não sobre lutas individuais, os privilégios compõem formas menos burocráticas de acessar determinados espaços. De quantas pessoas negras você já leu uma coluna? Indígenas? Trans e LGB+? Nenhuma, uma, duas…?

Enquanto sociedade, a gente se incomoda “danado” a qualquer sinalização de nossos privilégios. O Brasil extermina a população negra, mas não existem racistas no país. O Brasil é campeão em feminicídio – assassinato de mulheres em razão do seu gênero -, mas “nem todo homem é assim”. Há maior preocupação em fomentar justificativas que isentem a responsabilidade do que compreender os fenômenos estruturais – enraizados na nossa cultura e sociedade – que nutrem as mais diversas violências.

Quem é responsabilizada/o/e pelos crimes de machismo, LGBTfobia, racismo? Comumente são as próprias vítimas: a mulher que estava “até tarde da noite na rua”, a problemática não seria bem mais “por quais motivos mulheres não podem estar na rua tarde da noite”? E para os crimes de transfobia, homofobia, LGBTfobia? “Você pode até ser isso ou àquilo, mas não precisa mostrar” e por que não questionamentos “no que a existência de uma pessoa trans, gay, lésbica, bissexual, me incomoda?” haja vista, estamos no país com o MAIOR índice de assassinatos de pessoas trans no MUNDO há mais de 12 anos (Associação Nacional de Travestis e Transexuais – Antra, 2021), além de ocupar também o ranking mundial de 5º país em feminicídio, estando o Acre em relação aos estados como 1º nos últimos anos (Atlas da Violência, 2020).

Ontem eu senti um “embrulho”, daqueles que dá um nó. A “piada” dita pelo “comediante”, a ridicularização de lutas pelo direito de existir feitas pela apresentadora, o colega da escola ou faculdade que ri e cochicha pelos cantos. Estamos imersas/os/es no mundo, atravessadas/os/es por ele, constituídos por uma historicidade da família, da comunidade, da região, do país, do mundo.

Toda palavra conta uma história e que história é essa contada nas “piadas” na internet, pelas ruas, pelas escolas? É preciso responsabilizar quem dissemina violências, em sua maioria homens, é necessário a retirada do lugar confortável de quem utiliza da estrutura social como forma de produção e reprodução de discursos ofensivos e pode gozar de ser “um eterno menino”.

Não há palavra desgarrada de um com-texto, elas contam a história de um país que se construiu na exploração física e sexual dos povos indígenas, negros, nas violências contra mulheres e pessoas LGBTQIA+, na criação de manicômios para as pessoas com deficiência e tantas outras minorias. As palavras não culminam apenas no risco a integridade física, nos perigos de morte em cada esquina, mas também na saúde mental das pessoas vítimas. É preciso reconhecer, se informar, estudar e questionar “que lugar é esse que ocupo em que me sinto tão confortável para ridicularizar outras formas de ser e estar no mundo?”.

Instagram: @psi.kahuana

Fontes: Associação Nacional de Travestis e Transsexuais – ANTRA. Dossiê dos ASSASSINATOS e da violência contra pessoas Trans em 2020. Publicado em 29 jan. 2021. Disponível em: https://antrabrasil.org/assassinatos/.

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. Atlas da violência 2020. Disponível em: http://proamecedeca.org.br/site/wpcontent/uploads/2020/08/213622_RI_Atlas_da_Violencia-2020.pdf.

 

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