O assassinato da professora Rosalina da Silveira, morta a facadas em Rio Branco nos anos 40, por um presidiário que por ela se apaixonou, numa trama digna de um filme sobre intrigas, é uma história conhecida e contada tantas vezes, ate em livro!, como o escrito pelo acreano Antônio Stélio de Castro, atualmente morando em Natal, no Rio Grande do Norte. O que pouca gente sabe é que o crime foi cometido, ali nas imediações de onde hoje é a sede da Prefeitura Municipal e que a época era a cadeia pública da capital do território do Acre, sob às vistas e tendo por testemunha um menino que, no futuro, se tornaria um ícone da Música Popular Brasileira (MPB) e um autêntico cidadão do mundo.
Nascido na Rua Barbosa Lima, no bairro da Base, em Rio Branco, João Donato de Oliveira Neto, a testemunha ocular daquela tragédia, nascera a 17 de agosto de 1934, como todo menino que se preze, vivia a perambular em inocentes brincadeiras pelas ruas centrais de uma Rio Branco também com ares de inocência. Foi da calçada da Avenida Getúlio Vargas, nas imediações de onde hoje é o Hotel Guapindaia Praça, que o futuro gênio da música viu o presidiário de nome Lázaro esfaquear até a morte a professora de 20 anos, assassinada sem saber o motivo.
A história conta que Lazaro, um homem que cumpria pena por outros crimes, era tão perigoso que era evitado até pelos outros presos. Seu único amigo era um jornalista que atuava no Acre, de nome Praxedes, que o visitava com frequência. Numa dessas visitas, o jornalista ficou sabendo que Lazaro nutria uma paixão não correspondida pela professora, que ele via passar, todos os dias, a caminho do trabalho, a partir de uma pequena entrada de ar de sua cela e que dava para a rua acanhada e de terra batida. Foi aí que o jornalista sabujo teve uma ideia macabra: enviar uma carta ao preso, em nome de Rosalina, aquiescendo a sua paixão. E a troca de correspondências durou algum tempo. Até que um dia, “Rosalina” resolvera acabar com aquele namoro posto que iria se casar com um aviador, o que era fato. Quando Praxedes ficara sabendo disso, manda a carta final ao preso, “rompendo” com aquele amor que só existia nas cartas. Lazaro, então, sentindo-se traído e cheio de ódio, num dia em que trabalhava na parte externa do presídio e vendo a professora passar, a agarrou e a esfaqueou.
As cenas de violência que chocaram o Acre e entraram para a crônica policial da cidade vista por aquele menino que está comemorando 87 anos de uma vida incrível, não bloquearam a veia criativa do acreano que se tornou cidadão do mundo exatamente por sua arte de músico. Aliás, aquele menino que ficou famoso como João Donato deveria ser, como seu pai e o avô, piloto de avião. Era filho do major da aeronáutica João Donato de Oliveira Filho e de dona Eutália Pacheco da Cunha, que eram músicos e cultos, logo cedo o menino João Donato demonstrou ter mais intimidade com a música, aos cinco anos já tocava acordeon. Aos seus 11 anos, a família Donato se muda para o Rio de Janeiro e ali, entre músicos de primeira grandeza, o acreaninho João Donato se viu como um peixe em seu habitat natural.
Ao longo do tempo, início dos anos 50, ele vai se tornar amigo de todos os expoentes do movimento que iria criar a Música Popular Brasileira. Entre eles, João Gilberto, Tom Jobim, Vinícius de Moraes e Johnny Al.
Os amigos percebiam que João Donato, um homem do coração da Amazônia, era do movimento bosanovista mas não era só nisso. Era, sobretudo, um músico muito criativo e que promove fusões musicais, de jazz e música latina, entre tantos outros. Ainda na década de 1950, João Donato se muda para os Estados Unidos, onde permanece durante treze anos e realiza o que nunca tinha conseguido no Brasil: reincorporar a musicalidade afro-cubana ao jazz. Nos EUA, grava o disco “A Bad Donato” e compõe músicas como “Amazonas”, “A Rã” e “Cadê Jodel”. Quando retorna ao Brasil, reencontra a música brasileira mas não abandona sua paixão pela fusão entre o jazz e ritmos caribenhos. Como arranjador participou de discos de grandes nomes da MPB como Gal Costa e Gilberto Gil.
Entre as composições mais conhecidas do músico, estão: “Amazonas”, “Lugar Comum”, “Simples Carinho”, “Até Quem Sabe” e “Nasci Para Bailar”. Segundo o crítico musical Tárik de Souza, “Durante muito tempo, João Donato foi um mito das internas da MPB. Gênio, desligado, louco, de tudo um pouco.
Em 1962 regressa ao Brasil e concebe dois clássicos da música instrumental brasileira – “Muito à vontade” e “A Bossa muito moderna de João Donato”, ambos pela Polydor. As canções foram relançadas no começo dos anos 2000 em CD pela Dubas. com Donato ao piano, Milton Banana na bateria, Tião Neto no baixo e Amaury Rodrigues, na percussão.
