O governo Bolsonaro planeja eliminar a meta que exige da Funai (Fundação Nacional do Índio) ações de proteção a direitos indígenas em 100% das comunidades do país. A obrigação está prevista no Plano Plurianual da União de 2020 a 2023.
A iniciativa é do Ministério da Justiça. A pasta é a atual responsável pela Funai e vem consultando técnicos do Ministério da Economia sobre a mudança.
O PPA determina hoje que o governo deve promover e proteger direitos sociais, culturais e de cidadania dos povos indígenas e estabelece como meta até 2023 garantir o atendimento a 100% das comunidades nas ações de competência da Funai e da Secretaria de Saúde Indígena, do Ministério da Saúde.
Inserido na diretriz de defesa dos direitos humanos, o trecho em discussão foi criado por meio de emenda parlamentar e aprovado pelo Congresso em 2019.
Documentos obtidos pela reportagem mostram que o Ministério da Justiça defende o fim da obrigação por considerar o percentual de 100% audacioso e inexequível. Por isso, propôs atender apenas 40% das comunidades.
A pasta não informou os argumentos para classificar a meta inexequível e, por isso, os técnicos da Economia pediram mais informações após contestaram o pedido.
O Ministério da Justiça então afirmou que reformularia a proposta para considerar uma meta de 80% de atendimento.
A pasta comandada por André Mendonça ainda disse que a meta de atender todas as comunidades nao reflete a realidade e a capacidade de gestao da Funai e que a proposta não teria um escopo definido de atividades a serem cumpridas.
Procurados, Ministério da Justiça e Funai não comentaram.
Carlos Marés, ex-presidente da Funai e professor de direito da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná), afirmou que o argumento sobre inexistência de um escopo definido para as ações não é válido porque a fundação tem suas atribuições perante comunidades indígenas já previstas, inclusive na legislação.
Marés afirmou que a redução da meta proposta em discussão no governo é preocupante. Segundo ele, entre as atividades que mais sofreriam impacto estão as de demarcação e fiscalização territorial, que diminuem conflitos socioambientais e protegem as terras de terceiros interessados na exploração de recursos naturais.
Outra ação que poderia ser prejudicada é a assistência à saúde, o que pode ter consequências graves considerando a pandemia de Covid-19.
Segundo Marés, o poder público tem condições de chegar a todas as comunidades. “É uma meta perfeitamente factível para a Funai, embora haja uma degradação na estrutura já há alguns anos. Com o restabelecimento das condições técnicas, é possível dar atendimento a 100%, sim”, disse.
Ele afirmou que a Funai já chegou a alcançar todas as comunidades no passado, inclusive com atuação voltada a povos não contatados, e que a verba demandada para os trabalhos é pequena em relação ao Orçamento federal.
A necessidade de recursos prevista no PPA para atingir todas as comunidades indígenas é de R$ 293,7 milhões para o período de 2020 a 2023. O valor representa uma média de R$ 73,4 milhões por ano.
“Do ponto de vista financeiro, é muito pouco. O orçamento da Funai é muito pequeno em relação ao conjunto do Estado”, disse.
Uma redução do atendimento, diz ele, acabaria deixando a prestação de serviços públicos voltada a comunidades que já vivem em áreas urbanas ou próximas a elas e prejudicando as de mais difícil acesso.
Dinamam Tuxá, coordenador-executivo da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), afirmou que a iniciativa do Ministério da Justiça confirma o tom das denúncias feitas por lideranças indígenas e que o governo usa racismo para decidir suas políticas sobre o tema.
“Isso gera revolta porque consolida ainda mais a certeza das denúncias que estamos realizando sobre o enfraquecimento da política indigenista. A atual conjuntura política foi construída em torno de um racismo institucional, com um projeto político que fomenta o genocídio indígena”, disse Tuxá.
Segundo ele, nas aldeias falta hoje fiscalização e, com o coronavírus, houve paralisia das demarcações.
“O PPA vinha justamente para tentar sanar essa falha da demarcação indígena. Reduzir a meta de um orçamento que já deixa a desejar é reconhecer que a política indigenista está sendo sufocada. É reconhecer que o Estado está institucionalizando o genocídio”, disse.
Mesmo uma redução mais branda da meta, para 80%, é criticada por ele. “É um retrocesso, até porque o governo não vem cumprindo nem com 10% do que deveria. Essas metas não podem ser reduzidas, porque eles só vão cumprir 10%, 15%”, disse.
Segundo Tuxá, a Apib vai tomar medidas judiciais caso a ideia do Ministério da Justiça vá adiante.
“O que queremos é que o governo atenda 100% das comunidades indígenas. Qualquer redução é grande diante das mazelas que estamos vivendo”, afirmou.
O movimento interno do governo ocorre enquanto seus membros afirmam que a preocupação com a situação dos índios e do meio ambiente no país é exagerada.
Nesta semana, o ministro Paulo Guedes (Economia) reforçou esse discurso. “Essa história de matar índios e queimar florestas é um exagero”, afirmou Guedes a investidores internacionais durante participação em evento virtual. “A Amazônia não queimou em um ano e meio. Se algo está errado, tem estado pelos últimos 30 anos”, disse o ministro.