Em carta ao filho, Cristiane recorda infância dura e ambições: “Por que vou parar de sonhar?”

Sempre me lembro da primeira vez em que te vi, filho.

Você estava embrulhado em meus braços, ainda muito pequeno, e eu chorava, sem saber o que fazer. Recebi de volta esse mesmo sorriso banguela que me acorda todos os dias. E confesso que aquilo me trouxe uma paz que não reconheci, depois de crescer preparada para a luta.

Pensei em tudo que poderia te contar sobre a vida, filho. Você nasceu com duas mamães e sei que ainda vai ouvir muitas provocações sobre isso. Mas você será forte, como nós.

Às vezes brincam comigo, dizendo: “O Bento não tem noção de quem é a mãe dele. Ele não tem noção.” E isso deve ser verdade. Mas você ainda é muito novo para entender, Gordinho. Então te escrevo para que sempre saiba: a tua mãe é uma mulher revolucionária. Porque ser destaque, em um esporte discriminado no Brasil, é um ato de revolução.

Cristiane conta ao filho, Bento, a própria história — Foto: Franciane Dahm e Tatiana Bueno / Globo

stive na primeira seleção feminina de base, conquistei duas medalhas de ouro no Pan-Americano, duas de prata nas Olimpíadas, um vice em Copa, e ainda fui a terceira melhor jogadora do Mundo – por duas vezes! Consegue imaginar? Filho, a mamãe é a maior artilheira do futebol na história dos Jogos Olímpicos.

Cristiane Brasil seleção brasileira Copa do Mundo feminina — Foto: Getty Images

Cristiane Brasil seleção brasileira Copa do Mundo feminina — Foto: Getty Images

Eu sempre acreditei nos meus sonhos. Você deve perceber. Mas hoje, enquanto mulher lésbica, mãe e atleta, aos 36 anos, te digo: as coisas não foram fáceis para mim.

Comecei no futebol feminino sem nada. Sem mídia, patrocínio, material esportivo ou dinheiro. Era tudo por amor, Bento. Essa realidade pode parecer distante agora, mas muita coisa aconteceu antes de você chegar aqui.

Cristiane e o filho, Bento, no apartamento em Santos — Foto: Arquivo Pessoal

Cristiane e o filho, Bento, no apartamento em Santos — Foto: Arquivo Pessoal

Nasci em Osasco, na Grande São Paulo, com dois irmãos, e como filha da dona Ivete e do seu Euclides. Ela trabalhou anos como empregada do lar, sabia? Ele, como caminhoneiro. Nós crescemos com as coisas mais simples da vida, em uma casa no quintal da minha avó, com praticamente toda a nossa família. Eram dois cômodos: quarto e cozinha. Muito diferente da varanda para o mar que você vê agora, aqui em Santos.

Só não passamos fome porque meus pais sempre fizeram de tudo por nós.

Lembro do teu avô, com esse jeito turrão dele, me dizer: “Você não pode pegar esse biscoito. Porque a gente precisa de arroz e feijão.” Consegue imaginar?

Aquilo me causava uma dor tão grande, que até hoje é difícil falar. Mas eu sei que era carinho. Sei que era o único jeito de colocar comida na nossa mesa. Então não se preocupe, Gordinho. Ver que, agora, consigo te dar algo diferente, faz tudo valer a pena.

Cristiane, de branco e em pé no caminhão, ao lado do pai — Foto: Arquivo Pessoal

Cristiane, de branco e em pé no caminhão, ao lado do pai — Foto: Arquivo Pessoal

A realidade é que minha vida mudou por conta do futebol. E o futebol, de certa forma, também mudou por minha causa.

Eu tinha seis anos quando comecei, e tua avó não gostava muito da ideia. Agora, que tenho você, eu até entendo o lado dela. Porque era uma época de muito preconceito, e ela tinha medo do que eu iria ouvir nas ruas. “Você parece um menino”, eles diziam. “Seu cabelo é curto”, “Por que não está lavando a louça?”. Tudo muito diferente do que tenho ensinado a você, filho.

Posso te dizer que, agora, consigo enfrentar as agressões, mas quando criança, você não entende porque as pessoas te ofendem. Então eu chorava. Sei que muitas vezes você também vai chorar, Bentinho, mas tenha isso como lição: nunca desista dos seus sonhos.

Cristiane quando bebê, pouco antes do início no futebol — Foto: Arquivo Pessoal

Cristiane quando bebê, pouco antes do início no futebol — Foto: Arquivo Pessoal

Eu sempre fui muito teimosa, como você deve ter percebido. E acho que isso me deu forças para continuar. Nosso vizinho da época, Josias, foi o primeiro a acreditar em mim. Pagou tudo e ainda convenceu tua avó de que meu futuro era no futebol.