Sobre “Muito à vontade”, o jornalista Ruy Castro escreveu, por ocasião de seu relançamento em CD: “foi o seu primeiro disco ao piano e o primeiro mesmo para valer, com nove de suas composições entre as 12 faixas (…). Donato, que estava morando nos Estados Unidos durante a explosão da Bossa Nova, era uma lenda entre os músicos mais novos – para alguns, pelas histórias que ouviam, ele devia ser algo assim como o curupira ou a cobra d’água. Este disco abriu-lhes novos horizontes e devolveu Donato a um movimento que ele, sem saber, ajudara a construir”, escreveu o jornalista. Estão lá “Muito à vontade”, “Minha saudade”, “Sambou, sambou”, “Jodel”.
“A Bossa muito moderna” introduz mais alguns temas originalmente instrumentais que, muitos anos depois, se tornariam obrigatórios em qualquer cancioneiro da MPB. Entre elas “Índio perdido”, que viraria “Lugar comum”, ao receber letra de Gilberto Gil. Aliás, “Lugar comum’ também tem o DNA do Acre. Uma vez, Donato me contou que a música, na verdade, era de um seringueiro que passou numa canoa pelo Rio Acre, assobiando.
Do barranco, o menino curioso e bom de ouvido gravou aquela melodia do assobio e depois, já adulto, a reproduz de forma instrumental. Ao mostrar o som a Gilberto Gil, ganhou a letra que a imortalizou em versos como “lugar comum/ Começo do caminhar/ Pra beira de outro lugar/ À beira do mar, todo mar é um/ Começo do caminhar/ Pra dentro do fundo azul/ A água bateu, o vento soprou/ O fogo do sol, o sal do senhor/ Tudo isso vem, tudo isso vai/ Pro mesmo lugar/De onde tudo sai…”.
Gilberto Gil também é seu parceiro nos versos que transformariam “Villa Grazia” em “Bananeira”. Já “Silk Stop” é o tema original sobre o qual Martinho da Vila escreveria “Gaiolas Abertas”. A influência da música cubana é evidente em “Bluchanga”, dos tempos em que Donato tocava com Mongo Santamaría.
Donato muda-se mais uma vez para os Estados Unidos e lá permaneceria por quase uma década. Trabalhou com Nelson Riddle, Herbie Mann, Chet Baker, Cal Tjader, Bud Shank, Armando Peraza, etc.
Formou, ao lado de João Gilberto, Jobim, Moacir Santos, Eumir Deodato, Sergio Mendes e Astrud Gilberto, o time dos que tornaram o Brasil de fato reconhecido internacionalmente por sua música.
“Piano of João Donato: The new sound of Brazil” e “Donato/Deodato” saíram respectivamente pela RCA e Muse Records, mas permanecem fora do catálogo no Brasil. Mas o disco que melhor representa a segunda temporada americana é “A Bad Donato”, feito para o selo Blue Thumb, da Califórnia, e relançado em CD pela Dubas. Gravado em Los Angeles, “A Bad Donato” condensa funk, psicodelia, soul music, sons afro-cubanos, jazz fusion. Um Donato dançante, repleto de groove e veneno sonoro – antenadíssimo com o experimentalismo do sonho californiano – , considerado um dos 100 maiores discos da música brasileira pela Revista Rolling Stone.
No Natal de 1972, Donato foi ao Rio de Janeiro e à casa do compositor Marcos Valle, onde encontrou o cantor Agostinho dos Santos, que sugeriu a Donato “letrar” suas criações instrumentais. “Eu fazia música sem letra”, ele revelou-me numa conversa em Cruzeiro do Sul, no extinto restaurante da “Dona Besouro” (a qual, aliás, odiava quem a chamasse assim, por acusa da voz tonitruante que ela deixava escapar pelo salão; ao me ver ali com aquele senhor, para ela um ilustre desconhecido, com sua voz de trovão, ela pergunta: Tião, quem é este velho peidão? Não sabia que há muitos anos João tem um problema de flatulência… rsrsr).
Segundo o próprio João, foi a partir daquele encontro com Augustinho dos Santos que alguns temas ganharam letras e viraram canções populares. O episódio é contado por Donato: “Eu ia gravar instrumental dentro de alguns dias e o Agostinho dos Santos falou: ‘Vai gravar tocando piano de novo? Todo mundo já ouviu isso. Se fosse você, eu gravaria cantando”. A partir deste momento Donato deixa de ser integrante exclusivo da seara instrumental e entra para a MPB. Além de Gil, Martinho e Lysias, Chico Buarque, Caetano Veloso, Cazuza, Arnaldo Antunes, Aldir Blanc, Paulo César Pinheiro, Ronaldo Bastos, Abel Silva, Geraldo Carneiro e até o poeta Haroldo de Campos e o fonoaudiólogo e escritor Pedro Bloch tornaram-se parceiros de João.
