São quatro cadeiras, quatro microfones e uma mesinha redonda. Poucos metros quadrados, paredes de espuma e nenhuma câmera. Nesse ambiente intimista, dentro de uma sala no primeiro andar da sede da TV Globo, em São Paulo, gravamos com o ex-volante e hoje comentarista Richarlyson o primeiro episódio do podcast “Nos Armários dos Vestiários”, uma série jornalística que detalha a homofobia e o machismo no futebol brasileiro.
A entrevista extrapolou o tempo previsto porque nem parecia entrevista — era uma conversa franca e sem cortes sobre o tema. Em duas horas e meia, além de contar como o preconceito o perseguiu durante a carreira inteira, um relato inédito aconteceu naquela pequena sala. Richarlyson se sentiu à vontade para revelar, pela primeira vez, sua bissexualidade.
— A vida inteira me perguntaram se sou gay. Eu já me relacionei com homem e já me relacionei com mulher também. Só que aí eu falo hoje aqui e daqui a pouco estará estampada a notícia: “Richarlyson é bissexual”. E o meme já vem pronto. Dirão: “Nossa, mas jura? Eu nem imaginava”. Cara, eu sou normal, eu tenho vontades e desejos. Já namorei homem, já namorei mulher, mas e aí? Vai fazer o quê? Nada. Vai pintar uma manchete que o Richarlyson falou em um podcast que é bissexual. Legal. E aí vai chover de reportagens, e o mais importante, que é pauta, não vai mudar, que é a questão da homofobia. Infelizmente, o mundo não está preparado para ter essa discussão e lidar com naturalidade com isso — afirmou Richarlyson.
Ter essa discussão é um dos objetivos principais de “Os armários dos vestiários”. A série tem dez episódios sobre homofobia e machismo dentro de vários espaços do futebol — campo, arquibancada, apito, base e outros. A entrevista de Richarlyson é uma entre as mais de 30 realizadas.
A declaração surgiu com mais de uma hora de conversa. Richarlyson não foi perguntado diretamente sobre sua sexualidade, como aconteceu diversas vezes em quase 20 anos de carreira como jogador profissional. A decisão de falar surgiu de forma espontânea.
— Pelo tanto de pessoas que falam que é importante meu posicionamento, hoje eu resolvi falar: sou bissexual. Se era isso que faltava, ok. Pronto. Agora eu quero ver se realmente vai melhorar, porque é esse o meu questionamento.
— Você me entende por que eu acho que é desnecessário às vezes você se rotular? Tem uma questão mais importante, tem gente morrendo, o Brasil é o país que mais mata homossexuais. E a gente está aqui falando de futebol, ok, mas o futebol é um negocinho pequeno. Ah, mas sua fala pode ajudar. Não, não vai ajudar. Quem é Richarlyson, pelo amor de Deus?! Sou um mero cidadão comum, que teve uma história bacana no futebol, mas eu não vou poder mover montanhas para que acabem esses crimes, para que acabe a homofobia no futebol — disse o ex-jogador.
O sentimento de desesperança se justifica. Estamos em 2022, e Richarlyson é o primeiro jogador que atuou na Série A do Campeonato Brasileiro e na Seleção a falar sobre o assunto abertamente, uma marca importante na luta contra a homofobia no esporte, onde as diferenças não são aceitas.
No mundo inteiro, dá para contar nos dedos aqueles que decidiram se posicionar, e a maioria não está ou não passou pelas principais ligas. No Brasil, essa figura era simplesmente inexistente. O único relato foi de um goleiro da Série D em 2010, o Messi, na época jogador do Palmeira de Goianinha, do Rio Grande do Norte.
— Eu não queria ser pautado por causa da minha sexualidade, de eu ser bissexual. Eu queria que as pessoas me vissem como espelho por tudo aquilo que conquistei dentro do meu trabalho. Eu nunca coloquei a minha sexualidade à frente do meu trabalho, e nunca faria isso. E eu não estou falando isso agora porque parei de jogar. Muita gente maldosa vai falar isso, que eu falei agora porque não jogo mais. Não. Eu nunca falei porque não era a minha prioridade, como não era hoje, mas hoje eu me senti à vontade de falar. Eu queria que não existisse essa pauta. Eu queria estar falando aqui da minha nova carreira (comentarista). Mas é importante. Vamos poder alertar um ali, outro aqui.
Richarlyson talvez tenha sido o esportista que mais sofreu pressão na carreira sem precisar tocar na bola, mesmo sendo um jogador com uma coleção invejável de títulos — uma Copa São Paulo, três estaduais, três Brasileiros consecutivos, duas Libertadores e um Mundial. Ainda assim, jamais foi alçado à posição de ídolo.
