Do cinturão à guerra: relatos de um campeão no front de batalha

A bravura demonstrada nos ringues precisou ser testada na vida real. O medo de ser nocauteado ficou pequeno diante do pavor de uma morte repentina, provocada por tiros, minas terrestres ou granadas.

As mãos cerradas para golpear os adversários, passaram a segurar um fuzil, pronto para abater o inimigo. O ringue foi substituído por um campo de batalha montanhoso e repleto de neve devido ao inverno.

Durante três meses, este foi o cotidiano de Tofiq Musayev, campeão do GP do peso-leve do Rizin Fighting Federation, maior evento de lutas do Japão, e que serviu ao Exército do Azerbaijão na guerra contra a Armênia, na disputa pelo controle da região de Nagorno-Karabakh (Artsakh, para os armênios), no Cáucaso.

O azeri – que conquistou o título em dezembro de 2019 -, não atuou no ano passado, e se lançou na ofensiva militar do seu país. Preferiu arriscar a carreira e a própria vida no conflito histórico, que remonta ao fim da União Soviética, em 1991, e cujo capítulo mais recente se deu entre setembro e dezembro de 2020.

A ida de Tofiq Musayev à guerra em Nagorno-Karabakh – região que seria parte do território histórico do Azerbaijão, mas de maioria étnica armênia – se deu nove meses após o ápice de sua carreira.

O azeri havia vencido o brasileiro Patricky Pitbull na final do GP e, por decisão unânime, conquistado o título do torneio.

Foi a coroação de quem derrotou 18 adversários e perdeu apenas três vezes desde a estreia, em 2013.

A carreira estava azeitada para deslanchar, mas ele decidiu priorizar o seu país. Deixou a condição de reservista – serviu ao Exército dos 18 aos 20 anos – e rumou para o front de batalha.

– Todos me conheciam lá, fui uma grande motivação para os militares. Os soldados ficavam chocados que um lutador como eu estava participando de uma guerra. Eu sempre conversava com eles, tentava motivá-los. O cinturão não é tão importante quanto ser cidadão do Azerbaijão, comi o pão e tomei a água daqui, então eu precisava me juntar com meus amigos e lutar contra o inimigo para acabar com esse conflito que durava 30 anos – conta o lutador, residente na capital Baku e formado em Educação Física, em entrevista ao Combate.

Tofiq (em pé, ao centro) ergue o fuzil ao lado dos companheiros de batalha no Exército - Arquivo Pessoal
Tofiq (em pé, ao centro) ergue o fuzil ao lado dos companheiros de batalha no Exército – Arquivo Pessoal

 

Tofiq Musayev – que costuma levar a bandeira do Azerbaijão ao ringue em suas lutas – fala orgulhosamente sobre a ida à guerra, embora a dor também seja grande. Perdeu milhares de compatriotas e viu centenas saírem com cicatrizes eternas das montanhas de Karabakh.

– Muitos dos meus companheiros morreram na guerra. Outros perderam pernas e braços em explosões de minas terrestres, granadas e bombardeios. Até hoje eu tenho pesadelos, acordo de noite gritando. Não dá para esquecer tudo tão rápido quanto eu gostaria. O Azerbaijão é conhecido pelas reservas de petróleo que estão na terra, mas o que é mais importante no nosso solo são os mártires que lutaram e perderam suas vidas na guerra de Nagorno-Karabakh.

Granadas armênias - Arquivo Pessoal

Granadas armênias, TOFIQ ENCONTROU ARSENAL DURANTE UMA INCURSÃO. Arquivo Pessoal

Embora não possa dar detalhes de sua função no campo de batalha, Tofiq alternou entre o front e a espionagem.

Ele relata que o risco de morrer não veio somente da artilharia inimiga, mas também do frio que fazia na região. Chegou a ficar com as pernas congeladas, foi hospitalizado e se recuperou sem nenhum dano severo.

Embora não possa dar detalhes de sua função no campo de batalha, Tofiq alternou entre o front e a espionagem. Ele relata que o risco de morrer não veio somente da artilharia inimiga, mas também do frio que fazia na região. Chegou a ficar com as pernas congeladas, foi hospitalizado e se recuperou sem nenhum dano severo.

 

Após retornar a Baku no fim do ano, Tofiq Musayev está pronto para cumprir seu compromisso com o Rizin Fighting Federation na busca pelo título inaugural do peso-leve, neste domingo. O atleta, que treinou em um estádio de futebol devido à pandemia do novo coronavírus, vai encarar o brasileiro Roberto Satoshi em seu primeiro duelo desde o cessar-fogo, no fim de 2020. Mentalmente, ele ainda se recupera das cicatrizes psicológicas, porém, fisicamente garante estar apto para pisar no ringue montado no mítico Tokyo Dome, palco de edições do extinto Pride, em Tóquio, no Japão.

