Sônia Vidal di Maio ficou pálida. “Não acredito! Não acredito no que estou vendo”, repetia. “Mas o que você está vendo?”, questionou Nadia Kojio. A moça então subiu mais um degrau da escada, pegou o celular e iluminou a fresta da parede. Esticou o olho para dentro do caixote. E começou a rir: era uma ossada.
Parece mentira, mas a história narrada de geração em geração entre os moradores de São José dos Campos é real: de fato há um corpo sepultado em uma das paredes da silenciosa São Benedito, uma capela conhecida popularmente como igreja na cidade do interior de São Paulo.
Localizada na praça Afonso Pena, no centro, a capela está desde 1997 sob responsabilidade do município, e não recebe mais cultos religiosos.
Data de 2010 o famoso episódio protagonizado por Sônia Vidal di Maio, arquiteta do departamento de Patrimônio Histórico da Fundação Cultural Cassiano Ricardo, e Nadia Kojio, historiadora e coordenadora do Arquivo Público de São José dos Campos. Na época, a igreja de São Benedito, o “santo dos negros”, passava por um processo de restauração — um entre tantos desde sua construção original, em taipa de pilão, entre 1870 e 1876.
Autorizado pelo Comphac (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Artístico, Paisagístico e Cultural) e pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico) do Estado de São Paulo, o restauro de 2010 incluiria paredes, forros e altares na construção de teto abaulado. Até que uma rachadura chamou a atenção.
Ao fundo de uma das salas, o trinco na parede revelou um caixote com uma fita amarela. Vitor Chuster, então diretor do departamento de Patrimônio Histórico, pediu para que Nadia checasse o que afinal havia dentro dele.
Os enterros do capitão
“É o ‘seu’ capitão, Nadia! Ele está aí”, Sônia disse brincando para a colega, que já tinha trabalhado anos antes exatamente na sala onde foi encontrado o corpo. “Lá funcionou durante alguns anos o Patrimônio Histórico Cultural. Estalos são normais, afinal, é uma construção antiga. Mas nunca vi nada. Nem tenho medo de assombração”, diverte-se Nadia.
De fato, era a ossada do capitão Miguel de Araújo Ferraz.
Benfeitor da igreja, ele cedeu terras à então Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, onde foi erguida uma capela em homenagem à santa no século 19, e ganhou o direito de ser sepultado em solo santo, o que era comum na época. Segundo a historiadora, muitos padres foram enterrados dentro de igrejas.
Não se sabe a data da morte do capitão. O “Álbum de São José”, livro histórico de 1934, cita a demolição da igreja de Nossa Senhora do Rosário, em 1879, e a primeira descoberta do corpo: “No fundo do corredor, ao lado da nave, estava a sepultura do sr. cap. Miguel de Araújo Ferraz […]. Com a demolição da igreja, tratou-se da remoção dos despojos, para o que foi aberto o túmulo, encontrando-se o corpo mumificado e tendo os cabelos em perfeito estado”.
O fato assombrou a cidade, que logo atribuiu a Miguel o status de santidade. O corpo foi levado então para a igreja de São Benedito, recém-construída e que agregaria membros das Irmandades de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito. Foi sepultado em pé, entre duas paredes.
Devido à umidade do corpo na taipa, era possível notar os contornos de sua silhueta — e, para dissipar a má impressão, a família Araújo Ferraz resolveu cimentar e pintar tudo.
Fato é que, com o passar do tempo, não se sabia mais em qual parede o corpo estava. “Depois de tantos restauros sem encontrar nada, passamos até a duvidar da história”, conta Sônia. “Ele não queria ser encontrado”, brinca.
‘Onde há fumaça, há fogo’
Na primeira vez em que foi enterrado, o corpo passou por um processo para preservar sua integridade por mais tempo. Entretanto, devido ao contato com o ar no traslado entre as capelas para o segundo sepultamento, a “mumificação” perdeu seu efeito inicial. Hoje, restaram apenas os ossos e as vestes do capitão.
A rachadura foi provisoriamente tapada com uma madeira branca, e o corpo continua na parede da igreja, inacessível ao público até segunda ordem. A ideia é estudar o caso, agora que a cidade possui um Núcleo de Arqueologia.
“Não gostaríamos de removê-lo, mas trabalhar na melhor preservação do corpo e fazer uma leitura histórica”, conta o arqueólogo Wagner Bornal, que fez uma vistoria ali. “Ninguém quer trabalhar com a ossada ou reconstituir o rosto. O que queremos é compreender o sepultamento, o processo produtivo do caixão, o emparedamento — e o lado simbólico disso tudo. São muitas possibilidades de aprendizado”, acrescenta.
Bornal, aliás, por muito tempo viu com ceticismo as histórias em torno da igreja. “Quando você se torna acadêmico, às vezes acaba deixando de lado a comunidade e para de dar ouvidos aos ditos populares”, pondera. “Eu achava essa história de corpo uma besteira. Para mim, era mais uma das lendas em torno da igreja. Foi uma surpresa e uma lição. Então, hoje sempre digo: ‘Onde há fumaça, há fogo!'”, afirma.
Segundo os pesquisadores, o melhor é deixar o corpo do capitão tal como está na parede. “É preciso ter respeito à comunidade que o colocou lá. Por que o tiraríamos? Para expor ossos?”, questiona o arqueólogo.
A igreja de São Benedito deve passar por um mais um restauro, ainda sem data definida de início. Lendas populares dão conta ainda de um túnel que serviria de fuga de escravos e que sairia da igreja e seguiria até o Banhado, um tipo de anfiteatro natural em uma área de várzea, principal cartão-postal da cidade atualmente. Mas, diferentemente da história do capitão, a lenda do túnel nunca se confirmou.