Na passagem pelo São Paulo, onde viveu o melhor momento da carreira, chegou a ser ignorado pela própria torcida no momento em que ela gritava um a um os nomes da escalação. Não era fácil, mas ainda assim ele brilhava. Era a forma possível de driblar a intolerância — jogando bem e sem nunca abandonar a personalidade forte. A começar pela aparência. Sempre havia brilho, cores extravagantes, especialmente o rosa, em um protesto silencioso contra a heteronormatividade.
— Eu sempre fui eu. Queria mostrar para as pessoas que independentemente do que elas falassem eu iria viver a minha vida, faria o que me desse prazer brincando de peteca, jogando vôlei, colocar uma braque rosa no vôlei.
O debate público sobre a sexualidade de Richarlyson começou em junho de 2007, quando o então dirigente do Palmeiras José Cyrillo Júnior insinuou em rede nacional que o jogador seria gay. Richarlyson registrou uma queixa-crime contra o cartola, que se desculpou publicamente.
A queixa, porém, foi indeferida com uma decisão surpreendente. O juiz do caso, Manoel Maximiniano Junqueira Filho, arquivou o processo alegando que não seria razoável aceitar homossexuais no futebol brasileiro porque prejudicaria o pensamento da equipe. Mais do que isso, citou na sentença que futebol é coisa de macho, não homossexual.
— Isso, sim, me deixou muito triste porque em nenhum momento eu senti que aquilo era uma coisa normal. Era uma coisa muito pejorativa. Isso foi muito ruim não só para mim. Ser homossexual não é demérito para ninguém, e no futebol não deveria ser um assunto tão polêmico. Nunca deixei que isso atrapalhasse o que eu quero para minha vida, não vai ser uma frase, uma palavra, uma discussão ou um cara babaca que tentou de forma vulgar maltratar uma classe… Pelo amor de Deus, quanto sofrimento tem na classe LGBTQIA+?
Richarlyson garante que os ataques homofóbicos jamais abalaram seu futebol. Conseguia desempenhar mais de uma função tática e, mesmo com o turbilhão vivido por conta de sua vida íntima, chegou ao auge. Chamado por Dunga em 2008, vestiu a camisa da Seleção em duas partidas como lateral-esquerdo, uma das posições em que atuava no São Paulo.
— Depois de 2007, fui o melhor jogador do Campeonato Brasileiro na minha posição e fui para a seleção brasileira sem precisar de patotinha. Fui convocado por mérito.
O ex-jogador acredita que as críticas que recebia por uma falha em campo eram desproporcionais, assim como considera injusta a disputa por uma vaga no time titular.
— Todo dia eu tinha que mostrar algo diferente, e isso sempre falei. Um erro meu era peso cinco. (As pessoas) me atacavam mesmo, parecia uma matilha de lobos. E eu sabia, nunca fui craque, nunca fui tecnicamente incrível, mas era inteligente de saber o que eu poderia fazer para sempre estar à frente dos demais. Eu voltava uma semana antes das férias, porque eu corria na ladeira por uma vaga no time, enquanto os outros estavam no plano. Eu chegava voando na pré-temporada. Na hora que os caras assustarem, eu já fiz cinco bons jogos, e aí não teria motivo para me tirar do time.
Veja abaixo outros tópicos da entrevista:
- Apoio familiar
— Só falei abertamente com a minha mãe sobre a minha sexualidade. Meu pai (o ex-atacante Lela) e meu irmão (o atacante Alecsandro) vão saber pelo podcast. Nada jamais foi questionado, nunca me olharam torto na vida por nada que eu tivesse feito. Eu sempre brinco que tudo aquilo que sou hoje é porque em casa tive uma formação totalmente rígida na questão de educação e respeito, mas acima de tudo com uma clareza e naturalidade para enfrentar o que quisesse da forma que eu visse, não da forma que meu pai, minha mãe ou meu irmão estivessem vendo.
- Presença gay no futebol
— Eu seria hipócrita de falar que não existem. Existem, sim. E ele (jogador) falar que é, a porta vai fechar absurdamente. Vai fechar mesmo, porque ainda existe esse lado, que eu acho tão pobre nos clubes, de estarem nas mãos das torcidas organizadas, que são quase sempre quem comandam nessa questão da homofobia.
- Combate à homofobia com punições severas
— Pelo menos agora a juizada está tomando conta da situação. Mas tem que ser mais, tem que punir o clube, tem que ficar com uma câmera mesmo só para isso lá no estádio, para pegar quem é. E ter mesmo punição. Se a punição é três anos de cadeia, se eu não me engano, tem que punir esse cara, fazer ele ficar um ano fora do estádio, fazer o clube pagar por essa situação de ter sido homofóbico. Só assim vai melhorar.