– A guerra nos afeta muito, ficamos muito próximos da morte, o que não acontece no esporte. A vida pode acabar a qualquer segundo lá. Isso afeta a nossa cabeça. Estou motivado para lutar e mostrar ao mundo inteiro que somos um povo lutador. Estou pronto física e mentalmente para essa luta. Treinei em um estádio por conta da pandemia, porque as academias estão fechadas, junto com o meu treinador, Ruslan Efendiyev. O Satoshi fez duas lutas enquanto fiquei parado. Gosto de lutar contra os lutadores mais fortes. O mais importante é representar o meu país, assim como fiz na guerra.

Lutador recebe o cinturão após faturar o Grand Prix do peso-leve - Getty Images
Lutador recebe o cinturão após faturar o Grand Prix do peso-leve – Getty Images

 

Embalado por cinco vitórias seguidas no Rizin – três por nocaute e duas por pontos -, Tofiq Musayev acredita que anotará o sexto triunfo diante de Satoshi e, assim como a maioria dos atletas de MMA, sonha chegar ao UFC.

– O Roberto Satoshi tem um cartel de 11 vitórias e uma derrota. Vem de duas vitórias, antes, perdeu para o Johnny Case, que é ex-UFC. É um lutador que gosta da trocação, mas tem como ponto mais forte o jiu-jítsu brasileiro. Não posso contar todos as minhas estratégias, vocês vão ver no dia (risos). Mas meu plano é entrar no UFC – despistou.

Tofiq Musayev começou no caratê - Arquivo Pessoal

Tofiq Musayev é campeão do Rizin - Getty Images

Tofiq Musayev começou no caratê e se tornou lutador de MMA

A vitória sobre Patricky Pitbull – que lhe rendeu o cinturão do Rizin – também trouxe a Tofiq Musayev uma improvável amizade com o potiguar e seu irmão, Patrício Pitbull, campeão do Bellator. Ainda que não fale inglês, o azeri mantém contato com os líderes da equipe Pitbull Brothers, localizada em Natal (RN), através das redes sociais, e espera treinar com eles ao fim da pandemia.

– A gente se fala via Instagram. Eles são muito bons, pessoas simples, que construíram uma amizade comigo mesmo sendo de um país tão distante do meu. Gostaria muito de treinar com eles no Brasil. Temos planos, estamos discutindo isso para ver se na próxima vez eu consigo ir. Eu tenho o sonho de visitar o Rio de Janeiro também, deve ser um lugar muito interessante – contou o peso-leve, fã do futebol brasileiro.

– Eu acompanho o futebol brasileiro desde criança, conheço todos os jogadores, como Ronaldo, Ronaldinho, Rivaldo… O Brasil tem muitas lendas no futebol e no MMA, como o José Aldo, ex-campeão do UFC – declarou o azerbaijano, que recentemente se encontrou com o japonês Keisuke Honda, ex-jogador do Botafogo, que defende o Neftçi PFK, de Baku.

Tofiq Musayev se tornou amigo de Patricky Pitbull, seu último oponente - Getty Images
Tofiq Musayev se tornou amigo de Patricky Pitbull, seu último oponente – Getty Images

 

Em novembro de 2020, Azerbaijão e Armênia assinaram um acordo cessar-fogo, mediado por Vladimir Putin, presidente da Rússia. Entretanto, não houve solução definitiva, e, por isso, o risco de uma nova guerra é sempre iminente. Agora, os armênios controlam 40% do que tinham antes do conflito do ano passado, enquanto os azeris administram 60% do território, incluindo Shusha – cidade mais importante do ponto de vista cultural e simbólico – localizada a apenas 10km de Stepanakert, capital de Nagorno-Karabakh.

Tofiq Musayev fala com orgulho de defender o Azerbaijão - Getty Images
Tofiq Musayev fala com orgulho de defender o Azerbaijão – Getty Images

 

Tofiq Musayev espera que 2021 seja um ano focado em sua retomada profissional. Entretanto, em caso de nova convocação, não pensará duas vezes ao deixar as luvas de lado.

– A guerra acabou. O que posso sentir pelos armênios? Basta pensar no Massacre de Khojaly, matando jovens, crianças, mulheres e idosos de uma forma horrível. Basta entrar na internet. Se eu encontrá-los em qualquer lugar, até numa luta, não poderei perdoá-los. As pessoas que foram expulsas do nosso território 30 anos atrás estão voltando. As coisas vão melhorar, já estão melhorando. Mas, se preciso for, vou lutar de novo.

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