“Esqueça-me se for capaz”: Marília Mendonça e o legado de sua história para todes nós

Você lembra a primeira vez em que escutou Marília Mendonça? É impossível que não conheça um refrão. É impossível que não saiba do título “Rainha da Sofrência”, como carinhosamente era homenageada por quem acompanhava seu trabalho e reconhecia a potência de sua presença na música sertaneja. Marília morreu precocemente na sexta-feira (5) num acidente aéreo em Minas Gerais, abruptamente perdemos uma mulher jovem, mãe de uma bebê de dois anos, proprietária de uma voz que tocou milhares de lares e de um profundo talento para escrita. As suas composições ficaram famosas nas vozes de outros cantores sertanejos antes mesmo do sucesso de Marília como cantora.

E eu quero compartilhar com vocês os motivos, além dos óbvios, pelos quais essa mulher fez história e deixou um legado para a música sertaneja do nosso país. Marília conseguia colocar de forma simples conteúdos densos que perpassam os escritos da Universidade ou os livros nas prateleiras das bibliotecas conceituadas. Ela fazia com que reflexões potentes alcançassem mulheres em todos os cantos. Aliás, “todos os cantos” fez parte do projeto do álbum dela em 2019, literalmente, Marília tocou todos os cantos do país.

Uma das músicas que mais gosto veio do seu lançamento em 2017, um trecho de “Quem é a culpa?”, que diz assim “Me apaixonei pelo que eu inventei de você”. Afinal, “Amar por dois só me dá prejuízo”. Alvo da escrita de poetas, filósofas/os, psicólogas/os, a paixão e suas idealizações. O contato com o outro é sempre o contato com a frustração, ainda mais quando mulheres em nossa sociedade são socializadas com “conto de príncipes encantados”, com um amor que frequentemente subalterniza e que tudo precisa suportar.

Mas nas letras de Marília, em versos simples havia mensagens para todas. Palavras de emancipação e fortalecimento entre mulheres, “O que cê tá passando, eu já passei e eu sobrevivi. Se ele não te quer, supera”, em um contexto em que o patriarcado se nutre da rivalidade feminina, ela bem frisou “Eu não vou deixar de ser sua amiga por causa de um qualquer, que não respeita uma mulher”.

Difícil escrever e não me emocionar. Marília foi e é potência, dizem que artistas nunca se vão, suas obras não se dissipam com a morte. Ela sabia da responsabilidade que tinha enquanto artista, enquanto mulher em um meio preconceituoso e machista. E com responsabilidade Marília não justificou a fala transfóbica que teve em uma live no ano de 2020, publicamente pediu desculpas às mulheres trans e travestis, esclareceu na live seguinte o que havia cometido. Ensinou algo para todes, principalmente, para a classe sertaneja predominantemente preconceituosa, quando sua fala fere a existência de outres, não é opinião, não é brincadeira e não há justificativa.

Tínhamos muito ainda a aprender com Marília, ela foi um dos únicos nomes na música sertaneja a se posicionar politicamente em 2018 contra o atual governo. Marília era alvo de sistemáticas violências ao ter sua voz secundarizada pela misoginia e gordofobia. Por fim, as manchetes, os programas televisivos não contam seu legado, pelo contrário, esbanjam comentários desrespeitosos sobre o seu corpo. A pressão estética não permitiu nem que o corpo de Marília pudesse descansar em paz.

Não importa se você é fã ou não, é preciso reconhecer e respeitar o seu legado, é preciso que ela possa descansar em paz. Nós perdemos. Nós todes perdemos. Que Marília seja sempre lembrada por seu talento, por colocar em versos simples e acessíveis revolução para outras tantas mulheres, como dizia uma de suas últimas canções “esqueça-me se for capaz” e, de fato Marília, não vai ser possível esquecê-la e “ninguém vai sofrer sozinho, todo mundo vai sofrer”.

Para contatar a autora e conhecer mais do seu trabalho, acesse:
@psi.kahuana (https://www.instagram.com/psi.kahuana/).

Kahuana Leite é Psicóloga graduada pela Universidade Federal do Acre (2019) e Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua em consultório particular no município de Rio Branco/Acre, atendendo adolescentes e adultos.

 

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