É difícil pensar que pode acontecer o mesmo com você, mas eu saí de casa aos 14 anos, para morar no alojamento do Juventus, em São Paulo. Confesso que tive medo. Eu me sentia só e, por mais de uma vez, quis voltar para casa. Às vezes, lembrando, eu até penso: e se tivesse voltado? Teria deixado de fazer história e talvez, agora, estivesse sem você, meu gordinho, não fosse pela minha avó e meu irmão. Eles lembraram que meu sonho estava ali. Então eu fiquei.

Em 2016, Cristiane visita CT do Juventus, clube em que iniciou a carreira — Foto: Juventus / Divulgação

Em 2016, Cristiane visita CT do Juventus, clube em que iniciou a carreira — Foto: Juventus / Divulgação

A persistência deu certo, como você pode ver. Porque foi logo depois disso que eu cheguei na seleção brasileira de base. Era a primeira do futebol feminino no país, acredita? Mal sabia que estávamos fazendo história, mas era uma época que a gente só se divertia, filho. Acho que você iria gostar. Nada como o cavalinho de borracha da tua infância, claro, mas porque a nossa alegria era dançar.

Nós éramos crianças, como você. Então confesso que sofri quando saí da base, ainda muito novinha, e subi direto para a equipe adulta.

O que ninguém sabe, filho, é que o mundo descobriu Cristiane quando eu mesma ainda não me via por completo.

Estava começando a entender meu interesse por mulheres e ainda tinha medo de ser mal vista por isso. Usava uma chuteira comprada e deixava para as outras na convocação seguinte. Recebia uma diária de R$ 25 e aquele era o dinheiro que iria mudar a minha vida.

Cristiane abriu as conquistas com o ouro no Pan-Americano de 2003 e a prata em Atenas, em 2004 — Foto: Divulgação

Cristiane abriu as conquistas com o ouro no Pan-Americano de 2003 e a prata em Atenas, em 2004 — Foto: Divulgação

Eu pensava em tudo isso, sabe? No meio desse turbilhão, disputei a primeira Copa, em 2003, a Olimpíada no ano seguinte e não parei mais. Era uma ascensão meteórica, você não tem ideia.

Eu me sentia uma criança e estava jogando Olimpíadas, com medalha no peito e sendo artilheira – nos Jogos de Atenas, em 2004. Difícil de imaginar, não é? Para mim também era. Porque eu não tinha noção do que eu estava criando ao redor de mim. Eu não tinha noção.

Jogadoras da seleção feminina comemoram a medalha de ouro nos Jogos Pan-Americanos de Santo Domingo — Foto: Divulgação

Jogadoras da seleção feminina comemoram a medalha de ouro nos Jogos Pan-Americanos de Santo Domingo — Foto: Divulgação

As americanas sempre me perguntavam: “Como vocês conseguem chegar nas finais sem ter nada?”. Hoje, posso te dizer, filho: era uma luta muito grande. Porque faltava dinheiro, e a gente precisava se transformar. Todos os dias.

Talvez você não perceba, pelo que escuta da história, mas a verdade é que eu sempre carreguei um peso muito grande no peito.

Porque na nossa cabeça, no feminino, tinha que ganhar para mudar. Foi o que sempre disseram à gente: “Se você não for campeã, ninguém vai lembrar.” Então eu chorava, frustrada. Porque só o ouro parecia suficiente.

Mas isso não é verdade, filho. Por isso, sempre te ensinei diferente. Por isso, sempre vamos celebrar tuas vitórias.

Na seleção, a gente só vai ter noção da grandeza dessas conquistas depois que passa. Depois que a gente para e pensa: nós somos vice-campeãs mundiais. Na Copa de 2007, nos Jogos de 2004 e de novo em 2008.

Selecao feminina olimpica 2008 — Foto: Getty Images

Selecao feminina olimpica 2008 — Foto: Getty Images

Você precisa saber que eu tenho orgulho de dizer que temos duas medalhas olímpicas na nossa casa, porque elas representam toda a luta que nós vivemos na época. São medalhas de prata que dizem: conseguimos melhores diárias, espaço em academia – porque brigamos por isso – e conquistas históricas para o futebol brasileiro. Você vai ver.

Acho que o legado que a gente deixou, mesmo algumas pessoas não aceitando, é muito grande. E isso ninguém vai tirar de mim.

Medalha de prata de Cristiane, das Olimpíadas de Atenas, em 2004 — Foto: Reprodução / Globo

Medalha de prata de Cristiane, das Olimpíadas de Atenas, em 2004 — Foto: Reprodução / Globo

A minha história é sobre vitórias, mas por muitas vezes eu pensei em desistir, sabia?

