O major Diógenes Munhoz, 48, do Corpo de Bombeiros Militar do Estado de São Paulo, lembra com detalhes de uma emergência: quando era tenente, passou seis horas em uma torre de telefonia da avenida Campanella, em Itaquera, na zona leste de São Paulo, para evitar um suicídio.
No Corpo de Bombeiros desde 2000, Diógenes já era habituado aos chamados. O protocolo era simples: uma ação tática, para distrair e pegar o tentante. “Só que não tem como você fazer isso com uma pessoa na mesma escada que você, num patamar mais acima. Eu estava em uma escadinha de marinheiro, daquelas que ficam em torno de caixas d’água”, conta.
A saída naquela situação foi conversar. E, então, conheceu pela primeira vez a pessoa do outro lado. Em 30 minutos, sabia quem era, no que trabalhava. Depois, descobriu sobre a família. “Era alguém comum, que por vários motivos a vida começou a se tornar negativa, as coisas começaram a não fluir”, lembra.
Enquanto conhecia a história, Diógenes se deu conta de que a abordagem então utilizada não previa casos como esse, em que “distrair e pegar” não era uma opção. “Entendi que não tínhamos nada, uma técnica que fizesse a pessoa desistir.”
Desde então, o major estuda sobre saúde mental, com foco em suicidologia. Evitou 57 ocorrências na carreira e, em 2015, apresentou no fim do mestrado a técnica de abordagem humanizada a tentativas de suicídio, inédita no Brasil e já em processo de exportação.
Hoje, é doutorando em saúde mental no Centro de Altos Estudos de Segurança da PMESP (Polícia Militar do Estado de São Paulo) e peregrina por cidades para palestrar sobre autocuidado.
‘Quem planta tâmara, não colhe tâmara’
Um ditado popular árabe lembra que a espera para as tamareiras darem frutos é longa e, por isso, quem plantou não tem o deleite de colhê-los. Antigamente, esse período podia levar décadas, chegando a 100 anos. Mesmo que hoje alguns processos tenham otimizado a produção, a frase é simbólica e virou um mantra para Diógenes.
Digamos que eu sou um plantador de tâmara, quem planta tâmara, não colhe, porque a tamareira demora anos para dar fruto. Só que alguém tem que plantar.
O trabalho não foi (ou é) fácil, mas necessário, diz o major. Sobretudo por esbarrar nas dificuldades da sociedade brasileira em entender os cuidados de saúde mental. “Se você fala a frase ‘psiquiatra é médico de’. As pessoas dizem ‘louco’. E não é”, exemplifica.
O preconceito é ainda mais latente em suicídios. O olhar estigmatizado, principalmente de quem encara a situação de longe, tende a cair em clichês que não enxergam o próximo como uma pessoa em intenso sofrimento. Além do tabu que impede conversar sobre o tema e a consequente conscientização, segundo Diógenes.
“É preciso ter consciência de que do outro lado tem uma pessoa em sofrimento e não alguém egoísta, sem Deus no coração, coisas que sempre ouvimos falar”, defende o major.
Demanda reprimida
Implementada em 2015 no Corpo de Bombeiros de São Paulo, a técnica humanizada está presente em 21 estados de todas as regiões do país. Polícias militares e o Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) também têm treinamentos para utilizá-la.
“Explodiu [o uso da técnica] porque existia uma demanda reprimida muito grande”, afirma o major. Só os Bombeiros do estado de São Paulo atendem entre cinco a sete tentativas por dia, média de 2,5 mil por ano.
De acordo com Diógenes, o ganho nas abordagens é de 23% mais desistências, comparado a antes de sua implementação. A técnica deve chegar a Portugal no segundo semestre e há pedido do Chile.
De forma simples, a ideia é capacitar os profissionais para conseguir atender as pessoas com segurança e mais humanamente. Para isso, alguns estereótipos precisam ir embora, principalmente os preconceitos sobre autocuidado.
O curso tem duração de uma semana e o primeiro dia é dedicado apenas a romper estigmas sobre a saúde mental. Isso torna algumas substituições necessárias: não há suicida, mas sim tentante. Não se trata de uma ocorrência, mas de uma abordagem.
Negociar é muito ligado à ocorrência policial. Eu não negocio a vida do tentante, porque a vida dele é inegociável.
“E eu não posso falar com uma pessoa com características depressivas da mesma forma e com as mesmas palavras de uma com características agressivas, me xingando, gritando. Tudo muda, a linguagem corporal, as palavras”, diz Diógenes.
Entre os conceitos, os profissionais também aprendem noções básicas de Libras, para ajudar eventuais tentantes com deficiência auditiva.
“Eu não vou mais simplesmente para fazer ação tática, distrair e pegar, vou para compartilhar e, principalmente, humanizar e acolher essa pessoa, mostrando que, no pior momento de vida dela, ela tem fatores de proteção, só não consegue enxergar ainda”, detalha Diógenes.
‘Eu faço terapia e a incentivo em todos os cantos do Brasil’
Rever conceitos foi algo importante para o próprio Diógenes como pessoa física, além da vida como major e porta-voz da prevenção de suicídios. Ele precisou entender conceitos, romper com pensamentos e entender o sofrimento do próximo com empatia, para acolher da melhor forma. Nunca viu um suicídio e, hoje, é chamado apenas nas abordagens de complexidade, quando começam a se estender.
Por 57 vezes eu vi a face da morte do outro lado e ela é opaca, cinza, muito triste de ver. Cada vez que eu vejo, eu me sinto muito triste.
Todas as 57 situações ensinaram algo a Diógenes e, acima de tudo, desconstruíram ideias para ele conseguir, a cada atendimento, ser o mais assertivo possível.
Essa compreensão nasceu ao conhecer o CVV (Centro de Valorização da Vida), referência em apoio emocional e prevenção ao suicídio.
“A abordagem mais importante é sempre a próxima, e para ela eu vou estar pronto. Entendi que não existe hierarquia na vida nem proporcionalidade. Uma mãe não perde 20% do filho para o suicídio, ela perde inteiro”, afirma.
Os pensamentos também construíram no Diógenes o senso de autocuidado. O trabalho não é leve, suga. A cada tentativa, há um embate com sentimentos que precisam ser controlados e domados. E essa é a única forma de continuar ajudando.
“Essas abordagens são muito pesadas, tomam muito da gente. Lembro-me de vezes em que voltei chorando o caminho todo até em casa. Eu não consigo me blindar totalmente da dor alheia, não existe isso. Meu lado pessoal chama-se terapia. Se eu não fizer, não gerar autocuidado, eu não estaria falando hoje. Eu faço terapia, sou psicanalista e eu a incentivo em todos os cantos do Brasil.”
Procure ajuda
Caso você tenha pensamentos suicidas, procure ajuda especializada como o CVV (www.cvv.org.br) e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.