- Carreira prejudicada
— Com certeza minha carreira poderia ter sido muito melhor em termos midiáticos por aquilo que eu construí dentro do futebol se não tivesse essa pauta (sexualidade). Isso é visível, todo mundo sabe disso, mas chegou num ponto em que eu fiquei saturado mesmo. Chegou um ponto que alguém me pedia entrevista, e eu perguntava: “Vai falar sobre o quê?”. Mas questionamento de que poderia ser melhor? Sim, poderia. Não vamos ser hipócritas de dizer que não poderia se tivesse uma pauta maior sobre o que eu conquistei e não sobre essa questão, que era muito polêmica, ainda mais na minha época, né?
- Estereótipo
— Eu nunca me preocupei com estereótipo de ser masculino, machão, rústico, bruto… São tantos adjetivos, heterotop… Em 2008, quando eu entro de férias, coloco um aplique. Um ano antes, ou até no mesmo ano, o Leandro Guerreiro colocou um aplique. No mesmo São Paulo. Quando eu coloquei, aí foi notícia, né? O Juvenal Juvêncio ligou para o meu empresário, Júlio Fressato: “Júlio, o Richarlyson não vai voltar com esse cabelo para o São Paulo, né?” O Júlio me perguntou, e eu: “Estou de férias, já faço o que eu quero quando eu estou trabalhando, de férias então ninguém vai falar o que tenho que fazer, mas você pode responder para o Juvenal Juvêncio que não vou voltar com cabelão, até porque não quero, mas é um posicionamento meu, dá um trabalho danado”. Agora a gente volta no Leandro Guerreiro, que era tido como macho alfa, rústico, hetero… Colocou o cabelão e estava tudo bem. A torcida não ligou, passou e continuou. No meu caso, sabia que iria levantar uma pauta desnecessária, mas que levantaria, até porque o presidente ligou para o meu empresário.
- Falta de posicionamento dos jogadores
— Os próprios jogadores têm que se posicionar melhor sobre a situação, especialmente os héteros. Não é questão de vestir a camisa com um arco-íris. É, quando acontecer essa situação de homofobia, sair de campo. “Espera aí, a torcida não está respeitando o meu companheiro ou meu adversário como ser humano? Então, eu não vou voltar a jogar”. Eu tenho amigos e ex-companheiros de profissão que realmente tiveram momentos difíceis na sua carreira por querer ser aquela pessoa que ele queria ser, mas era reprimido pelos seus clubes e até pela sua torcida.
- Perseguição da mídia
— Cara, tem dois pesos. Costumo dizer que por mais que fosse uma chateação esse questionamento da mídia, eu estava em alta. Eu estava aparecendo. Claro que eu queria muito mais aparecer por aquilo que fazia no campo do que por essas manchetes, mas era quase que impossível isso acontecer, porque talvez aquilo que o Richarlyson fizesse dentro de campo não dava tanta notícia.
— Tem uma foto minha que eu desacreditei. Em um treino, fui buscar a bola no meio das árvores e, quando eu voltei, claro, tive que agachar. Um fotógrafo tirou essa foto e virou um meme absurdo, eu lá de quatro, saindo do meio do mato. Eu achei um absurdo, de muito mau gosto, qualquer jogador poderia ter ido pegar a bola, mas usaram da maldade, porque todas as pautas eram maldosas comigo, queriam arrancar algo de mim, e ficavam putos. “Ah, o Richarlyson deu uma risada espalhafatosa? Então, vamos tirar essa foto para mostrar que a alegria que ele está é diferente”. “Ah, o Richarlyson está no shopping com uma camisa toda cheia de lantejoulas. Esse cara não é homossexual? Vamos colocar essa foto aí para ver qual vai ser a reação”. Chegou a um ponto que eu parei de dar entrevistas, porque a pauta era a mesma sempre.
- Combate ao preconceito
— Pessoas com posicionamentos maiores tem que se enxergar e falar: “Oh, gente, eu sou hetero, mas esse cântico homofóbico aqui não existe. E se isso acontecer eu vou sair de campo. Eu quero que o cara que cantou seja punido. Seja preso. O time tem que ser punido. Isso, sim, vai resolver. Não vai resolver eu falar aqui que sou bi. Não vai resolver, não vai. Eu vim aqui porque acho que é importante ressaltar algumas coisas, pontuar sobre a minha carreira, o que foi, o que aconteceu, o que deixou de acontecer. Como eu levei e o que deve ser feito.
— Muitas vezes, o homossexual se vitimiza demais. Não, vai pra cima, cara! Você não é diferente, não. É carne e osso igual a qualquer outro. Morrendo todo mundo vira caveira igual, ninguêm vai virar uma caveira rosa ou de purpurina. Você não é diferente. Você não tem que se sentir diferente, você tem que se sentir feliz.
O “Nos armários dos vestiários” é um podcast GE, produzido pela Feel The Match.