Você não tinha nascido e eu estava nos Jogos do Rio, em 2016, quando me lesionei. Perdi um pênalti com o estádio lotado, contra a Suécia, e perdemos a medalha de Bronze na partida seguinte, para o Canadá. Era a Olimpíada na nossa casa… e nós deixamos escapar. Não foi nada fácil.

Imagino que seja difícil para você ler isso, Gordinho, mas faz parte da nossa história. Eu voltei para o meu clube, no Paris Saint-Germain, depressiva e não sabia.

Eu não dormia, não comia e chegava do treino para deitar no sofá. Perdi 5kg e vivi o ápice quando passei mal dentro de campo.

Disse ao técnico que queria minha casa e só não voltei porque ele me segurou: “A gente não pode perder você.

Prometo que estarei sempre ao seu lado, para que nunca enfrente algo parecido. Mas agora, olhando para trás, penso que, se não fosse esse caminho, nós não estaríamos juntos. Porque só depois disso conheci a tua outra mamãe, a Ana Paula Garcia.

Costumo dizer que minha vida mudou depois dos 30. Então lhe digo: calma, está cedo. Você acabou de chegar.

Cristiane no aniversário de 10 meses de Bento — Foto: Arquivo Pessoal

Cristiane no aniversário de 10 meses de Bento — Foto: Arquivo Pessoal

Antes mesmo de te conhecer, Bentinho, eu sempre sonhei em formar uma família, com filhos. Mas sabia que precisava abandonar a carreira, se fosse engravidar.

Pode parecer absurdo agora – como também deveria ser antes -, mas era quase que uma aposentadoria forçada. Porque nós, mulheres atletas, sempre tivemos que lutar pelos nossos direitos.

Eu não engravidei e mesmo assim os olhares mudaram, acredita? Porque todo mundo olha para você depois dos 30 como se você não servisse para mais nada. É difícil. Mas acho que, de certa forma, eu cresci para contrariar as regras. E vou lhe ensinar a fazer o mesmo, filho.

Cristiane com Bento e o cavalinho de borracha — Foto: Arquivo Pessoal

Cristiane com Bento e o cavalinho de borracha — Foto: Arquivo Pessoal

Cheguei na Copa da França, em 2019, com 34 anos. Marquei três gols na estreia e mudou tudo: marketing, mídia, patrocínio, visibilidade. Mobilizamos meninas, mulheres e aliviamos o preconceito para muitas famílias que pensaram: “Pode ser minha filha ali”. Você deve ter visto que fomos eliminadas nas oitavas, mas minha vida nunca mais foi a mesma. Nossa vida, para melhor dizer.

Conheci a Ana Paula, nos casamos em Ilhabela – no litoral de São Paulo – e anunciamos a tua chegada um mês depois da cerimônia. A Ana carregou você na barriga, para que eu pudesse seguir jogando, e trouxe para o mundo o nosso amor mais puro, Bentinho.

Cristiane acompanhada pela esposa Ana e o filho Bento — Foto: Reprodução

Cristiane acompanhada pela esposa Ana e o filho Bento — Foto: Reprodução

Você não deve lembrar, mas eu ainda esperava tuas primeiras palavras quando você me abraçou em um dos momentos mais difíceis da carreira. Queria chegar nas Olimpíadas de Tóquio, e meu nome ficou fora da lista.

Não consigo imaginar estar longe de você, filho. Só que eu mudei muita coisa para estar lá. Cumpri metas que não imaginei que conseguiria, e percebi que não adiantava. Porque não dependia mais de mim. Não sei quais foram os motivos, mas eu senti. Óbvio que eu senti. Principalmente porque era a última, sabe? Eu dizia: vou estar bem. Última Copa, última Olimpíada.

Era para me despedir. E aí eu assisti de casa.

Cristiane seleção feminina — Foto: Reuters

Cristiane seleção feminina — Foto: Reuters

Foi difícil. Mas quero que você saiba que estou feliz. Enquanto te escrevo, nesse momento, sinto que tenho mais um desafio pela frente. Eu sou bem teimosa, eu contei para você. E confesso que agora quero voltar.

Pode parecer estranho que, depois de quase 20 anos na seleção, eu ainda sonhe em chegar lá. Mas continuo com ambições. Uma última Copa. Uma última Olimpíada. E o que depender de mim, eu vou fazer para disputar. Por que não? Enquanto eu estiver inteira, sem lesão, para que que eu vou parar de jogar?

Por que eu vou parar de sonhar?

Hoje, mesmo com você ainda bebê, acho que te escrevo para que sempre saiba: a tua mãe fez história. Você vai crescer com orgulho de mim, Bentinho. Isso eu tenho certeza.

Te amo.

Cristiane conta ao filho, Bento, a própria história — Foto: Franciane Dahm e Tatiana Bueno / Globo

Cristiane conta ao filho, Bento, a própria história — Foto: Franciane Dahm e Tatiana Bueno / Globo

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