Fã da Legiao Urbana é pivô de ação policial sobre músicas inéditas da banda

Josivaldo Bezerra da Cruz Junior, de 39 anos, é um grande fã da Legião Urbana. Em maio de 2019, sua casa, em Mesquita, na Baixada Fluminense, foi alvo de busca e apreensão da polícia. Procuravam material inédito da banda, a pedido do filho de Renato Russo, Giuliano Manfredini, que cuida dos interesses da Legião Urbana Produções Artísticas Ltda.

Agora, mais de um ano depois, a operação, batizada de “Será”, em referência a um dos maiores sucessos do grupo, cumpriu outro mandato de busca e apreensão com o mesmo objetivo, desta vez na casa de Marcelo Fróes. Pesquisador que foi amigo de Renato, ele é ex-representante jurídico da sua família e produtor de dois álbuns póstumos seus — “Renato Russo presente”, de 2003; e “O trovador solitário”, de 2008.

Giuliano foi procurado pelo GLOBO para falar sobre a investigação, mas não foi encontrado até a publicação das reportagens.

Fróes reuniu e digitalizou o acervo da banda no começo dos anos 2000, a pedido da família e depois da gravadora EMI (hoje Universal). Em 2002, entregou um relatório com tudo o que tinha sido achado para a família de Renato, a gravadora e os outros músicos da banda.

Ele também conversava com fãs da Legião via internet. E aí, acredita, “entrou de gaiato” na investigação.

E a investigação parte de Josivaldo. Ou melhor, de Ana Paula Ulrich, personagem usada por ele desde os tempos de Orkut, e que em determinado momento trocou mensagens com Marcelo Fróes. Na antiga rede social, Ana Paula começou a administrar uma comunidade chamada ‘Arquivo Legião’, que depois migrou para o Facebook.

— Não tinha nada de anormal nisso, a maioria das pessoas que administra esses grupos optam por perfis falsos, porque recebem muito ataque. Por exemplo, se posto uma letra mais política do Renato, vão no meu perfil pessoal me xingar.

Ana Paula teria chamado atenção de Giuliano por ter acesso a material raro da Legião Urbana. A investigação chegou em Josivaldo no ano passado, e ele garantiu, em depoimento, que não tinha nada de inédito, pois tudo que compartilhava já estaria, segundo ele, na internet.

— Fã da Legião Urbana é igual fã dos Beatles. O sonho de todo fã é achar algo exclusivo, mas apesar da fama do perfil da Ana Paula, eu não tinha nada inédito. Minha casa foi revirada em maio de 2019, levaram até os celulares das minhas filhas. Dei depoimento na época e depois, em dezembro, me chamaram para perguntar sobre as supostas 30 fitas inéditas que eu teria. Nunca tive isso, e respondi: ‘Mas vocês reviraram a minha casa, sabem que não tenho nada’. A acusação diz que sumiram fitas da casa do Renato. Eu nunca tive lá. Só fui a Ipanema (onde morava o cantor) uma vez na minha vida, ano passado, conversar com o meu advogado.

Josivaldo, que é aposentado por invalidez por estar praticamente cego, acredita ainda que as 30 fitas “são uma lenda de internet, da época de fóruns, pré-Orkut”. Mas afirma que o próprio Renato teria dado fitas para fãs.

Ele dá exemplos de materiais arquivados em casa que teria encontrado na internet. Como manuscritos, que, diz ele, estavam disponíveis num site oficial sobre Renato Russo, e que acabaram sendo retirados quando este foi reformulado.

— Se você buscar esses manuscritos na internet, vai encontrar em vários blogs.

Josivaldo lembra de outra história envolvendo raridade: a fita que tem Renato Russo cantando, aos 18 anos, com André Pretorius, guitarrista da Aborto Elétrico, sua primeira banda. Em 2016, Giuliano teve acesso ao material e deu entrevistas sobre ele.

— A viúva do Pretorius soube e não autorizou o uso comercial do material. E então ela liberou o áudio para os fãs. Fui um dos últimos a receber, mas por causa da fama da Ana Paula, fui acusado de jogar isso na internet.

Fã pode compartilhar?

Para Josivaldo, a busca judicial envolvendo fãs é fruto de um desconhecimento do herdeiro sobre o acervo do pai.

— Muita coisa é material de rádio, trecho de programa de TV… Se algum fã gravou, não se pode criticar o fã.

Mas se o fã compartilha músicas inteiras, isso não configura violação de direito autoral? Na opinião do advogado Antonio Carvalho Cabral, que representa Josivaldo, não necessariamente:

— Não se pode criminalizar páginas de fãs e fãs clubes com base no art. 184 do Código Penal (“violar direitos de autor e os que lhe são conexos”), tendo em vista que é preciso interpretar o artigo penal em conjunto com a lei 9610/98, principalmente o artigo 46 e a Constituição Federal — diz Antonio Cabral. — É natural que os fãs repliquem em suas páginas notícias publicadas, programas de rádio, vídeos publicados no YouTube e tudo mais que fale de seus ídolos, com o intuito simplesmente de admirar e divulgá-los. É preciso verificar o dolo, a má-fé, o intuito de lucro, o prejuízo gerado ao detentor dos direitos, dentre outros fatores para que se configure o crime, o que não vejo presente na grande maioria do comportamento dos fãs na internet.

No caso de Josivaldo, ele afirma:

— Não se pode presumir que houve um crime, é preciso sua comprovação através do devido processo legal. [Capa: Domingos Peixoto/Agência O Globo]

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