O disco “Quem é quem”, lançado pela Odeon, em 1973 traz as músicas “Terremoto”, “Chorou, chorou” (ambas com letra de Paulo César Pinheiro”), “Até quem sabe” (com Lysias, seu irmão, também músico e poeta), “Cadê Jodel?” (com Marcos Valle). Até Dorival Caymmi manda uma música inédita, “Cala a boca, Menino”. Em carta enviada a João Gilberto, em 13 de setembro de 1973, Donato não esconde o entusiasmo: “É o meu melhor trabalho em discos até o momento, tendo-se em conta o tempo que demorou, o que demonstra o máximo cuidado com que tudo aconteceu. E o resultado é um disco que eu simplesmente acho adorável”.
João Donato também foi considerado um dos 100 melhores discos de todos os tempos pela Revista Rolling Stone. Em 2008 “Quem é Quem” foi tema de programa inteiramente dedicado a ele, pelo Canal Brasil, apresentado por Charles Gavin; e de livro escrito pelo produtor e músico Kassim. O álbum “Lugar comum” (1975), pela Philips, dá sequência ao Donato vocalista, com a maior parte do repertório formado por ex-temas instrumentais. Há parcerias com Caetano Veloso (“Naturalmente”), Gutemberg Guarabyra (“Ê menina”), Rubens Confete (“Xangô é de Baê”). Só com Gilberto Gil são oito, entre elas “Tudo tem”, “A bruxa de mentira”, “Deixei recado”, “Que besteira”, “Emoriô” e pelo menos dois standards para qualquer antologia da canção popular: a faixa-título e “Bananeira”.
No texto que preparou para o lançamento em CD de “Lugar comum”, pela Dubas, Donato revisita um certo dia de verão nos anos 1970, na casa de Caetano. Ele se aproximara dos baianos a ponto de fazer a direção musical do show “Cantar”, de Gal Costa, registrado em disco no ano anterior: “Tava todo mundo: Maria Bethânia, Gal, Caetano com Dedé e Moreno (…). Eles tinham meus dois discos “Muito à vontade” e “A bossa muito moderna” e eu sempre provocava, desafiando eles a fazer as letras. Quando surgiu essa melodia, o Gil inventou que era “bananeira não sei / bananeira sei lá (…)”. Daí eu disse: “quintal do seu olhar”. E ele: “olhar do coração. Como se fosse um ping-pong na segunda parte”.
Lembram daquela excursão que Donato fez à Europa com João Gilberto, logo depois da primeira temporada americana? Pois foi num vilarejo italiano que a bananeira foi plantada. Donato explica: “As minhas primeiras letras surgiram a partir desses temas instrumentais já gravados, que eu pensava que não iam ter letra nunca. “Bananeira” era “Villa Grazia”, o nome da pousadinha onde a gente ficou em Lucca, na Itália, acompanhando o João Gilberto numa temporada (…). Noventa e nove por cento das minhas músicas instrumentais trocaram de nome, por causa da letra”.
Depois desse período, Donato ficou quase vinte anos sem gravar. O mainstream da época parecia não absorver o que a turma pop começou a enxergar a partir dos anos 1990. A volta de João ao mundo do disco acontece em 1996 (ele lançara apenas o instrumental e ao vivo “Leilíadas”, pela WEA, em 1986), com o álbum “Coisas tão simples”, produzido por João Augusto, para a EMI. O disco traz “Doralinda”, parceria com Cazuza, além de novas colaborações com Lysias (“Fonte da saudade”), Norman Gimbel (“Everyday”), Toshiro Ono (“Summer of tentation”).
De lá para cá, Donato tem lançado seus álbuns sobretudo por três gravadoras independentes: Pela Lumiar, de Almir Chediak: “Café com pão” (com o baterista Eloir de Moraes; “Só danço samba”0; os três volumes da coleção Songbook, além de “Remando na raia”, encontro com Emilio Santiago (2003) e o reencontro com Maria Tita. Na Deckdisc, faz “Ê Lalá Lay-Ê”, “Managarroba” e o instrumental “O piano de João Donato”, produzidos pelo roqueiro Rafael Ramos, além do disco gravado com Wanda Sá (2003).
Pela Biscoito Fino, saíram os encontros instrumentais com Paulo Moura (“Dois panos pra manga”, 2006) e Bud Shank (“Uma tarde com”, este também em DVD). Pela Biscoito, Donato fez ainda o DVD “Donatural” (2005), onde recebe – em gravação ao vivo no Espaço Sérgio Porto, no Rio – diversas gerações de parceiros: de Gilberto Gil ao DJ Marcelinho da Lua; de Emilio Santiago a Marcelo D2; de Leila Pinheiro a Joyce, com direito a Ângela Rô Rô e o filho Donatinho, fera dos teclados e dos samplers.
Em 2016, foi indicado ao Grammy Latino de Melhor Instrumental por seu álbum Donato Elétrico. O disco também foi eleito pela revista Rolling Stone Brasil como o 11º melhor álbum brasileiro de 2016. Em 2017 lança com Donatinho, seu filho, um trabalho intitulado Sintetizamor (com o single “A Lei do Amor”), que é novamente eleito pela Rolling Stone Brasil como um dos melhores do ano, ficando na 16ª colocação.
João Donato vive hoje no bairro da Urca, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Ele é casado com a jornalista Ivone Belem, desde 2001. É pai de Jodel, Joana e Donatinho.
Viva João Donato!!!