Houve um tempo em que Gordon Lish era conhecido como Capitão Ficção. O apelido foi inventado por ele mesmo, nos anos 1970, quando se tornou editor da revista “Esquire” e abriu espaço para uma nova geração da literatura americana. Nas décadas seguintes, em revistas, editoras e concorridas oficinas de escrita, ele se tornou uma figura reverenciada e temida pela interferência radical nos textos dos autores. Muito dessa fama se deve a seu trabalho com Raymond Carver, considerado um dos maiores contistas do século XX e um mestre do minimalismo — estilo em parte manufaturado por Lish, que reescrevia e cortava páginas inteiras do autor.
Enquanto editava com mãos de tesoura, o Capitão Ficção também escrevia. Seus contos chegam ao Brasil agora pela primeira vez na antologia “Coleção de ficções 1”, publicada pela Numa Editora em tradução de Ismar Tirelli Neto. Dos cerca de 10 livros que ele já lançou, é o segundo a sair no Brasil, depois do romance “Peru” (Imago, 1992). Os contos mostram como o escritor Lish coloca em prática as teses do editor Lish. Aos 82 anos, ele continua a defender o que dizia a autores e alunos: que a principal tarefa do escritor é “seduzir” o leitor, valorizando “tom, atmosfera, estilo e cor”.
— Toda interação humana é um ato de sedução. E na arte não é diferente, quer você esteja tocando violino ou escrevendo à máquina — diz Lish por telefone, de casa, em Nova York. — Como leitor, fui seduzido de tal forma por Salinger que ele me fez acreditar que as marcas nas páginas dos livros dele eram pessoas de verdade. Eu achava que, se passasse pela Rua 57 na hora certa, podia dar de cara com um dos irmãos Glass (personagens dos principais livros de J.D. Salinger).
Não por acaso, um dos contos mais conhecidos de Lish é uma paródia de Salinger. Vencedor do prestigioso prêmio O. Henry em 1984 e incluído na edição brasileira, “Para Jeromé — Com amor e beijos” é escrito como uma carta do pai do autor de “O apanhador no campo de centeio” pedindo notícias do filho, que passou a maior parte da vida recluso. O texto imita o tom palavroso e coloquial de Salinger: “Então você tome os dois segundos que isto vai custar ao todo, Jerome, e me diga, quando jamais se ouviu falar de um homem civilizado que se desvencilha de uma linha perfeitamente boa que não consta na lista telefônica e ainda por cima vai lá e arranja outra?”.
Em outros contos de “Coleção de ficções 1”, Lish mostra o próprio estilo, cerebral e formal. “Quero contar-lhe a respeito da desintegração de um homem. Não se trata de um sujeito que eu tenha conhecido muito bem. O que conheço são as erosões-chave que o conduziram ao colapso, o punhado de episódios que fizeram esse sujeito tombar da pouca altura que julgava ter”, lê-se em “O que resta a nos ligar”. Em “Como escrever um poema”, aparece outra marca sua, a ironia ácida: “Por Deus, não — não é literatura aquilo que procuro em poesia. É medo”.
Apesar dos prêmios e do reconhecimento crítico, Lish não se vê como escritor.
— Escrevo só para aumentar minhas chances com as mulheres — brinca Lish. — Mas não me dou o título de escritor. Sempre me vi como editor. E também como revisor, o que me fez ser muito malvisto.
Lish refere-se à polêmica que marcou o fim de sua relação com Raymond Carver. Os dois se conheceram no fim dos anos 1960, quando viviam na Califórnia e colaboravam com as mesmas pequenas revistas literárias. Quando Lish foi para a “Esquire”, formou um time de colaboradores que seriam futuros destaques da literatura americana, como Richard Ford e Joy Williams. Carver foi um dos primeiros que convocou, porque “sentia que poderia fazer algo a partir dos textos dele”. Pouco depois, Lish conseguiu publicar o livro de estreia do autor, “Fique quieta, por favor” (1976), finalista do National Book Award, e “Do que estamos falando quando falamos de amor” (1981), que consagrou Carver como um mestre da narrativa curta, dono de uma prosa concisa e seca.
Nesses livros, com o aval do autor, Lish chegava a cortar 60% dos contos, mudava títulos e reescrevia finais. Antes um escritor obscuro, Carver ficou grato a Lish pelo sucesso repentino. Mas começou a se incomodar com as intervenções e, no terceiro livro, limitou a participação do editor. Ainda assim, “Catedral” (1983) foi ovacionado por críticos e leitores (a “New Yorker” notou uma mudança “em direção a um estilo mais relaxado e uma generosidade de sentimentos”).
Carver morreu em 1988, aos 50 anos. Em 2009, depois de longa polêmica com Lish, a viúva do escritor, Tess Gallagher, publicou a versão original de seu segundo livro, com o título “Iniciantes”, revelando um Carver mais expansivo e sentimental. O editor, naturalmente, prefere sua versão, e acusa Tess de interferir nos textos do marido a partir de “Catedral”:
— Acho que ela o prejudicou mais do que ajudou. Mas não acho que isso afete a popularidade de Carver. Seus contos são lidos até hoje em salas de aula de todo o país.
Como escritor, Lish só deu ouvidos a seu primeiro editor, William Abrahams, que publicou seu romance de estreia, “Caro senhor Capote” (1983). Quando ouviu dele que o livro tinha problemas, chorou no telefone (“hoje vejo que ele tinha razão”, diz). Para Lish, a característica mais importante do trabalho do editor é “a inteligência” ou “o gosto”, que define como sinônimos.
— O editor tem que ser, acima de tudo, um bom leitor — diz Lish. — Eu queria que o texto que passasse pelas minhas mãos fosse diferente de todo o resto e criasse nos leitores o mesmo entusiasmo que eu sentia.
Lish não se entusiasma muito com a literatura americana contemporânea. Critica os romancistas mais incensados dos últimos tempos, como Jonathan Franzen e David Foster Wallace, por fazerem uma literatura grandiloquente, em quase tudo oposta à concisão que o editor sempre defendeu. Diz que nenhum novo escritor chega aos pés de seus favoritos, Don DeLillo e Cormac McCarthy. Resume sua opinião sobre a cena literária atual como “não afirmativa” e critica os editores de hoje.
— Mesmo quase cego de um olho, leio com minha lupa pelo menos algumas páginas de livros novos. E minha impressão é que os editores não estão mais editando. E os revisores não estão revisando — diz Lish, citando o romance recente de “uma escritora muito elogiada”, que o deixou furioso por causa de um advérbio mal empregado. — Alguém deixou passar definitively no lugar de definitely! Parece que ninguém mais se importa com essas coisas.